* Júlia Cortines (Brasil)





Do livro VERSOS (1894)

Soledade
Júlia Cortines

Poeta, dentro de ti, desmesurado e arcano,
Ou se cava, ou se empola, ou se espedaça o oceano
De tua alma, que exala um contínuo clamor,
– Brados de imprecações e soluços de dor!

Nele canta e suspira a lânguida sereia
Do Amor; a Mágoa geme; a Cólera estrondeia;
E a essas vozes se prende a dolorida voz
Da Saudade, chorando o que ficou após...

E em torno desse mar, que ulula, e chora, e guaia,
E que o vento revolve e a aresta dos escolhos
Rasga, do mundo vês a indiferente praia...

E acima dele vês a abóbada infinita
Do céu plácido e azul, onde o esplendor dos olhos
Das estrelas, sereno e distante, palpita...


Ruína
Júlia Cortines

Ontem, ereta e altiva, a laranjeira,
Que ora revejo, desatava a bela
E tremulante e verde cabeleira,
Que de flores Setembro adorna e estrela,
Acalentando às sombras perfumadas
Com doce embalo, músicos carinhos,
Um bando azul de aspirações aladas
Ainda presa ao calor dos ninhos.

Ontem sorria ao sol; tinha os perfumes
Promissores de frutos saborosos;
O indeciso bater de asas implumes,
Que se abririam em audaciosos
Voos, transpondo céleres a raia
De largos, infinitos horizontes,
Que, como um lago azul, se estende, e esmaia
Além das curvas dos longínquos montes...

Mas veio a noite, e veio a tempestade:
O chicote do ríspido nordeste
Estala-lhe no tronco, sem piedade
Dilacerando-lhe a opulenta veste!
E ei-la em farrapos, trêmula, torcida...
O clarão de um relâmpago se ateia,
O raio estoura, a chuva desabrida
Em torno dela em córregos serpeia...

E agora que a manhã desperta, e rindo
Soabre o cortinado do Oriente,
E co’o rútilo olhar aclara o infindo
Azul do céu, macio e transparente,
Ela, nua, de pé, para os espaços
Brunidos pelas cóleras do vento,
Ainda eleva os retorcidos braços,
Em um gesto de súplice lamento!

(1887)


Indiferente
Júlia Cortines

E vão assim as horas! – Vão fugindo
Um após outro os dias voadores,
Ao túmulo do olvido conduzindo
As alegrias como os dissabores,

O sonho agita as asas multicores,
E vai-se e vai-se rápido sumindo,
Enquanto a vaga quérula das dores
Soluça, e rola pelo espaço infindo...

A mim, porém a mim, a mim que importa,
A mim, cuja esperança há muito é morta,
Que o tempo, como um rio que se escoa,

Nos arrebate as ilusões que temos?!
– Deixo em descanso os fatigados remos,
E que o barco da vida boie à toa.

(1887)


A Vingança de Cambises
Júlia Cortines

“Disseram – diz o rei a Prexaspes – que o vinho
“Sobe presto à cabeça em denso torvelinho
“De vapores, e a febre, o delírio produz,
“Que irradiam no olhar uma sinistra luz,
“Ou, pouco a pouco, pelo organismo se entorna,
“Qual onda de torpor, voluptuosa e morna?
“Disseram; e tu tens a ousadia de vir
“Em face de teu rei palavras repetir
“De estultos, e afirmar que o vinho afrouxa braços
“Que fazem, como os meus, os reinos em pedaços?
“Ao contrário; verás; (e bêbedo entesou
“No arco a flecha) porém é preciso que aponte
“Um alvo: – o coração de teu filho.”
                                     E atirou,

Da criança, que nele o doce olhar fitava,
– Olhar que o etéreo azul do infinito espelhava,
Varando lado a lado o peito e o coração.

E o pai disse, curvando humildemente a fronte:
“– Nem de Apolo é mais firme e mais certeira a mão.”

(1888)


O Ninho
Júlia Cortines

Lembro-me ainda: foi numa gravura
Que vi de uma ave a prole pequenita,
Em roto ninho, que lançou da altura
O vento, a resvalar na crespa fita

De um rio. E a mãe a vê, e corre, e fita
Espavorida as águas; a amargura
Lhe estala o coração; por sobre a escura
Corrente paira e se retorce aflita,

Enquanto a onda indiferente desce,
Assim como impassível à demência
Das lágrimas, dos gritos e da prece,

Da vida o rio o ninho perfumoso
Das castas ilusões da adolescência
No arrebata e leva pressuroso.

(1887)


Via Dolorosa
Júlia Cortines

Alma, galgando vais o teu Calvário abrupto,
Em farrapos, em sangue, em lágrimas, em luto,
Por fragas arrastando, em convulsões de dor,
O lenho, que te verga ao peso esmagador.

Ruge em torno de ti a tempestade; o açoite
Do vento dilacera a cortina da noite.
Como um túrbido mar, roto pelo escarcéu,
Vês na altura rolar o proceloso céu,
E em baixo, à proporção que no espaço te elevas
Subir, rente a teus pés, um dilúvio de trevas,
Que a esperança afogou, e afogará até
A dor no turbilhão da crescente maré...

Mais um passo, e verás desse abrupto Calvário
No tope, em que branqueja um anônimo ossário,
Entre o olvido e o silêncio, o madeiro se erguer,
Onde vais, para sempre, exânime, pender...


Única Lembrança
Júlia Cortines
(À Memória de Minha Mãe)

Recordo-me de tê-la visto um dia,
De pé, no quadro azul de uma janela
Rasgada sobre a radiosa tela
Do horizonte, onde os olhos embebia...

