Livro Luz de Minha Vida - BENEDICTA DE MELLO (1955)

 



Luz de minha vida (1955)

BENEDITA DE MELLO

(grafia da época)

 

PRIMEIRA PARTE

 

MEUS VERSOS

 

Êstes meus versos não terão beleza.

São versos pobres e descoloridos;

mortiça chama, sôbre a campa acesa,

resto de instantes sem amor vividos.

 

Lembram grilhões a que tenho a alma prêsa;

morrão de cinza de meus tempos idos;

foram cantados a embalar tristeza,

não foram feitos para serem lidos.

 

São versos nossos, meus e teus sòmente.

Verdade nossa, muito nossa e crua.

Não pode ouvi-la, quem amor não sente.

 

História amarga que não foi cantada,

e encerra apenas minha vida e a tua.

Tu, menos eu, mais eu, sem ti. Mais nada.

 

 

PERGUNTAS

Eu queria saber o que era amor

e a todos quantos via perguntava:

— ao velho, ao jovem que na vida entrava,

ao inocente, ao justo, ao pecador.

 

De minha mãe às vêzes, indagava.

Ela estranhando, repetia: "Amor?!"

"Leia o vocabulário" — me ordenava

o meu velho e sòzinho professor.

 

Fui percorrer então o dicionário:

— Amor... amor... amor... sentido vário

de mil explicações em labirinto...

 

Não cheguei a entender. E fiquei triste.

Ou o amor em verdade não existe,

ou só existe aquêle amor que eu sinto.

 

 

AMOR ESTRANHO

 

E’ um amor difícil de entender,

êste amor que hoje tenho e sempre tive.

Nem causa tem, nem tem razão de ser.

Não acha quem procure, ou quem se esquive.

 

Mora em quem vive e mora em quem não vive.

Ninguém o faz minguar nem faz crescer.

Ninguém há que o liberte, que o cative,

e não quer ser querido, — quer querer.

 

Êste amor esquisito que é só meu,

é um bem de raiz que DEUS me deu...

e nem eu sei porque me dá prazer.

 

E’ curta e eterna a sua triste história!

— Só teve uma derrota, que foi glória.

— Só uma vez sorriu: — para morrer.

 

 

RELÓGIO

 

Tôda a nossa ventura enternecida,

meu relógio a marcava hora por hora.

O dia em que tornaste à minha vida,

o amargo instante em que te foste embora.

 

Não gosto dêle. Continua a lida,

contando o tempo em que te encontras fora.

Por que não pára se me vê sentida

e me entristece a sua voz sonora?

 

Quero um relógio assim como o arco-íris,

que vem ou vai, com horas singulares.

Compra-me um desses, quando acaso o vires...

 

Um que tenha expressão enquanto o olhares.

E que se atrase antes de tu partires,

e que se adiante para tu voltares.

 

 

AGRADECIDA

 

Eu agradeço ao Deus Onipotente,

o sentir as belezas que não vi;

a suprema alegria de ser crente,

e saber a razão porque nasci.

 

Eu agradeço mais profundamente,

quanto me levantei — porque caí.

Agradeço as angústias do presente,

que são penas de amor vindas de ti.

 

Eu agradeço ao coração do amigo

que no instante da angústia ou do perigo,

nunca fugiu e nunca me enganou.

 

Eu agradeço a Deus a faculdade

de pensar, de querer, de ter vontade,

de não ser nada — mas de ser quem sou.

 

 

MUITO OBRIGADA

 

Muito obrigada pelo bem de outrora,

que me faz recordar-te no presente.

Muito obrigada pelo mal de agora

que me ensinou a amar-te tanto, — ausente.

 

Muito obrigada porque de hora em hora

mentiste um pouco mais sinceramente;

porque sabes mentir para quem chora,

porque mentindo me fizeste crente.

 

Muito obrigada pela falsidade

que me veio acordar o instinto inerte

contra os espinhos da infidelidade.

 

Muito obrigada porque posso ver-te

dentro do negro mundo de Saudade

que eu não teria nunca sem perder-te.

 

 

DÁDIVA

 

Eu te dei tudo quanto pude, em vão.

Tentei satisfazer tua vontade.

Pediste-me atenção, dei-te amizade.

Pediste-me o meu braço, dei-te a mão.

