* FERNANDO PESSOA (Patrono do EM)





 Fernando Pessoa nasceu no dia 13 de junho de 1888 na cidade de Lisboa. Levou uma vida anônima e solitária e morreu em 1935, vítima de cirrose hepática. Na poesia, porém, sua vida foi repleta de surpresas: foi o maior criador de heterônimos da Literatura, objeto de maior parte dos estudos sobre sua vida e sua obra, e, por isso, é considerado um dos maiores nomes da Literatura Universal.
Ao contrário dos pseudônimos, os heterônimos constituem uma personalidade fictícia, sobretudo de autores. Sendo assim, Fernando Pessoa não só criou outros nomes para assinar seus textos, mas, junto deles, criou suas respectivas biografias. Essa questão resulta de características pessoais referentes à personalidade do próprio Fernando Pessoa: o desdobramento do “eu", a multiplicação de identidades e a sinceridade do fingimento, uma condição que patenteou sua criação literária. Vejamos as principais características de cada um dos mais conhecidos:
Fernando Pessoa (ortônimo)
Tinha uma personalidade com conflitos não solucionados, com inibições de um comportamento sexualmente indeciso, oscilando entre o melindre e a tentação dos sentidos, decepcionado pelo seu corpo material e pelas circunstâncias de vida que o limitavam – era magro, calvo disfarçado pelo chapéu, sem sucesso amoroso, sem carreira profissional, endividado, porém com uma superação na escrita que proporcionou desdobramentos de sua personalidade. Vivia em um processo constante de busca esotérica sobre si mesmo e sobre Portugal.
Alberto Caeiro (heterônimo)
É o próprio paganista, mestre dos outros heterônimos, pensava de forma simples, sem questionamentos. Para Caeiro, não há mistérios nas coisas. A alma isolada é inexistente, pois é algo que não se vê. Ela só passa a existir quando se une ao corpo, que é palpável e visível. Cristo existe desde que materializado – Cristo pode ser uma flor... Na poesia, tem uma estética na qual a imperfeição compõe uma obra desarmoniosa, sem preocupação com estética e rimas – é tido como poeta desleixado. A própria natureza é sempre desigual, por isso, para ele, não existe harmonia, as coisas são diferentes umas das outras. Caeiro não se prende a nada – viveu por viver. Para ele, viver é normal.
Álvaro de Campos (heterônimo)
Tem a visão multifacetada do real e a crise de identidade é seu marco. Era solitário e depressivo. Viveu tudo na vida intensamente. Possuía a filosofia do niilismo – nada valeu a pena, tudo foi em vão. Expressava tédio por um mundo que não o aceitava, colocava-se com linguagem despida de beleza. Sua poesia era grotesca, formada em um gênero literário desqualificado, sob a finalidade de aliviar-nos a beleza. O seu esforço em conhecer a si próprio fragmenta o seu próprio eu. Mostra-se impotente frente ao real.
Ricardo Reis (heterônimo)
Utiliza estilo refinado na forma poética, mediado pela frieza e pelo controle emocional. Oferece reflexão sobre as coisas, define a vida como passageira, vamos morrer um dia – Carpe Diem. É considerado um autor clássico por utilizar figuras mitológicas e vocabulário requintado. Para ele, o que vale é o real visto em sua superfície, apreendido pelos sentidos. Para Ricardo Reis, a religião é pagã (Cristo é só mais um Deus), a natureza é a pluralidade das coisas. O que predomina é a razão sobre a sensibilidade, o homem é impotente perante a morte, sendo incapaz de superá-la.
Bernardo Soares (heterônimo)
Considerado um semi-heterônimo (maior proximidade de temperamento);
Tendência a deixar-se absorver pela realidade, por impressões visuais que vai colhendo;
Seu mundo é cheio de sombras, mistérios e inquietações;
Tinha 30 anos, alto, desleixo no vestir, fumante. Levava uma vida suave, de afastamento, de entrega ao sonho. Ajudante de guarda-livros de um escritório  em Lisboa, tinha um especial interesse em observar aqueles que o rodeavam;
Afinidades estilísticas com Fernando Pessoa quando escreve em prosa; nos momento depressivos toma tons e temas de Álvaro de Campos e ideais de sabedoria cuja realização está em Alberto Caeiro.