Uma expressão benevolente ungia
Os seus lábios, e, assim como se aquela
Fronte de um anjo fosse, em torno dela
O sol um largo resplendor abria.

Foi momentânea, porém foi tão viva
A visão desse vulto angelical,
Que a distância a colore, o tempo a aviva,

E abre-se-me da vida no areal
De solitude cálida e aflitiva
Como um refrigerante palmeiral.

(1888)


Desencanto
Júlia Cortines

A alma me disse: –“Quero, sacudida
De inspiração nas asas, me elevar
Do tenebroso pélago da vida
Às profundezas do celeste mar,

Onde resplende a vaga azul, batida
De sol, e a Via láctea, a flamejar,
Entorna sobre a vaga enegrecida
As contas luminosas do colar.”

Quando desceu: –“Os céus a que subiste
De oiro e de azul em realidade são?
(Interroguei-a) Fala: o que é que viste

Ao fundo dessa rútila amplidão?”
–“Da treva apenas vi, surpresa e triste,
O ilimitado e lúgubre golfão...”



Júlia Cortines

Sobre o Ocaso, que a luz, refrangindo, avermelha,
Correm rapidamente as nuvens; fustigadas
Pelo açoite febril das agudas rajadas,
Que as enovela no ar e no ar as esguedelha!

E Vésper tremeluz, como branca centelha,
De momento a momento; e, quais brutas manadas,
Se atropelam, bramindo, as maretas iradas
Em torno do baixel em que minha alma ajoelha.

Ó estrela do amor, à porta rutilante
Do Ocaso para, opondo o resplendente olhar
À noite, que salteia o meu baixel errante!

Mas somes-te... e eis-me só... os abismos do mar
Tendo aos pés, e ao redor o vento sibilante,
E por sobre a cabeça o trovão a estourar...

(1888)


Suprema Dor
Júlia Cortines 
                 
I

Sob o golpe cruel, que não escolhe,
Bárbara, a morte muita vez a vida
De uma pessoa que adoramos colhe.

E a alma sentimos, de terror ferida,
Por circular e gélida muralha
De tênebras de súbito cingida

Mas pouco a pouco a sombra se descoalha
E rarefaz-se toda, ver deixando
Do firmamento a cérula toalha,

Donde um arcanjo, as asas desdobrando,
Desce num voo rápido... Ó saudade,
És tu que desces do alto, transmudando

A treva em radiosa claridade,
Na flor azul e mística do sonho
O curvo espinho da realidade!

O nimbo espesso, elétrico e medonho
Do sofrimento se dissolve em pranto,
Quando, num gesto plácido e tristonho,

Colhes as fibras do teu largo manto,
Às dores o consolador abrigo
Do teu regaço oferecendo; e, enquanto

As dores adormeces, do jazigo
Fazes surgir o morto que adoramos,
Em cujas fronte pálida, contigo,

Em sonho, os lábios úmidos roçamos...

II

Mas, quando de improviso nos salteias,
Ó traição, ó víbora assassina,
E o nosso incauto coração golpeias,

Tua verde peçonha viperina
O deteriora, ao sangue se mistura,
Percorre o corpo e o espírito alucina.

Pedido em meio de uma noite escura,
O sofrimento, da razão liberto,
Explose no delírio da loucura.

E ao desvairado e espavorido e incerto
Olhar, em qualquer parte a que o volvamos,
Sombrio quadro se apresenta aberto:

– No passado, se vê-lo procuramos,
Vemos a treda face condenada
Substituir a face que adoramos:

O presente é uma vaga enovelada
Pelo ríspido sopro da desdita,
Pelos escolhos do sofrer rasgada:

O futuro, uma estática e infinita
Solitude, por onde uma só fonte
Não desenrola a prateada fita;

Onde não há vegetação que aponte
À flor do solo adusto, nem miragem
Que nos ria da curva do horizonte

Acenando de longe co’a ramagem
De verdejante e música palmeira
Acarinhada por macia aragem...

Somente um mar de cálida poeira,
Que, sem barulho e agitação, espraia
As brancas ondas do infinito à beira,

Sob a inflamada cúpula sem raia...


A Tempestade
Júlia Cortines

Negro bulcão, acumulado a custo
Rola com seco e trêmulo ruído,
Enquanto uma ave, que acelera o susto,
Rompe os ares num voo distendido.

No tronco ereto, sólido, robusto,
O látego do vento, sacudido
Com força, estala, e o verga enfurecido;
E torce e quebra o delicado arbusto.

Convulso espanto a natureza envolve.
O adensado vapor, que se dissolve
Em grossas gotas, que caindo vão,

Cerra a toalha líquida e confusa...
Ruivo corisco, que a recorta e cruza,
Abre no espaço um vívido clarão...

(1888)


Versos de um Suicida
Júlia Cortines

Para que serve a luta pela vida,
Para que serve essa peleja inglória,
Se trazemos a fronte dolorida
Sob os louros sangrentos da vitória?

Se o espaço é um brônzeo círculo oprimente,
E do tempo arrastamos as cadeias
Entre agudos sarçais, inutilmente,
E movediços cômoros de areias?

Se as flamas radiosas dos talentos
Só iluminam cárceres de dores,
Donde das Mágoas erguem-se os lamentos,
E dos Ódios, os rábidos clamores?

Onde a Dúvida anseia; o Desvario
Geme; o Desejo a Tântalo semelha;
O Pranto desenrola o quente fio;
A Raiva impreca; a Súplica ajoelha?

Se a Traição, que se rebuça e adorna,
Assalta, como a víbora secreta,
O nosso coração, e nele entorna
Todo o veneno de que está repleta?

