NATAL DO EXPRESSÃO MULHER-EM / 2018 / 2019



Amigos,

a insensibilidade matou o Papai Noel e vem matando o espírito de Natal em nós? Ou somos NÓS que estamos matando a Poesia e o Sonho a cada dia, parecendo cúmplices do ódio, do desrespeito, da falta de sensatez, da intolerância e da imensa falta de amor no que se está vivendo?

Desculpas à parte pela ausência de postagem relativa ao tema desde 2018, reivindico o meu papel de ser humano e cidadã acima dos credos e das inclinações de cunho político: sou um coração que se pretende solidário, disciplinado e amante da Vida e de suas maravilhas. Um coração que sofre e que verdadeiramente está de luto, Sobre ele gargalha uma realidade que ele repudia e da qual ainda não conseguiu se desembaraçar.  

Bem guardados comigo estão os desejos de Paz, Amor e Poesia, filosofia do blogue Expressão Mulher-EM  desde a sua criação pela sempre querida Ilka Vieira. 
No momento certo as postagens serão retomadas.

Agradecida por sua compreensão e um abraço fraterno.
Regina Coeli Rebelo Rocha
Rio de Janeiro/RJ, 26 de fevereiro de 2020. 


(Crédito: charge de Carlos Latuff)

DIA INTERNACIONAL DA MULHER / 2018


MULHER — asas para voar.


Neste Dia Internacional da Mulher / 2018, o Blogue Expressão Mulher-EM abraça as suas mulheres, as suas lutas e as suas asas, ávidas de voo. Para vocês, ROSAS!



Sempre foi — e ainda é — bastante difícil para a mulher realizar-se profissionalmente, porque, muitas vezes, ela é também esposa e mãe.

É sabido que não há igualdade entre homens e mulheres: as possibilidades são sempre maiores para eles, ou seja, os homens podem mais.

Na área das letras, mais especificamente na Poesia, facilmente se comprova que o número de poetas homens é bem maior do que o de mulheres poetas (ou poetisas). Muito provavelmente isso se justifica pelo fato de a escrita, além da vocação,   estar calcada em, pelo menos, três outros requisitos: tempo, concentração e dedicação.

Na área da essência da Poesia, da expressividade  dos versos, a diminuta poesia feminina foi sempre balizada por regras convencionais, resultando em manifestações poéticas que longe estavam de exprimir tudo o que sua autora sentia. Os homens, críticos em potencial, muitas vezes se referem à poesia da mulher como “poesia pó-de-arroz”.

Entretanto, vozes femininas vêm rompendo  barreiras e arrebentando grilhões, inundando os versos com o mundo interior da mulher que ama, sente e deseja; ou seja, revela-se o mundo das sensações “proibidas” da mulher, o mundo maravilhoso do desejo feminino.  

O Blogue EM se orgulha de ter em suas páginas poetisas que não buscaram “escandalizar”, mas sim fazer caminhar com coragem pelo verso poético o seu sentir mais latente, sensual e verdadeiro.

Ei-las (e a sua sensual poesia):  



SOROR DOLOROSA
Sarah de Tobias

(grafia da época)

Reconforta-me a furia dos devassos,
0 suspiro rithmado dos violinos,
O coleio febril dos corpos lassos
E os violentos impulsos femeninos.

Irrita-me a cadencia dos meus passos,
O pello acariciante dos felinos,
O triste colorido dos espaços,
E o rithmo lento dos enfermos sinos...

Tortura-me o desejo das perdidas,
Das que trilham do vicio a longa estrada,
Das que fingem e são apetecidas...

Mas revolta-me o cerco destes muros,
Onde vivo escondida e torturada
Mostrando ás outras pensamentos puros...

 (Do livro Emoções Secretas, 1924)




 Arte de Ilka Vieira



SARAH DE TOBIAS
(nenhuma outra informação além da publicação do livro EMOÇÕES SECRETAS editado em 1924)









EPISÓDIO
Yde (Adelaide) Schloenbach Blumenschein – “Colombina”
(São Paulo/SP, 1882-1963)

O reflexo do ocaso ensanguentado
doirava ainda aquele fim de dia...
De um frasco de cristal, mal arrolhado,
um cálido perfume se esvaía...

Junto ao teu corpo nu, convulsionado,
que de desejo e de volúpia ardia,
o meu corpo, nessa hora de pecado,
uma ânfora de gozo parecia.

Na quietude da tarde agonizante,
um beijo prolongado, delirante,
a flama da paixão veio acender.

E toda a minha feminilidade
era uma taça de sensualidade,
transbordante de vida e de prazer!