Livro do Desassossego
Trata-se de um diário, caderno de notas de um empregado de escritório em Lisboa.  Fernando Pessoa define como uma autobiografia sem fatos onde a instância da ficção se faz insignificante diante das dramáticas reflexões.
Linguagem utilizada e algumas características:
Escrito em forma de fragmentos;
Prosa fragmentária, crônica do cotidiano;
Dramaticidade das reflexões humanas;
Diversos fragmentos são investigações íntimas das sensações provocadas pelo anonimato, pelo cotidiano de uma vida comum;
Construção de si mesmo;
Uma das obras fundadoras da ficção portuguesa no século XX.
   Razão e sensibilidade caminham juntas em toda a obra de Pessoa.  Se Pessoa tem a consciência de viver toda a vida e a vida de todos, como Soares, ele cria pessoas que pudessem, a partir de suas singularidades, vivenciar essa gama de sensações de forma mais particular e verdadeira do que se fosse sentida por um homem só, ou por uma só personalidade – de espírito e estilo.
A insinceridade é condição para uma maior sinceridade, assim como a ficção para uma maior realidade. Se Fernando Pessoa ficou conhecido como o maior fingidor, é pelo mesmo motivo que também foi o mais sincero.
  Observando os quatro heterônimos, é fácil notar que Fernando Pessoa – autor dotado de enorme singularidade – multiplicou sua voz poética em outras vozes diferentes e as tornou reais dentro no mundo imaginário da Literatura. Como irradiador desse movimento, autodenominou-se um “drama em gente”.

"Matar o sonho é matarmo-nos. É mutilar a nossa alma. O sonho é o que temos de realmente nosso, de impenetravelmente e inexpugnavelmente nosso".                                                                                (Fernando Pessoa) – Livro do Desassossego, página 112 – editora Atica, Lisboa, 1982
“A vida é o que fazemos dela. As viagens são os viajantes. O que vemos, não é o que vemos, senão o que somos”.
(Fernando Pessoa) – Livro do Desassossego, página 286 – editora Atica, Lisboa, 1982

“A renúncia é a libertação. Não querer é poder”.
(Fernando Pessoa) – Livro do Desassossego, página 286 – editora Atica, Lisboa, 1982

“... Como não te adorar se só tu és adorável? Como não te amar se só tu és digna do amor?
Quem sabe se sonhando-te eu não te crio, real noutra realidade; se não serás minha ali, num outro e puro mundo onde sem corpo táctil nos amemos, com outro jeito de abraços e outras atitudes essenciais de posse(s)? Quem sabe mesmo se não existirás já e não te criei nem te vi apenas, com outra visão, interior e pura, num outro e perfeito mundo? Quem sabe se o meu sonhar-te não foi o encontrar-se simplesmente, se o meu amar-te não foi o pensar-em-ti, se o meu desprezo pela carne e o meu nojo pelo amor não foram a obscura ânsia com que, ignorando-te, te esperava,  e a vaga aspiração com que, desconhecendo-te, te queria? Não sei mesmo já (se) não te amei já, num vago onde cuja saudade este meu tédio perene talvez seja. Talvez sejas uma saudade minha, corpo de ausência, presença de Distância, fêmea talvez por outras razões que não as de sê-lo.”
(Fernando Pessoa) – Livro do Desassossego, páginas 314/315 – editora Atica, Lisboa, 1982

“A arte mente porque é social. E há só duas grandes formas da arte — uma que se dirige à nossa alma profunda, a outra que se dirige à nossa alma atenta. A primeira é a poesia, o romance a segunda. A primeira começa a mentir na própria estrutura; a segunda começa a mentir na própria intenção. Uma pretende dar-nos a verdade por meio de linhas variadamente regradas, que mentem à inerência da fala; outra pretende dar-nos a verdade por uma realidade que todos sabemos bem que nunca houve”.
(Fernando Pessoa) – Livro do Desassossego, páginas 392 – editora Atica, Lisboa, 1982

“Há uma irritação latente conosco, parece, no mesmo ar inorgânico que nos cerca. Somos nós, afinal, que nos desapoiamos, e é entre nós e nós que se fere a diplomacia da batalha surda”.
(Fernando Pessoa) – Livro do Desassossego, páginas 88 – editora Atica, Lisboa, 1982
“Já que não podemos extrair beleza da vida, busquemos ao menos extrair beleza de não poder extrair beleza da vida. Façamos da nossa falência uma vitória, uma coisa positiva e erguida, com colunas, majestade e aquiescência espiritual. Se a vida [não] nos deu mais do que uma cela de reclusão, façamos por ornamentá-la, ainda que mais não seja, com as sombras de nossos sonhos, desenhos e cores mistas esculpindo o nosso esquecimento sob a parada exterioridade dos muros”.
(Fernando Pessoa) – Livro do Desassossego, páginas 397 – editora Atica, Lisboa, 1982

“Possuir é perder. Sentir sem possuir é guardar, porque é extrair de uma coisa a sua essência”.
(Fernando Pessoa) – Livro do Desassossego, páginas 397 – editora Atica, Lisboa, 1982

 “Tive um certo talento para a amizade, mas nunca tive amigos, quer porque eles me faltassem, quer porque a amizade que eu concebera fora um erro dos meus sonhos. Vivi sempre isolado, e cada vez mais isolado, quanto mais dei por mim”.
(Fernando Pessoa) – Livro do Desassossego, página 309 – editora Atica, Lisboa, 1982

“Todos temos por onde sermos desprezíveis. Cada um de nós traz consigo um crime feito ou o crime que a alma lhe pede para fazer”. (Fernando Pessoa) – Livro do Desassossego, página 316 – editora Atica, Lisboa, 1982

“A morte é a curva da estrada, morrer é só não ser visto”.