Se a Esperança, que além das permitidas
Alturas leva o seu voar insano,
Tomba, por fim, como Ícaro, fundidas
As asas pelo sol do desengano,

Que a vida assola, que lhe dá o aspecto
De lúgubre e aflitiva soledade,
Todas as flores desfolhando, exceto
A flor da melancólica saudade!

Melancólica flor! Tanto germina
Na estreita fenda de uma rocha ingrata,
Como sobre a tristíssima ruína
As suas roxas pétalas desata!

Vale a pena morrer: fugir do mundo
Às trilhas de selvática aspereza,
E mergulhar de novo no profundo
Abismo da profunda natureza.

Que, se a Morte não pode a humana essência
Erguer, voando, à abobada sidérea,
Ao menos nos dará a inconsciência
E o repouso no seio da Matéria.

(1887)


Dor Eterna
Júlia Cortines

O tempo – dizem – apaga
O prazer e o sofrimento
Sobre eles rolando a vaga
Sombria do esquecimento.

E transforma encantadores
Sítios, que tu, Abril, vestes
De uma gaze de esplendores,
Em sítios feios e agrestes.

E faz germinar nas águas,
Que bebe a gandra bravia,
O lírio, como das mágoas
Brota a flor da alegria.

E, no entretanto, contemplo,
Extática e dolorosa,
Entre os escombros de um templo
Desmoronado, caída

A ara ebúrnea, de que há tanto
Despenhou-se a idolatrada
Imagem, que vejo, em pranto,
De lodo vil salpicada...

Por isso, pungida à aguda
Pena, que o olvido não calma,
Diz à revolta, sanhuda
Onda do tempo a minha alma:

“– Rola túmida ou desfeita.
Que importa? – Como os granitos,
Conservo, pedaços feita,
Os caracteres inscritos.”

(1888)


A Violeta
Júlia Cortines

Um dia, à viva luz dos resplendores
   De brilhante arrebol,
Desci a meu jardim a ver as flores
   Beijadas pelo sol.

Olhei: abria a nacarada rosa
   As pét’las de cetim,
E reclinava a fronte langorosa
   O pálido jasmim.

Além, oculta, a cândida violeta
   Parecia fugir
À brisa voluptuosa, louca, inquieta,
   Que perpassa a sorrir.

Quando a rosa rolar no pó sem vida,
   Crestada e sem olor,
Feliz, não penderás enlanguescida,
   Mimosa e casta flor.

(1886)


A Magnólia
Júlia Cortines

Aberta, sobre a jarra cinzelada,
   Que as verdes folhas prende,
Se dobra enlanguescida, e a magoada
   E mesta fronte pende.

Não tem a alvura nítida do lírio,
   Nem as tintas da rosa,
Nem a suave palidez do círio
   Sua polpa mimosa.

Mas há nas brancas pétalas sem vida
   O congelado choro
Que, como fria lágrima retida,
   Reflete o brilho do ouro...

E o seu aroma cândido se exala...
   Se o aspiro e me debruço
Sobre ela, sinto rápido agitá-la
   Um trêmulo soluço...

(1886)


Destino
Júlia Cortines
(TH. Gautier)

Vê como a vida é feita! e como o andar do mundo
Nos lança cegamente em caminho diverso!
Qual maldito Judeu, um, por todo o universo,
Arrasta sem repouso o curso vagabundo;

Outro tem, como Fausto, um fado bem inverso:
Persegue da poltrona, olhando o azul profundo,
Sonho amargo e cruel, e, em seu pesar imerso,
Deixa a sonda medir-lhe a voragem sem fundo...

E, entanto, o que vagueia a sós tinha nascido
Para quieta existência: era a família, o lar,
O seu voto; mas Deus não o quis coroar.

O outro, cujo horizonte apenas a largura
Tem da estreita janela, é o triste foragido.
E ambos passam assim ao lado da ventura.

(1886)


Ilusões
Júlia Cortines

Parte-se alegre, e forte, e cheio de coragem.
A ventura? – Ei-la ali, acenando-nos perto! –
Um passo afouto dá-se, e a vaporosa imagem
Se esvai subitamente... e, de súbito aberto

A nosso olhar surpreso, um hórrido deserto
Se amplia; mas a sombra, as flores, a ramagem,
Ei-las de novo além – a pérfida miragem
Que nos seduz, e atrai, e alenta o passo incerto.

Depois a sede vem, o lábio seca, o ardente
Olhar percorre ansioso os áridos espaços,
Onde brilha e fulgura um sol incandescente...

E da fronte poreja o suor da agonia,
E estendemos debalde os doloridos braços,
Procurando prender a sombra fugidia...

(1886)


Asas
Júlia Cortines

Asas brancas, que à luz das roxas madrugadas
Torvelinhais no azul em doidas revoadas,
Asas fulvas, num voo espalmado subindo
Ao cálido esplendor do firmamento infindo,
Asas negras, da noite agitada e bravia
Batidas pela chuva e pela ventania,
Debalde vos procura o meu olhar! Que rumo
Levastes, asas de oiro e de arminho e de fumo,
Que vos não vejo mais, a vibrar, como outrora,
Pelo céu de minha alma, abandonado agora?!...


Diálogo
Júlia Cortines

A Razão

Transforma-te. Bem vês: nada há que seja eterno:
Fulge o verão e vai-se, e vem após o inverno,
Após a chuva, o sol abre um fulvo esplendor,
E se o riso gorjeia é que dormita a dor.

O Coração

Não sei se, porventura, essa lei o Universo
Abrange, e a tudo o que há dentro dele disperso:
A humanidade, a flor, a estrela; se à pressão
Tudo cede, afinal, de sua bruta mão;
Se em tudo, cedo ou tarde, uma mudança opera.
Sei que feito não fui da brandura da cera,
Mas da tenacidade altiva dos metais,
Que afrontam livremente os sóis e os temporais.