(Do livro Rapsódia Rubra: poemas à carne – 1961)






INTIMIDADE
Yde (Adelaide) Schloenbach Blumenschein – “Colombina”


Toda alcova em penumbra. Em desalinho o leito,
onde, nus, o meu corpo e o teu corpo, estirados
na fadiga que vem do gozo satisfeito,
descansam do prazer, felizes, irmanados.

Tendo a minha cabeça encostada ao teu peito,
e, acariciando os meus cabelos desmanchados,
és tão meu... Sou tão tua. Ainda sob o efeito
da louca embriaguez dos momentos passados.

Porém, na tua carne insaciável, ardente,
o desejo reacende, estua... E, de repente,
dos meus seios em flor beijas a rósea ponta...

E se unem outra vez a lúbrica bacante
do meu ser e o teu sexo impávido, possante,
na comunhão sensual de delícias sem conta...


(Do livro Rapsódia Rubra: poemas à carne – 1961)






A CARNE
Yde (Adelaide) Schloenbach Blumenschein – “Colombina”

Exiges. És ciumenta e egoísta. Não admites
qualquer rivalidade, ou que algo te suplante.
És forte e audaz no teu domínio sem limites,
capaz de transformar a vida, num instante.

És mísera e brutal. Mas nada obsta que agites
e açambarques o mundo! E que essa alucinante
e estranha sensação, que aos humanos transmites,
tenha, como nenhuma, um halo deslumbrante.

Ó carne que possuis no teu imo maldito
mais lodo que contém um charco pantanoso,
mais esplendor também que os astros do Infinito!

Rugindo de volúpia e de sensualidade,
espalhando na terra apoteoses de gozo,
ó carne, serás tu, a única verdade?

(Do livro Distância: poemas de amor e de renúncia, 1948)





SER MULHER...
Gilka Machado
(Rio de Janeiro/RJ, 1893-1980)
(grafia da época)

Ser mulher, vir á luz trazendo a alma talhada
para os gosos da vida: a liberdade e o amôr;
tentar da gloria a etherea e, altivola escalada,
na eterna aspiração de um sonho superior...

Ser mulher, desejar outra alma pura e alada
para poder, com ella, o infinito transpor;
sentir a vida triste, insipida, isolada,
buscar um companheiro e encontrar um senhor...

Ser mulher, calcular todo o infinito curto
para a larga expansão do desejado surto,
no ascenso espiritual aos perfeitos ideaes...

Ser mulher, e, oh! atroz, tantalica tristeza!
ficar na vida qual uma águia inerte, preza
nos pezados grilhões dos preceitos sociaes!

 (Do livro Crystaes Partidos, 1915)





ANCIA AZUL (grafia da época)
Gilka Machado

A Francisca Julia da Silva*

Manhans azues, manhans cheias do pollen de ouro
que das azas o Sol levemente saccode!...
quem dera que, numa ode,
como numa redôma,
eu pudesse contêr o intangivel thezouro
da vossa luz, da vossa côr, do vosso arôma!

Manhans azues, manhans em que as aves, em bando,
entoam pelo espaço o hymno da Liberdade!
Que anceio formidando!
Que sêde de infinito o cérebro me invade!
Esta luz, esta côr, este perfume brando,
que se evola de tudo e que, de quando em quando,
o Vento — acolyto mudo,
passa thuribulando;
esta mystica fala,
que das cousas se exhala:
e conclama, e resôa
em toda a natureza,
como uma etherea lôa
entoada á vossa olympica belleza;
tudo á libertação, tudo ao prazer convida
e faz com que a creatura ame um momento a Vida.

Lindas manhans azues!
manhans em que, qual um zumbido
de tão intensa, a luz
sôa por todo o ambiente, echôa-me no ouvido,
e o Sol no alto espreguiça as múltiplas antennas,
quente, lúcido e louro,
como um bezouro
de ouro.
Manhans suaves, serenas,
manhans tão mansas, tão macias,
que pareceis feitas de pennas
e melodias...

Tudo se espiritualisa
á vossa côr sublime, suggestiva,
onde ha dedos de luz levemente a accenar...
a essa invencivel suggestão captiva,
na aza abstracta da brisa,
a alma das cousas sobe e fluctua pelo ar.

Eu, como as cousas, sinto indefinidas ancias:
a attracção do Ignorado,
a attracção das Distancias,
a attracção desse Azul,
ao qual meu pobre ser quizera transportado
vêr-se, da Terra exul.
E que gôso sentir-me em plena liberdade!
longe do jugo vil dos homens e da ronda
da velha Sociedade
— a messalina hedionda
que, da vida no eterno carnaval,
se exhibe phantasiada de vestal.

Manhans azues, manhans em que os vírides prados,
pelo vento ondulados,
parecem mares calmos,
e os mares, mollemente espreguiçados,
sobre as praias espalmos,
são vastos, verdes e floridos prados.
Manhans em que nas estradas
— lindas romeiras, enfileiradas,
diante do vosso sumptuoso templo,
que alto reluz — as arvores contemplo,
dansando todas, com gestos lentos,
ao som dos ventos,
na festa sacra da vossa luz!