O MENINO DA SUA MÃE
Fernando Pessoa
No plaino abandonado
Que a morna brisa aquece,
De balas trespassado
Duas, de lado a lado,
Jaz morto, e arrefece
Raia-lhe a farda o sangue
De braços estendidos,
Alvo, louro, exangue,
Fita com olhar langue
E cego os céus perdidos
Tão jovem! Que jovem era!
(agora que idade tem?)
Filho único, a mãe lhe dera
Um nome e o mantivera:
“O menino da sua mãe”.
Caiu-lhe da algibeira
A cigarreira breve
Dera-lha a mãe. Está inteira a cigarreira.
Ele é que já não serve.
De outra algibeira, alada
Ponta a roçar o solo,
A brancura embainhada
De um lenço … deu-lho a criada
Velha que o trouxe ao colo.
Lá longe, em casa, há a prece:
“Que volte cedo, e bem!”
(Malhas que o Império tece”)
Jaz morto, e apodrece,
O menino da sua mãe.
(do livro “O Cancioneiro”)

Na Véspera
Fernando Pessoa
Na véspera de nada ninguém me visitou.
Olhei atento a estrada durante todo o dia
Mas ninguém vinha ou via, ninguém aqui chegou.
Mas talvez não chegar
Queira dizer que há
Outra estrada que achar,
Certa estrada que está,
Como quando da festa
Se esquece quem lá está.

No ciclo eterno das mudáveis coisas
(Pessoa em Ricardo Reis)
No ciclo eterno das mudáveis coisas
Novo inverno após novo outono volve
À diferente terra
Com a mesma maneira.
Porém a mim nem me acha diferente
Nem diferente deixa-me, fechado
Na clausura maligna
Da índole indecisa.
Presa da pálida fatalidade
De não mudar-me, me fiel renovo
Aos propósitos mudos
Morituros e infindos.

VII – O Guardador de Rebanhos
(Pessoa em Alberto Caeiro)
Da minha aldeia vejo quanto da terra se pode ver no Universo…
Por isso a minha aldeia é tão grande como outra terra qualquer
Porque eu sou do tamanho do que vejo
E não do tamanho da minha altura…
Nas cidades a vida é mais pequena
Que aqui na minha casa no cimo deste outeiro.
Na cidade as grandes casas fecham a vista à chave,
Escondem o horizonte, empurram o nosso olhar para longe de todo o céu,
Tornam-nos pequenos porque nos tiram o que os nossos olhos nos podem dar,
E tornam-nos pobres porque a nossa única riqueza é ver.

Ridículas
(Pessoa em Álvaro de Campos)
Todas as cartas de amor são
Ridículas.
Não seriam cartas de amor se não fossem
Ridículas.
Também escrevi em meu tempo cartas de amor,
Como as outras,
Ridículas.
As cartas de amor, se há amor,
Têm de ser
Ridículas.
Mas, afinal,
Só as criaturas que nunca escreveram
Cartas de amor
É que são
Ridículas.
Quem me dera no tempo em que escrevia
Sem dar por isso
Cartas de amor
Ridículas.
A verdade é que hoje
As minhas memórias
Dessas(*) cartas de amor
É que são
Ridículas.
(Todas as palavras esdrúxulas,
Como os sentimentos esdrúxulos),
São naturalmente
Ridículas.)

Gato Que Brincas Na Rua
(Fernando Pessoa – O Cancioneiro)
Gato que brincas na rua
Como se fosse na cama,
Invejo a sorte que é tua
Porque nem sorte se chama.
Bom servo das leis fatais
Que regem pedras e gentes,
Que tens instintos gerais
E sentes só o que sentes.

És feliz porque és assim,
Todo o nada que és é teu.
Eu vejo-me e estou sem mim,
Conheço-me e não sou eu.

Contemplo o Lago Mudo
(Fernando Pessoa – O Cancioneiro)
Contemplo o lago mudo
Que uma brisa estremece.
Não sei se penso em tudo
Ou se tudo me esquece.
O lago nada me diz,
Não sinto a brisa mexê-lo
Não sei se sou feliz
Nem se desejo sê-lo.
Trêmulos vincos risonhos
Na água adormecida.
Por que fiz eu dos sonhos
A minha única vida?
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