A Razão

Esquece. A flama ideal de todo o sentimento,
Quer seja brando e terno, ou sublime e violento,
Brilha, treme e se esvai... Pode, acaso, um olhar,
Sem fadiga e langor, sempre um ponto fitar?

O Coração

Que importa? Dês que em mim, ao golpe inopinado,
Como um leito de rio às súbitas cavado,
O sulco largo e fundo a desventura abriu,
Onde o rio do pranto, em torrentes, fluiu,
Uma treva mais densa ainda do que a treva
Que, em paredes de bronze, a escura noite eleva,
Sobre mim se fechou como um sepulcro, e a não
Iluminou sequer instantâneo clarão.

A Razão

Perdoa, que o perdão, qual fresco orvalho, rora
A alma que o incêndio atroz das cóleras devora,
E de perfumes unge, e bálsamos, e mel,
O lábio, onde fervia o amarulento fel.

O Coração

Perdoem – de si próprio um lembrando a fraqueza,
Outro, já que o não fere e revolta a baixeza –
Aquele que mentiu às promessas, que à flor
Do seu lábio fazia arrebentar o amor,
E aquele, em cujo ser adormentado e vago
Roça leve a emoção, como a brisa num lago.
Não menti, e hei sofrido asperamente; assim,
Essa palavra não tem valor para mim.


Paisagem
Júlia Cortines
(A Narcisa Amália)*

Na fulva luz crepuscular da raia
Do horizonte, onde avulta a cordilheira,
Imerge a crista azul e sobranceira,
Em ríspida ereção, o Itatiaia.

O Paraíba, rútilo, se espraia,
Desenrolando a serpentina esteira,
Que, arrufada à carícia da ligeira
Asa da brisa, marulhosa guaia...

Vésper pontilha o espaço fulgurante,
Se apaga e reacende, e enfim persiste
Trêmula e branca, solitária e triste...

Descora a luz, descora... e do Levante
Rolam da noite as ondas lutuosas,
Espumando o branco das nebulosas...

(1890)

(*) – poetisa e 1ª mulher jornalista no Brasil (1852-1924), escreveu  “Nebulosas”, livro de poesias.


A Uma Casa
Júlia Cortines

Ficas aí, oculta entre verdores,
Como ao ocultos e desfeitos ninhos,
Que não lembram os místicos rumores
Dos arrulhos, dos trilos, dos carinhos,
E nunca revelaram os terrores
Das horas em que foram, ao troar
Da tempestade, os tontos passarinhos
Num turbilhão levados pelo ar!

Ficas aí... e um súbito desgosto
Aviva-me o sofrer adormecido,
E, orvalhado de lágrimas, o rosto
Volvo a mirar o espaço percorrido,
Em que diviso um curto trecho, exposto
À luz de um dia fulgurante, e só
Em torno desse oásis florescido
Revoltas ondas de abrasado pó!...

Ficas, e a mesma rutilante e bela
Ilusão, que a profunda soledade
Iluminou-te, – qual cadente estrela
Irradiando viva claridade
Enquanto, presa à tenebrosa umbela
Da noite, em alto páramo reluz, –
Desce, e, ao tocar a ríspida verdade,
Morre, desfeita em lágrimas de luz!...

Ficas, e eu parto, e foge-te a festiva
Asa do sonho que abrigaste ao teto!
Vai-se a quimera resplendente e viva
Que coloriu-te o merencório aspecto!
Ah! por minha alma passa a convulsiva
E última e dolente vibração!...
Trouxa pra ti o coração repleto,
Levo de ti vazio o coração.

(1888)


Do livro VIBRAÇÕES (1905)

À Minha Musa
Júlia Cortines

Musa, toda a minha alma a tua alma retrata:
Se rio, o riso entreabre os teus lábios em festa;
Sofro, e sobre o palor da tua face mesta
Tristemente o colar do pranto se desata.

Sonho, e a mundos ideais o enlevo te arrebata...
E o que a minha alma admira, ama, odeia e detesta,
E ilumina-me o olhar e sombreia-me a testa,
O teu gesto traduz e a tua voz relata.

Quer te eleves no voo audaz do pensamento
E vás livre pairar das estrelas em meio,
Quer te embale de leve um brando sentimento,

Quer estejas alegre, atormentada ou calma,
É-me grato sentir que dentro do teu seio
Vibra o meu coração e palpita a minha alma.


O Lago
Júlia Cortines
A Julia Lopes de Almeida*

Um pouco d’água só, e, ao fundo, areia ou lama.
Um pouco d’água em que, no entanto, se retrata
O pássaro que o voo aos ares arrebata,
E o rubro e infindo céu do crepúsculo em chama.

Água que se transmuda em reluzente prata,
Quando, do bosque em flor, que as brisas embalsama,
A lua, como uma áurea e finíssima trama,
Pelos ombros da Noite a sua luz desata.

Poeta, como esse lago adormecido e mudo,
Onde não há, sequer, um frêmito de vida,
Onde tudo é ilusório e passageiro é tudo,

Existem, sobre um fundo, ou de lama ou de areia,
Almas em que tu vês apenas refletida
A tua alma, onde o sonho astros de oiro semeia.

(*) - contista, cronista, romancista e teatróloga (1862-1934),
mulher de ideias favoráveis à República e à abolição, pregava o amor à Natureza e, de forma delicada e sutil, escrevia sobre a discriminação contra a mulher.


O Anoitecer
Júlia Cortines
A Adelina Lopes Vieira

Tarde. O sol mergulhou no fúlgido ocidente.
Dúbia, frouxa, a hesitar, Vésper, – como se a clara
Luz intensa do ocaso a vista lhe ofuscara, –
Abre, a medo, no céu a pálpebra tremente.