O' mágicas manhans!
vós me trazeis ao cérebro ancias vans.
O fulgor que de vós se precipita,
perturba minha vida de eremita,
açora-me os sentidos
na narcose do tédio amortecidos;
ao vêr a Natureza toda em festa,
do seu pagode abrir as portas, par em par,
o meu sêr manifesta
desejos de cantar, de vibrar, de gosar!...

Esta alma que eu carrego amarrada, tolhida,
num corpo exhausto e abjecto,
ha tanto acostumado a pertencer á Vida
como um traste qualquer, como um simples objecto,
sem gôso, sem conforto
e indifferente como um corpo morto;
esta alma, acostumada a caminhar de rastos,
quando fito estes céos, estes campos tão vastos,
aos meus olhos ascende e deslumbrada avança,
tentando abandonar os meus membros já gastos,
a saltar, a saltar, qual uma alma de creança.
E analysando então meus movimentos,
indecisos e lentos,
de humanisada lêsma,
eu tenho a sensação de fugir de mim mêsma,
de meu sêr tornar noutro,
e sahir, a correr, qual desenfreado pôtro,
por estes campos,
escampos.

De que vale viver,
trazendo na existência emparedado o sêr?
Pensar e, de continuo, agrilhoar as idéas
dos preceitos sociaes nas tôrpes ferropéas;
ter impetos de voar,
mas preza me manter no ergastulo do lar,
sem a libertação que o organismo requer;
ficar na inercia atróz que o ideal tolhe e quebranta...
................................................................................
Ai! antes pedra sêr, insecto, verme ou planta,
do que existir trazendo a forma da Mulher!


Aves!
Quem me déra têr azas,
para acima pairar das cousas rasas,
das podridões terrenas,
e sahir, como vós, ruflando no ar as pennas,
e saciar-me de espaço, e saciar-me de luz,
nestas manhans tão suaves!
nestas manhans azues, lyricamente azues!



 (Do livro Crystaes Partidos, 1915)


(*) – poetisa  brasileira Francisca Julia da Silva (1871-1920)


GILKA MACHADO








Para o seu deleite, MULHER, o talento e a especial carícia do poeta Affonso Romano de Sant'Anna em oito fragmentos poéticos da mais sedutora amorosidade.





Affonso Romano de Sant’Anna

Artista e intelectual , com uma produção diversificada e consistente, pensa o Brasil e a cultura do seu tempo, e se destaca como teórico, como poeta, como cronista, como professor, como administrador cultural e como jornalista. Com mais de 40 livros publicados, professor em diversas universidades,  seu talento foi confirmado pelo estímulo recebido de várias fundações internacionais. Nasceu em Belo Horizonte, MG, no ano de 1937.

Fonte:
https://leopoldinense.com.br/coluna/664/poemas-de-affonso-romano-de-sant--anna




"O amor com seus contrários se acrescenta”
                                            
(Camões)


"Poemas para a Amiga"
               (Fragmento 1)

Tu sempre foste una
e sempre foste minha,
ainda quando a cor e a forma tua se fundiam
com outra forma e cor que tu não tinhas.
Por isto é que te falo de umas coisas
que não lembras
nem nunca lembrarias
de tais coisas entre mim e ti
ainda quando tu não me sabias
e dividida em outras te mostravas
e assim dispersa me ouvias.

Tu sempre foste uma
ainda quando o corpo teu
com outro corpo a sós se punha,
pois o que me tinhas a dar
a outro nunca o deste
e nunca o doarias.

Por isto é que te sinto
com tanta intimidade
e te possuo com tanta singeleza
desde quando recém vinda
ostentavas nos teus olhos grande espanto
de quem não compreendia
a antiguidade desse amor que em mim fluía.






"Poemas para a Amiga"
               (Fragmento 2)



Eu sei quando te amo: 
é quando com teu corpo eu me confundo, 
não apenas nesta mistura de massa e forma, 
quando na tua alma eu me introduzo 
e sinto que meu sangue corre em ti, 
e tudo que é teu corpo 
não é que um corpo meu 
que se alongou de mim. 


Eu sei quando te amo: 
é quando eu te apalpo e não te sinto, 
e sinto que a mim mesmo então me abraço, 
a mim 
que amo e sou um duplo, 
eu mesmo 
e o corpo teu pulsando em mim.





"Poemas para a Amiga"
               (Fragmento 3)

É tão natural
que eu te possua
é tão natural que tu me tenhas,
que eu não me compreendo
um tempo houvesse
em que eu não te possuísse
ou possa haver um outro
em que eu não te tomaria.
Venhas como venhas,
é tão natural que a vida
em nossos corpos se conflua,
que eu já não me consinto
que de mim tu te abstenhas
ou que meu corpo te recuse
venhas quando venhas.

E de ser tão natural
que eu me extasie
ao contemplar-te,
e de ser tão natural
que eu te possua,
em mim já não há como extasiar-me
tanto a minha forma
se integrou na forma tua.


"Poemas para a Amiga"
               (Fragmento 4)

As vezes em que eu mais te amei
tu o não soubeste
e nunca o saberias.

Sozinho a sós contigo
em mim mesmo eu te criava,
em mim te possuía

De onde vinhas nessas horas
em que inteira eu te envolvia,
nem eu mesmo o sei
e nunca o saberias

Contudo, em paz
eu recebia o carinho,
compungindo o recebia,
tranqüilo em meu silêncio
e tão tranqüilo e tão sozinho
que calmamente eu consentia:
- que ainda que muito me tardasse
mais ainda, um outro tanto, eu sempre esperaria.




"Poemas para a Amiga"
               (Fragmento 5)

Tanto mais eu te contemplo
tanto mais eu me absorvo
e me extasio

Como te explicar
o que em teu corpo eu sinto,
o que em teus olhos vejo,
quando nua nos meus braços
nos meus olhos nua,
de novo eu te procuro
e no teu corpo vou-me achar?

Como te explicar
se em teu corpo eu me eternizo
e de onde e como
sendo eu pequeno e frágil
pelo amor me dualizo?

Tanto mais eu te possuo
tanto mais te tornas bela,
tanto mais me torno eu puro.

E à força de tanto contemplar-te
e de querer-te tanto,
já pressinto que em mim mesmo
eu não me tenho,
mas de meu ser, ora vazio,
pouco a pouco fui mudando
para o teu ser de graça cheio.




"Poemas para a Amiga"
               (Fragmento 6)


Estás partindo de mim
e eu pressinto que me partes,
e partindo, em ti me vai levando,
como eu que fico
e em mim vou te criando.
Tanto mais tu me despedes
e te alongas,
tanto mais em mim vou te buscando
e me alongando,
tanto mais em mim vou te compondo
e com a lembrança de teu ser
me conformando.

Estás partindo de mim
e eu pressinto
na verdade, há muito que partias,
há muito que eu consinto
que tu partas como um mito...

Mas não és a única que partes
nem eu o único que fico:
sei que juntos e contrários
nos partimos:
-pois tanto mais nos desencontros nos revemos,
tanto mais nas despedidas consentimos.





"Poemas para a Amiga"
               (Fragmento 7)
  
Estranho e duro amor
é o nosso amor, amante-amiga,
que não se farta de partir-se
e não se cansa de querer-se.
Amor
todo feito de distâncias necessárias
que te trazem
e de partidas sucessivas
que me levam.
Que espécie de amor
é esse amor que nos doamos
sem pensar e sem querer com tanto amor
e tão profundo magoar?
Estranho e duro amor
que não se basta
e de outros amores se socorre
e se compensa
e neste alheio compensar-se
nunca se alimenta,
mas se avilta e se desgasta.

Estranho amor,
ferino amor,
instável amor

feito sem muita paz,
com certo desengano
e um desconsolo prolongado.

Feito de promessas sem futuro
e de um presente de saudades.
Chorar tão dúbio amor
quem há-de?

Estranho amor
e duro amor
incerto amor,

que não te deu o instante que esperavas
e a mim me sobejou do que faltava.




"Poemas para a Amiga"
               (Fragmento 8)

Contemplo agora 
o leito que vazio
se contempla.
Contemplo agora
o leito que vazio
em mim se estende
e se me aproximo
existe qualquer coisa
trescalando aroma em mim. 


Onde o teu corpo, amante-amiga,
onde o carinho
que compungido em recebia
e aquela forma que tranquila
ainda ontem descobrias?

Agora eu te diria
o quanto te agradeço o corpo teu
se o me dás ou se o me tomas,
e o recolhendo em mim,
em mim me vais colhendo,
como eu que tomo em ti
o que de ti me vais doando.

Eu muito te agradeço este teu corpo
quando nos leitos o estendias e o me davas,
às vezes, temerosa,
e, ofegante, às vezes,
e te agradeço ainda aquele instante (o percebeste)
em que extasiado ao contemplá-lo
em mim me conturbei
-(o percebeste) me aguardaste
e nos olhos te guardei.

Eu muito te agradeço, amante-amiga,
este teu corpo que com fúria eu possuía,
corpo que eu mais amava
quanto mais o via,
pequeno e manso enigma
que eu decifrei como podia.