Uma flecha de luz o firmamento vara
E refrange: há um tremor nas nuvens; bruscamente
Corre através do espaço um clarão rubro e quente:
De lado a lado o infindo horizonte se aclara...

A luz esvai-se. Após esse breve esplendor,
Ficam, como depois dum incêndio apagado,
Cinzas só, a boiar do firmamento à flor...

Noite. A terra emudece extática... e no azul,
Em sombrio veludo agora transmudado,
Brilha, sereno e grande, o Cruzeiro do Sul...


O Condor
Júlia Cortines

Dessa altitude, onde a voar te atreves,
Audaz, sustido pelas asas grandes,
Dessa altitude, para além das neves
Que refulgem nos píncaros dos Andes,
Se, acaso, o olhar indiferente fitas,
Longe, através da imensidão dos ares,
Mal percebes as terras infinitas
     E os infinitos mares...

Embaixo, entanto, do arvoredo as sombras
Tanta frescura têm, de aromas cheia;
Das relvas corre o arroio entre as alfombras;
As ondas espreguiçam-se na areia;
Verdeja o pampa ao sol; do vento ao brando
Ofego ondula murmura a floresta;
E no ar revoam, gárrulos, cantando,
     Os pássaros em festa.

Tu, galé da grandeza e do fastígio,
Tens ao redor e acima a vacuidade
Do espaço, e o céu azul, sem um vestígio
De nuvens no esplendor da claridade,
Sempre gelado e sempre emudecido:
– Vasto, triste e monótono cenário,
Onde tu pairas, como um rei banido,
     Imenso e solitário...


A Giacomo Leopardi
Júlia Cortines

Leio-te: e a triste e máscula poesia
Que dos teus lábios flui, dolente e forte,
Enche a minha alma de melancolia.

Como tu, nada vejo além da morte
No tormentoso pélago da vida
Que a uma plaga serena nos transporte.

Volvo, contigo, a vista entristecida
Ao silencioso pó da morta idade,
Que o mundo enchia de rumor e lida.

Punge-me a dor, lacera-me a saudade,
Quando tu cantas a inefável hora
Das quimeras da curta mocidade.

Sofres? Também minha alma sofre e chora:
Prélios inúteis, ilusões desfeitas,
Toda a miséria do viver deplora.

Quanta amargura nesse olhar que deitas
À glória vã, que atrai, seduz e passa,
E às almas, todas ao sofrer sujeitas!

Bebo também do tédio a amara taça,
E sinto, quando a tua angústia leio,
Que esse teu coração, que a dor enlaça,

Palpita dentro do meu próprio seio.


Entre Abismos
Júlia Cortines

Mistérios só, de um lado, e sombras...
                         Em seguida,
A estrada tortuosa e aspérrima da vida,
Onde impreca a Revolta, onde brada o Terror,
Onde geme a Saudade e se lastima a Dor,
E, co’o gesto convulso e os traços descompostos,
Batidos pelo vento, à tempestade expostos,
Atropelam-se, em doida e febril confusão,
O Desespero, a Raiva, a Cólera, a Paixão,
Cujo concerto de ais e de pragas abala
O espaço, emudecendo o temporal que estala...

Do outro lado, somente o tenebroso mar
Da morte, em que por fim tudo irá se atufar...


O Tempo
Júlia Cortines

Passas, leve e sutil, sem trégua e sem cansaço.
Passas, e de teus pés vem rolar sob a planta
Tudo o que ri e chora e se lastima e canta.
Uma esteira de pó fica após o teu passo...

Quanta angústia desfeita em lágrimas, e quanta
Ilusão, que embalou um’hora o teu regaço,
Não pensaram, ness’hora inolvidada e santa,
Seguir contigo a estrada infinita do espaço!

E ao término fatal levaste-l’as, no entanto.
O monumento eril rui à tua passagem,
E transmuda-se em sombra a mais brilhante imagem.

Tarde ou cedo destróis tudo o que existe: o pranto
Secas, sustas o riso, e emudeces o grito
No lento caminhar através do infinito...


O Sonho
Júlia Cortines

“Vem! – o Sonho me diz, e a sua mão me acena –
Sobre uma asa que vibra, e se estende, e se eleva,
Sobe! sobe! e à região afastada e serena
Das estrelas o voo ousadamente leva!

A vida corre sempre amargurada ou seva;
A esperança atraiçoa e a paixão envenena.
Nada vale a embriaguez da poesia que enleva...
Paira acima da terra onde habitas, sem pena.

É mais formoso e puro o país da quimera:
– O aroma fresco, o céu azul, a aragem branda;
Asas fremem à luz de um sol de primavera.

Glória, vida e prazer, tudo esse mundo encerra.
– Pensa, ó alma infeliz, ó alma miseranda,
Que nada existe assim sobre a face da terra.”


Uma Voz
Júlia Cortines

Ouço um como ruflar d’asa trêmula. Agora,
Como o crebro rumor da vaga que se agita
E à praia vem rolar num som que freme e chora,
Chora e freme em redor essa voz infinita.

Ora exala-se em tons suavíssimos, ora
Tem o surdo bramido, a lancinante grita
De torrente que ferve e que se precipita
Pelo áspero pendor de uma floresta afora...

Donde vem essa voz em que a prece cicia,
Em que se sente o arfar do trêmulo cansaço,
Em que vibra o clamor da cólera bravia?

Donde vem essa voz que eternamente o ouvido
Me fere? donde vem? – Do céu talvez, do espaço,
Ou do fundo talvez de um coração partido...