Agora eu te diria
o que não soubeste
e nunca o saberias:
o que naquele instante eu te ofertava
nunca a mim eu já doara
e nunca o doaria.

Nele eu fui pousar
quando cansado e dúbio,
dele eu fui tomar
quando ofegante e rubro,
dele e nele eu revivia
e foi por ele que eu senti
a solidão, e o amor
que em mim havia.

Teu corpo quando amava
me excedia,
e me excedendo
com o amor foi me envolvendo,
e nesse amor absorvente
de tal forma absorvendo,
que agora que o não tenho
não sei como permaneço nesta ausência
em que tuas formas se envolveram,
tanto o amor
e a forma do teu corpo
no meu corpo se inscreveram.


Autor: Affonso Romano de Sant'Anna




BENEDICTA DE MELLO, VIDA E OBRAS (POESIA)




QUEM É BENEDICTA DE MELLO E O QUE SE DIZ DE SEUS LIVROS:

Luiz Edmundo (imortal da Academia Brasileira de Letras) ouve de Benedicta de Mello, ao entrevistá-la:
— Vim ao mundo em Vicência, nos cafundós de Pernambuco, um lugarejo pobre, atrasado, esquecido do mundo... E pôs-se a recitar:

"Eu nasci num recanto de palmeira,
Era em meio da selva o meu ranchinho
Pequeno, de sapê, tão pobrezinho
Que pobre me fez sempre a vida inteira."

Em Vicência nasci e me criei, sob a guarda e a ternura de meus pais. Só tarde, muito tarde, pude saber que outros possuíam, neste mundo, mais um, sentido do que eu. Não me impressionei, porém, com essa revelação. Em meio ao mágico esplendor da natureza que me agasalhava, eu me sentia venturosa, ouvindo a voz familiar dos meus, o sonoro cantar dos pássaros, os rumores do vento e até os plácidos gemidos de um pequeno regato, um
tênue fio de água, preguiçoso, que atrás da nossa casa, vagaroso, fluía.

Entretinha meu pai, por esse tempo, relações de amizade com vários cantadores do lugar. Esses menestréis do sertão enchiam, freqüentemente, o nosso rancho, com as suas violas de corda de metal e as suas ingênuas e estouvadas cantorias.
Ainda trago fresquinha, na memória, a lembrança dessas tertúlias singulares, que enchiam de sonhos a minha infância.
Ainda ouço o Zé da Taquara, ponteando, barulhando, a sua módula viola, em seus desafios:

"Eu não vejo quem me afronte
Nestes versos de seis-pé!
Pegue o pinho, companheiro
E cante como quisé.
Que eu mordo e belisco a isca
Sem cair no Jereré!"

Esses torneios, em geral gaiatos, muito me divertiam e de modo tal, que, em breve, comecei ousadamente a intrometer-me, lançando, de quando em quando, o meu versinho... Como se está
vendo, muito cedo comecei tomando parte nesses recontros improvisados, enfrentando valentes trovadores, deveras convencida e até vaidosa de ver como eles me levavam a sério... 

Dos ranchos nossos vizinhos vinham convites. Era a ceguinha insistentemente convidada para tomar parte em desafios. Não me fazia rogada. Aos doze anos, a trovadora sertaneja tinha melhorado bastante.
Zé da Taquara, certa vez, num de seus repentes, perguntou qualquer coisa que logo respondi, fazendo, por minha vez uma pergunta. Não me respondeu, como eu queria, o precipitado cantador. Retruquei-lhe, nesta sextilha que ainda hoje guardo num cantinho da memória:

"A resposta direitinha,
O cantador não me deu.
Se ele crê que sabe muito,
Sabe menos do que eu,
Venha depressa, a resposta
De quem não me respondeu...”

A esses versos, de expressão humorística, tão a feição do caboclo da terra, sucederam outros, graves, sérios, que eu já compunha sem ser ao som da viola. Foi num ambiente de sonho e de poesia, que passei as horas mais felizes de minha descuidada meninice...

Andava eu perto dos meus treze anos, quando um forasteiro apareceu em nossa casa e nos falou da existência de um educandário que havia na cidade do Rio de Janeiro, onde os cegos, gratuitamente, eram instruídos em todas as disciplinas que se ensinam aos videntes, pelo um método inventado por Braille.
Alvoroçou-me enormemente, a extraordinária nova. Assim, pensei eu, poderia ler, escrever e contar, conhecer várias matérias, coisa que eu até então considerava como uma espécie de graça, a nós cegos negada e concedida apenas aos que possuíssem o sentido da vista! Ah! Pensava eu, jubilosa, poder escrever os meus versos e lê-los quando quisesse, sem me valer, para isso, da falível memória de terceiros! Saber tudo, deliciar-me em livros que tudo contam e que os outros nem sempre me contavam!...

À minha mãe, pedi que me mandasse para tão famoso educandário do Rio de Janeiro, escola que instruía, sem a menor despesa para os pais, as crianças cegas. Ah! A ânsia que eu tinha de aprender...
— Não pode ser, respondeu-me ela. Se você fosse um homem eu não consentiria, quanto mais sendo cega e mulher!

E vieram as razões: de um lado, os recursos monetários, de outro, a impossibilidade de poder acompanhar-me em tão grande jornada. Para ela, alem disso, o Rio de Janeiro era uma cidade de perdição.
— Se uma mulher já feita, acrescentava, naquele báratro infernal, de pecado e de vício, com dificuldade pode defender-se, quanto mais uma inesperta e tímida menina com treze anos apenas e privada da visão. É pôr de lado a idéia que é absurda.

Um alvitre somente me restava: fugir de casa, abandonar Vicência, Pernambuco e seguir, sozinha embora, para o Rio de Janeiro. E não é que fugi?

Para alguma coisa havia de servir a popularidade conquistada, em Vicência, pela menina cantadeira. Possuía amigos, ótimos amigos, todos acordes, todos aprovando os meus legítimos projetos.

Entre as famílias do lugar, uma, a do Dr. Theodomiro Duarte, foi a que por mim, com a mais viva insistência e a maior das coragens, abertamente se bateu. A ela, devo a guarida que então tive, no dia em que fugi, abandonando a casa. Meu pai havia falecido anos atrás. A família Duarte, ainda sou credora da ajuda que depois tive, na jornada que me levou a capital de Pernambuco, onde fui carinhosamente recebida por uma outra família amiga, que se incumbiu do meu embarque.

Fui, depois, conduzida a bordo do vapor "Brasil'’, um veterano calhambeque que pertenceu ao Lloyd Brasileiro, instável e vagaroso barco que vinha se arrastando de Belém do Pará, em direção ao Rio, onde cheguei ao fim de sete dias. A bordo, no momento de embarcar no Recife, fui posta sob a tutela de uma D. Edésia, que ocupava uma cabine de primeira classe. Vinha eu, com um bilhete de terceira. Na hora do desembarque, essa mesma senhora, que, durante toda a travessia, me cercara de cuidados e mimos, eclipsou-se de repente e desapareceu. 

Valeu-me nesse contratempo, o socorro amistoso de uma camareira de bordo, que me conduziu à residência do Dr. Zeferino Pontual, velho conhecido da família Duarte, cujo endereço eu trazia guardado, cuidadosamente na memória. Não o achamos, porém, pois ele havia mudado de residência. De vizinhos, não sem dificuldades, obtivemos indicação de sua nova morada — ruma pensão na Rua do Senado. Para lá me guiaram. Achei-o, felizmente.

Imagine-se, agora, o espanto do Dr. Pontual, ante a presença da menina cega que há anos não via e que ali se apresentava, inesperadamente, a pedir, a implorar que ele a conduzisse à escola que acolhia os cegos pobres do Brasil, para que nela fosse, sem demora, internada!

A surpresa talvez não fosse muito agradável!... Abraçou-me porém, sorrindo e prometeu cuidar do que eu, com tanto ardor, pedia. Apenas não estava em condições, disse, de agasalhar-me  em sua residência. Conduziu-me a casa de uns amigos seus, no bairro de Botafogo, onde eu deveria ficar até que se aplainassem certas dificuldades que certamente surgiriam, para o meu internamento. E foram elas enormes, porque, alem de ser menor, eu não poderia apresentar nem um só dos documentos exigidos pelo educandário. Findaram-se, afinal, os embaraços que dificultavam a minha entrada no Instituto, esse abençoado educandário onde me instruí, me eduquei e me fiz professora.

Em 1938 casei.

Quanto às influencias que decidiram de minha formação como escritora, posso dizer que a noção rigorosa do ritmo, bem como a contagem métrica do verso, eu as aprendi ouvindo os cantadores do sertão. Não sou levada a crer que deles pudesse receber ponderáveis influxos. Estes vieram depois, com o conhecimento de poetas como Gonçalves Dias, Castro Alves, Casimiro de Abreu e acima de tudo, os que formaram a geração de Bilac: Alberto de Oliveira e Raimundo Correia, para não citar outros. 

Os meus primeiros versos foram publicados em Portugal, sem ter jamais, por lá, posto os meus pés. Sucedeu que uma grande amiga, Maroquinhas Jacobina Rabelo, em viagem pela Europa, passou por Lisboa, onde Thomás Ribeiro Colaço então dirigia uma revista literária — "O Fradique". Minha amiga mostrou-lhe os meus versos e Colaço, que sempre demonstrou grande amor ao Brasil, dedicou uma página inteira de seu mensário à poetisa cega, transcrevendo os seus versos e desdobrando-se em louvores que muito a sensibilizaram.
Naturalmente, a notícia havia de ecoar entre nós. As palavras de Colaço foram aqui transcritas, bem como minhas pálidas estrofes...