À Noite
Júlia Cortines

Lenta, no ocaso, a púrpura da tarde
Se apaga. A derradeira flama que arde,
De oiro franjando as nuvens, se esvaece...
   E a noite sobe, ganha,
Pouco a pouco, em silêncio, o espaço, e a umbela,
   Tenebrosa e tamanha,
Abre no céu, onde, a furto, uma estrela,
   Tremendo, resplandece...

   No silêncio e na treva
A natureza plácida mergulha,
E, deslembrando o resplendor e a bulha,
   A alma, em voos, se eleva
Ao mundo da ilusão e da poesia.
Tudo parece adormecido em torno;
Somente pelas árvores cicia
Da brisa o sopro embalsamado e morno...

   Mas a calma e o repouso
Da vasta noite, tácita e estrelada,
Alguém perturba... É a imagem que domina
Minha alma, ante ela, súbito, enlevada...
Fala: e o silêncio a sua voz povoa;
Olha: e a sombra da noite se ilumina
À clara luz que o seu olhar radioso,
   Por entre os cílios, coa...

Vejo-a na solidão de minha vida
Erguer-se, como uma árvore gigante
Numa planície sáfara e despida;
Como uma ilha, surgir, verde e ondulante,
À flor das águas de desertos mares;
Dominar, como um pássaro que expande
As largas asas, solitário e grande,
   Na amplitude dos ares...


Dor Secreta
Júlia Cortines

Musa, cerra o teu lábio, e, indiferente e enxuto,
   Abre o límpido olhar.

Que essa dor, que te morde o coração em luto
   E que o faz sufocar,

Nem de leve contraía o teu plácido rosto.
   Cala o acerbo sofrer.

Cala, Musa, esse amargo e profundo desgosto
   Pior do que o morrer.

Nem uma queixa, um grito, uma súplica, um canto,
   O revele jamais.

O momento chegou de reter o teu pranto
   E abafar os teus ais.


Por quê?
Júlia Cortines

Se é do homem o sombrio e implacável fadário
Caminhar através do caduco e precário;
Se após a embriaguez, que produz a ilusão,
Só lhe resta o amargor duma atroz decepção;
Se a meta desejada, em vitorioso adejo,
Jamais atingirá a asa do seu desejo;
Se em tudo o que o seduz no presente, amanhã
Não verá seu olhar mais que uma sombra vã;
Por que, ó Natureza, essa surda ansiedade
De sentir, de gozar por toda a eternidade?
Por que do bem, do amor e da glória correr
Empós, sem conseguir em seu voo os deter?
Por que, num desespero e uma ânsia de proscrito,
Os braços estender para o azul do infinito?!...


A Um Coração
Júlia Cortines

Dize: o que é que te eleva agora, e te sustenta
Acima, indiferente à fúria da tormenta,
E te faz, descuidoso e feliz, palpitar,
Surdo ao bravo clamor do atormentado mar?

A esperança? Nem hás de entrever a esperança
Como um raio de sol através de uma frança.
Na taça que a beber o futuro te der
Leve saibo de mel não sentirás, sequer.
Nunca mais sob um céu azul de primavera
Verás abrir-se a flor da divina quimera!

Nunca mais! E, contudo, um estranho sentir
Te levanta, e te faz palpitar, e fremir...


Desiludida
Júlia Cortines

A negra nuvem da melancolia
Te ofusca a fronte... Peregrina e bela,
De teu olhar a luz, glauca e sombria,
Lembra as ondas que o vento encarapela.

Que importa que teu lábio nos sorria,
Se em teu sorriso a mágoa se revela,
E se traduz a fúnebre elegia
Do sofrimento que teu peito encela?

Quem te levou, ó mísera criança,
De um céu azul, de sonhos irisado,
À noite umbrosa da desesperança?

Que mão foi essa, desumana e fera,
Que ante o teu doce olhar enamorado
Dilacerou a teia da quimera?


Renúncia
Júlia Cortines

Eu não venho, através da sombra que te vela,
Deus, ilusão cruel, à face soberana
Lançar-te, num clamor, que fustiga e flagela,
   Uma blasfêmia insana;

Nem revoltar-me em vão contra a fatal certeza
De que ides nos tirar o que há pouco nos dáveis,
Da indiferente e bruta e cega natureza
   Férreas leis implacáveis.

Nada espero de vós, nem para vós se lança,
Ó potência brutal, ó deidade sombria,
Numa súplica vã, numa vã esperança,
   Minha alma na agonia!


Vencida
Júlia Cortines

Eis-te, enfim, vitoriosa, ó Dor, ó implacável
   E eterna companheira,

Que caminhaste sempre a meu lado, incansável,
   Pela existência inteira!

Como d’antes, o olhar levantado não tenho,
   Num varonil impulso,

Perante o teu sombrio e atormentado cenho
   E o teu gesto convulso.

Do grande mundo ideal das ilusões proscrita,
   Sobre as asas da crença,

Voar, longe de ti, a uma plaga bendita,
   Já minha alma não pensa;

Tão amargo e profundo é o que ela agora sente...
   Ante essa arma homicida

Que empunhaste afinal, vitoriosa e potente,
   Eu me curvo vencida.


Eternidade
Júlia Cortines

Eternidade d’alma! ilusória miragem,
Que a alma busca através da crença e do terror,
A idear uma calma ou sombria paragem
De infinito prazer ou de infinita dor!

Por que há de haver além, noutro mundo distante,
Um prêmio eterno para a virtude mortal?
E para o ser que vive apenas um instante
Por que há de ser eterno o castigo do mal?

Que outros pensem que um dia a efêmera ventura
Eterna possa ser, e o efêmero pesar.
Que outros pensem que irão na constelada altura,
Co’outra forma e outra essência, a vida renovar...