Devo, ainda, a Maroquinhas Rabelo, a impressão do livro com o qual me apresentei a crítica do meu país. Publiquei, em seguida, SOL NAS TREVAS, graças à ajuda de outra grande amiga, Helena Ferraz, filha de Bastos Tigre, que seguindo as gloriosas pegadas do pai, e ativa colaboradora de diversos jornais, entre os quais o "Correio da Manhã", sob pseudônimo de Álvaro Armando. Helena apresentou-me a Agripino Grieco que prefaciou meu livro. 

Aqui terminou a entrevista, mas não a obra de Benedicta, que prosseguiu escrevendo e com este conta seu quinto livro de poesias, além de uma coletânea de versos  patrióticos.


Sobre seu primeiro livro: LANTERNA ACESA, publicado em 1935 e reeditado em 1977, Thomaz Ribeiro Colaço, editor português diz: "...uma revelação sensacional para as letras portuguesas e para as letras brasileiras, esses formosíssimos sonetos, ainda inéditos.

Com a revelação de um grande nome de mulher que sofre e sabe contar o seu tormento, de mulher que chora e sabe converter em beleza as suas lágrimas, continua este jornal a cumprir sua missão.

Na limpidez maravilhosa de seus ritmos, a força conceptiva e criadora de B. de M., põe em relevo sua grande riqueza de imaginação poética.
LANTERNA ACESA é uma estrela que Deus acendeu em sua alma."

SOL NAS TREVAS dado a lume em 1944, mereceu, entre muitas palavras elogiosas dos críticos, uma página de Roger Bastide, em "Don Casmurro" de 11 de agosto. Transcrevemos aqui alguns trechos de seu artigo intitulado "Luz na Sombra”:
"A antigüidade quis que fossem cegos, o maior de seus poetas e o maior de seus adivinhos: Homero e Tiresias, para mostrar que aqueles que não possuem olhos para contemplar o mundo cotidiano, manchado pelo pecado dos homens, possuem um outro mundo, infinitamente mais luminoso e genial — o mundo das profundezas da alma.
Eis que uma moça de Pernambuco, Benedicta de Mello, cega de nascimento, deixa seu coração cantar, às vezes triste, mas freqüentemente confiante e sempre bom e nobre e derrama grande porção da música interior que está nela, que brota das sombras de sua cegueira; assim nos brinda com um livro cujo título é SOL NAS TREVAS.

A poetisa pernambucana, às vezes se deixa levar pela linguagem dos clarividentes, como "O  Algodoeiro", que é um lindo jogo de imagens, um jogo sobre cores, ou ainda em certos versos como este: 


"Em tarde cor-de-rosa e sob um céu de anil..."

Muito mais originais, porém, são poemas como FAZENDA DA PAULICÉIA, mais sinceros, pois são cheios de ruídos, de perfumes, de sensações sutis, de sentimentos quase afetivos de luz quente e de sombras frescas:

"Gemer de flauta na cabana escura;
Pelas manhãs, gorjeios na mangueira..."

É nessa diretriz que deve empenhar-se Benedicta de Mello, para conquistar o lugar que merece. Aliás, é preciso reconhecer que é essa via que a poetisa seesforça por seguir. São exemplos disso, seus emocionantes poemas em que o amor ao Brasil é alcançado por outros sentidos que não a vista, entre os quais se salientam: "Quero-te meu Brasil" ou "Bandeira", que assim começa:

"Bandeira linda! Não te vejo as cores"...
e que termina com os versos tão impositivos:
"é que o ver não importa para amar-te,
é que de tanto amar-te eu penso ver-te".


Versos como os que se seguem, trescalam infinita doçura e misticismo:

"Eu não sou infeliz no meu rincão. 
Infeliz não será quem assim goza 
da natureza mais prodigiosa
que imaginou a eterna perfeição.

Durmo a sorrir, na rede de algodão
suspensa aos galhos da árvore frondosa, 
ouvindo a sinfonia majestosa 
da passarada em doida orquestração.
..................................
Eu não sou infeliz na terra imensa
onde o homem que é livre, escreve e pensa 
na doce e eterna língua de Camões."


Sobre VERSOS DO MEU BRASIL, publicado em 1945, o mesmo crítico diz:
"Dir-se-ia que a arte desta nobre 'artista do verso, cada vez mais se aprimora no culto transcendente dos símbolos e na surpreendente delicadeza das suas lindas imagens. Abre o livro, o lindo soneto "Invocação":

"O Brasil és tu mesmo, brasileiro!
É por amor a ti que o tens de amar 
Desde os vales profundos, ao Cruzeiro, 
Das fronteiras ao teto do teu lar!"