À minha alma debalde essa ilusão convida.
Sem crença e sem terror, é-lhe grato saber
Que por destino tem, sobre as ondas da vida,
Um instante boiar, e desaparecer...


Fracos
Júlia Cortines

Fracos, odeio a inércia e detesto a fraqueza.
Prefiro a mão que esmaga ou que vibra o punhal
À doce e inconsciente e nefasta moleza,
Que é para a alma do forte um veneno mortal.

Como de encontro à costa, em ondas remansadas
Chora o mar, ou se atira em bravos vagalhões,
Assim de encontro a vós, almas adormentadas,
Fremem de ódio e de amor os nossos corações.

Almas fracas, fugindo à aspereza das lides,
Sem um esforço para às correntes opor,
Pelo rio do tempo arrebatadas ides,
Desta ou daquela vaga a boiar ao sabor.

Que vos importa a vós a agonia da luta,
A ânsia de possuir, o infinito aspirar?
Que vos importa a vós a decepção que enluta,
Se não sabeis querer, nem sabeis adorar?!


Interrogação
Júlia Cortines

Contemplo a noite: a cúpula estrelada
Do firmamento sobre mim palpita;
Meu olhar, que a interroga, embalde fita
O olhar dos astros, que não veem nada:

“Nessa amplitude lôbrega e infinita
Que inteligência ou força inominada
Numa elipse traçou a vossa estrada,
Estrelas de oiro, que o mistério habita?

Dizei-me se, transpondo a imensidade,
Alguma coisa a vós minha alma prende,
Um vínculo de amor ou de verdade.

Dizei-me o fim da nossa vida agora:
Para que serve a luz que em vós resplende,
E a oculta mágoa que em meu seio mora?...”


Esfinge
Júlia Cortines

Olha! Levanta agora a pálpebra descida
E o segredo desvenda, enfim, do teu olhar!
Fala! Descerra a boca, há tanto emudecida,
Deixa o segredo, enfim, da palavra escapar!
Olha! fala! estremece! O meu olhar atento
Vai-te da imota fronte ao imoto coração,
Buscando surpreender um fugaz movimento
Que revele o sofrer ou que traia a paixão.


Alma Solitária
Júlia Cortines

O que sentias era o que ninguém sentia:
– O ódio, o amor, a saudade, a revolta tremenda.
Não há ninguém que te ame e te console e entenda.
Ninguém compartilhou tua funda agonia.

A alma que possuir acreditaste, um dia,
Indiferente, vai a trilhar outra senda.
Do infinito deserto ergueste a tua tenda
Em meio à solidão da paisagem vazia...

E ora num voo audaz, ora num voo incerto,
Entre o fogo do céu e a areia do deserto,
A asa da aspiração finalmente cansou...

Mas a tua ansiedade e a tua angústia acalma.
– Sobre o abismo cavado entre as almas, ó alma,
Ninguém, para transpô-lo, uma ponte lançou.


A Um Cadáver
Júlia Cortines

Eis-te, enfim, a dormir o teu sono de morte:
Semicerrado o olhar, as pupilas serenas,
Na atitude de quem nada teme da sorte,
Deslembrado do amor e esquecido das penas.

Nada pode turbar-te em teu repouso: estala
O raio, a lacerar das nuvens os vestidos;
No espaço a luz se extingue, o estampido se cala,
Sem vir ferir-te o olhar ou ferir-te os ouvidos.

Livre, afinal, da vida a que estava sujeito,
Teu calmo coração nenhum afeto encerra,
E, em pouco, como tu, ele estará desfeito
Sob o espesso lençol da camada de terra...

A afeição, que, fiel, te acompanhava, deve
Ficar, a pouco e pouco, à tua ausência alheia.
Passaste; e o esquecimento há de apagar, em breve,
O sinal que o teu passo imprimiu sobre a areia...

Que importa? Estás dormindo o teu sono de morte:
Semicerrado o olhar, as pupilas serenas,
Na atitude de quem nada teme da sorte,
Deslembrado do amor e esquecido das penas.


Enfim!
Júlia Cortines

Inclina, ó poeta, um pouco a tua fronte e escuta:
Esse pego da vida, em que tu vais boiando,
Parece se tornar lentamente mais brando,
Exaurido talvez da porfiada luta.

Já se não ouve mais o seu lamento, quando
De nimbos todo o céu a tempestade enluta,
E nem do vento já sob a vergasta, em bruta
Sanha, vai, em clamor, as penhas escalando.

Ele acalma, piedoso, os ásperos rumores
P’ra teu corpo levar, sem quebrá-lo ou feri-lo,
À plaga onde não há sobressaltos nem dores;

Onde, vendo-te inerte e sem voz e sem pranto,
Sobre o teu coração, finalmente tranquilo,
Virá abrir o Olvido, em silêncio, o seu manto...


Ao Sol
Júlia Cortines
A LÚCIO DE MENDONÇA.

Foi noutro tempo, ó Sol, noutra idade distante,
Que o teu flanco expeliu esta terra que habito,
Que a ti prende a atração, e arrastas triunfante
   Pelas estradas do infinito.

É por ti que ela existe, e que nela pulula
A vida, pai da luz, do som, do movimento,
E que a planta germina, e que o sangue circula,
   E que palpita o pensamento.

Tu fizeste subir, de vitória em vitória,
Do bruto e cego instinto a humana criatura
Té à vida do amor, té à vida da glória,
   Da consciência e da amargura.

Debalde ela, porém, teu mistério interroga:
– “Ó Sol, sobre a minha alma agitada e fremente,
Que num mar de incerteza e de angústia se afoga,
   Por que é que ris indiferente?