No soneto "Guanabara", a poetisa, em versos magníficos, exalta, no sentimento da grandeza brasileira, a nossa envolvente generosidade:

"O Brasil é carioca, alma indulgente, 
que tem na Guanabara o coração 
imenso, aberto para toda a gente."


Nestas duas jóias, já se pode apreciar que portentoso escrínio constitui o livro da poetisa Benedicta de Mello.
Se os seus olhos estão extintos para a luz, há em sua alma de eleita, uma visão muito mais  forte que a dos olhos carnais — a transfiguradora visão da beleza perfeita, do amor infinito, da bondade imperecível e da pátria imortal."

LUZ DE MINHA VIDAeditado em 1955, teve sua segunda edição em 1982, acrescida de um prefácio.
Como os livros que o precederam, foi carinhosamente acolhido pela crítica.

Eis um trecho do artigo publicado em Recife, pelo crítico Flósculo Corrêa Lima:
"Sempre julguei os cegos pessoas à margem dos acontecimentos. Jamais acreditei que a luz espiritual, desses seres condenados à masmorra da escuridão eterna, fosse tão extraordinária, a tal ponto que chegasse a ofuscar a luz dos que carregam abertos os olhos para a vida.

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Vêde bem, amigos, esses versos são clarinadas lúcidas de luz, são "recuerdos" e baladas próprias para sonhar em noites de lua cheia, quando o mar prateado é um mundo infinito de felicidade.
Gostaria de transcrever todo o conteúdo do livro, para que não somente eu, mas todos vós que admirais as musas e os trovadores, sentísseis o que eu senti, ao penetrar nesse mundo encantado que é o livro LUZ DE MINHA VIDA da poetisa Benedicta de Mello."


LUZ INTERIORpublicado em 1972, acrescido de um capítulo constituído pelos vinte e dois sonetos patrióticos que integravam a coletânea "Versos do meu Brasil", logo esgotada.
Acolhido com muito agrado por críticos e leitores, mereceu de Carlos Drummond de Andrade, palavras de carinho como as que se seguem:
"Luz Interior" — o belo titulo de um belo livro. Poesia em que emoção e realização verbal se unificam para a serena fruição do leitor".

Apresentamos agora LÂMPADAS COLORIDAS*, cuja leitura certamente trará aquele sabor de pureza e de sinceridade que impregna toda a obra de Benedicta de Mello.
Como todo o artista, B.M. é sensível ao mundo que a rodeia e sofre agora ao ver os caminhos que a humanidade vai trilhando. Sua obra reflete essa transição.




NOTAS do EM:

(*) - "LÂMPADAS COLORIDAS" é o 5º e último livro de Benedicta de Mello.


- Em ao menos dois dos livros físicos de BENEDICTA DE MELLO, o nome dela é escrito: BENEDITA DE MELLO. No entanto, o blogue EM assume nesta postagem a forma BENEDICTA DE MELLO utilizada pelo Instituto Benjamin Constant ao se referir à poetisa cega que se graduou naquela instituição e na qual atuou como professora.

- Há informações do Instituto Benjamin Constant que apontam o ano de 1906  (e não 1900) como o mais provável para o nascimento de Benedicta de Mello. Veja-se: 


No Mundo das Artes
 Benedicta de Mello

  Benedicta foi registrada como nascida no Rio de Janeiro, mas é natural de Vicência, Pernambuco. Membro de uma família numerosa, viveu os primeiros anos nessa pequena cidade pernambucana. Começou a fazer versos, ainda na infância, inspirada nos repentistas de sua terra natal. Determinada, saiu de Pernambuco e superou muitos obstáculos até chegar ao Instituto Benjamin Constant em 1920, onde se instruiu, se educou e fez-se professora. Dedicou-se com empenho à melhoria da qualidade de vida de crianças e jovens cegos de Pernambuco, trazendo-os para se educarem no Instituto Benjamin Constant. Em 1935, publicou seu primeiro livro: *Lanterna acesa*. Seguiram-se: *Sol nas Trevas, Luz da Minha Vida, Luz Interior* e *Lâmpadas Coloridas*. Dominava a arte do soneto. Seu nome foi cogitado para a Academia Brasileira de Letras, face à qualidade, força e beleza de seus versos. Morreu em 1991.



FONTE:

Revista Brasileira para Cegos
          Ano LXXIII, n.o 538,
          julho/setembro de 2015
          Ministério da Educação
          Instituto Benjamin Constant
          Rio de Janeiro
          Publicação Trimestral de
          Informação e Cultura



  


Clique nos links abaixo para ler BENEDICTA DE MELLO:








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