Valia a pena, acaso, arrancá-la do nada,
Valia a pena, acaso, acordá-la do sono
Em que jazeu, no Todo imenso mergulhada,
   Para deixá-la no abandono,

Sobre a terra, tateando a densa escuridade
Em que se perde o fim e o princípio da vida,
Ou empós a correr, numa doida ansiedade,
   Duma ilusão, nunca atingida?

Mas por que levantar meus inúteis clamores,
Se tu não tens olhar e se não tens ouvidos
Para ver o meu corpo alanceado de dores
   E para ouvir os meus gemidos?

Se nem sabes, sequer, que nesses céus profundos
É teu fado acender um resplendor sidéreo,
E girar em redor, centro de tantos mundos,
   De um outro centro de mistério?!...”


Por toda a Parte
Júlia Cortines

Interrogaste a vida: interrogaste o arcano,
Misterioso sentir do coração humano;
A mesta palidez serena do luar;
O murmúrio plangente e soturno do mar;
O réptil, que rasteja; o pássaro, que voa;
A fera, cujo berro as solidões atroa;
A desenfreada fúria insana do tufão;
A planta a se estorcer numa atroz convulsão.
Interrogaste, enfim, tudo o que existe, tudo:
O que chora, o que vibra, o que é imoto, o que é mudo.
Do astro eterno baixaste à transitória flor.
Que encontraste, afinal?
                      – A dor! a dor! a dor!


Dies Iræ
Júlia Cortines

A esse som de trombeta e de alarma, quem há de
Dormir? Mortos, deixai a paz da sepultura
E acorrei: o que ouvis é o clarim da Saudade!

De pé! de pé! de pé! Despedaçai a dura
Lousa que sobre vós lançou o esquecimento,
Espectros do sofrer, fantasmas da ventura!

Ó divina ilusão, que um único momento
O fulgor da tua asa ante os meus olhos passe,
Deixando-os num enlevo e num deslumbramento!

Meu amor, meu amor, anima-te! renasce
Da cova em que a traição te sepultou um dia,
E une ainda uma vez a face à minha face!

Como o meu coração, em ânsias, se estorcia
Às tuas rudes mãos, fá-lo estorcer-se agora,
Minha lenta e penosa e tremenda agonia!

Todas vós que a minha alma agitastes outrora,
Ó esperança, ó alegria, ó tristeza, ó ansiedade,
Acudi a essa voz que, vibrante e sonora,

Faz rolar pelo espaço o clarim da Saudade!


Última Página
Júlia Cortines

Antes de mergulhar no silêncio da morte,
Ou da idade sentir a fraqueza e o torpor,
Eu quisera lançar, num supremo transporte,
Meu grito de revolta e meu grito de horror.

Mas sei que por mais forte e por mais estridente
Que ela corra através do infinito, até vós,
Ó céus, que além brilhais numa paz inclemente,
Nem qual brando rumor chegará minha voz!

Mas sei que não há dor que a natureza vença,
E que nunca a fará de leve estremecer
Na sua eternidade e sua indiferença
O lamento que vem dum transitório ser.

Mas sei que sobre a face execrável da terra,
Onde cada alma sente, em torno, a solidão,
Esse grito, que a dor duma existência encerra,
Não irá ressoar em nenhum coração.

Contudo, num clamor de suprema energia,
Eu quisera lançar minha voz! Mas a quem
Enviar esse brado imenso de agonia,
Se para o compreender não existe ninguém?!


Poemas Inéditos

Regret
Júlia Cortines

Está findo o combate. Eu venci e, contudo,
Vencedora eu me sinto igualmente vencida...
Cada gesto me traz um sofrimento agudo,
Dá-me em meio do peito uma larga ferida.

E com que intrepidez, com que audácia e energia,
Não me lancei da vida à aspérrima batalha!
Nem me atemorizou a boca que rugia,
Nem o brilho da espada e o estrondo da metralha.

Para no alto plantar, ufana, aos quatro ventos,
Desfraldada a bandeira ofuscante da Glória,
Galguei por entre o fumo, e as pragas, e os lamentos
A estrada que conduz ao cimo da vitória.

E venci. E, contudo, eu me sinto vencida...
Antes ser como quem à fraqueza se entrega,
E rolar pelo solo à primeira investida,
E morrer à explosão da primeira refrega!


Numa Ilha
Júlia Cortines

Alguns palmos de terra. Em redor, a planura
Das águas, ora verde, em marulhos, rolando,
Ora aos raios do sol a prumo, desdobrando
Do seu lençol de prata a ofuscante brancura.

Panda a vela, um batel foge a distância... Quando,
Transpondo o ocaso, o sol que agoniza e fulgura,
Vai, em brando temor, numa planície escura
Longo rastro de sangue e púrpura deixando...

O crepúsculo sobe e, estrelando o infinito,
Sobre as águas estende o seu véu flutuante,
Que envolve os troncos nus da floresta dos mastros...

Agora a treva. E nem uma voz, nem um grito,
Que desperte, vibrando alegre ou suplicante,
O sossego da noite e a placidez dos astros...


Em Vão
Júlia Cortines

É a ilusão, bem vejo: em tua fronte
Inda fulge um resplendor de aurora.
Tens o mesmo sorriso com que outrora
Deliciavas a minha alma insonte.

Debalde apontas para além do monte
Prainos que a ardência do verão enflora;
Asas vibrando pelos céus em fora,
Céus sem nuvens, sem raias o horizonte...

Esta grandiosa e esplêndida paisagem
Desenrolada a meu olhar – miragem
De intensidade e luz – que importa a uma alma

Que só deseja, antes da noite escura,
Haurir da tarde um pouco de frescura,
Gozar um pouco do silêncio e calma?!
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