 

Pediste-me carinho e dei-te então

muitos minutos de felicidade.

Mas queria ainda mais tua vaidade

e me pediste um dia o coração.

 

Eu dei-te o coração e dei-te a vida,

numa promessa tão comprometida

que nem de mim fiquei a ser senhora.

 

E’ muito tarde para o lamentar.

Não tenho nada mais para te dar,

senão o mundo que jogaste fora.

 

 

A CASA QUE FOI NOSSA

 

Minha casa tem hoje o que antes tinha

quando era testemunha dos teus atos:

— um mobiliário velho, dois retratos,

quatro cadeiras numa varandinha.

 

Não é como eu queria, em meio aos matos,

com a rôla queixosa por vizinha.

Mas tem, assim, despida de aparatos,

a grande qualidade de ser minha.

 

Tem gerânios plantados no canteiro,

uma árvore de flor muito amarela.

O aroma sonhador de um jasmineiro;

 

tiras azuis de céu, pela janela.

A presença leal de um perdigueiro,

eu e tua lembrança dentro dela.

 

 

SONHO

 

Dois corações amigos, lado a lado...

Há sussurros de vozes... Morre o dia...

Aquecidos na cinza do passado,

não sentem ambos como a noite esfria...

 

Êle não se cansou de tê-la amado.

Ela ainda agora o quer como o queria,

e há cinquenta anos já foi seu noivado.

Só lhes morreu, do Amor, a Fantasia...

 

Eu também desejei igual ventura:

envelhecer ao pé da criatura,

a quem dei para sempre o meu amor...

 

Que a morte de um marcasse do outro o fim,

e que a dor de eu perdê-lo ou êle a mim,

fôsse na vida a derradeira dor.

 

 

EU FUI — ELA

 

Eu fui "ELA". Uma quadra em tua vida,

uma palavra simples e era tanto,

que andando à farta no teu riso e pranto,

não se gastou jamais, de repetida...

 

"ELA"... dizias. "ELA"... a mais querida,

quando me deito e quando me levanto...

E assim cresceu por mim o teu encanto,

sem reservas, sem tréguas, sem medida...

 

Alguns anos depois que nos casamos,

amando outra mulher, escreves: "ELA"...

— "ELA" não quer que juntos estejamos...

 

Aquêle "ELA" era eu, noutro sentido...

Numa palavra breve como aquela,

pudeste ser sincero e ser fingido!...

 

 

A MESMA

 

Não procures saber se estou melhor agora...

Sou ainda quem fui e me quiseste assim.

Busca em ti a razão da suposta piora.

Sou igual, não mudei. Podes fugir de mim.

 

Eu não fui boa nunca e nunca fui ruim.

O tempo é que, ao passar, tudo cora e descora.

Êle cria contraste entre princípio e fim

e muda a face a tôda vida, entre hoje e outrora.

 

Não pode erguer-se a luz numa alma de mulher,

quando o olhar de quem ama ali não a procura.

Tudo aquilo que existe, existe onde se quer.

 

Até num sêr informe achamos formosura.

Abraça-te contente ao que a vida te der,

e na própria desgraça hás de encontrar ventura.

 

 

MÊDO

 

Vinte e três horas já. Uma avezinha

pia na sua alcova de folhagem

na noite escura de álgida engrenagem.

Todos têm companhia. Falta a minha...

 

Escrevo duas, três, mais uma linha.

Receio tudo. Falta-me a coragem...

Tenho mêdo que venham de passagem,

bater-me à porta de mulher sozinha.

 

Com seu calor sereno de bonança,

o teu nome acompanha-me a lembrança,

pondo alegria e luz em tôda a parte.

 

Vens... Enlaço-te... E’ tarde... E acho que é cedo...

Não sei se tenho mêdo de ter mêdo

ou se este mêdo é que me ensina a amar-te.

 

 

A GRAVATA

 

Fui encontrar no chão, abandonada,

certa gravata que te dei outrora

e que por estar feia e desbotada,

deitaste a um canto quando foste embora.

Ela foi como eu fui, a ti ligada,

por um abraço já desfeito agora.

Foi como eu fui, um dia desprezada.

Não tive jeito de jogá-la fora.

Gostaste dela e dela desgostaste...

Guardo-a comigo então. Pois em verdade

sou também coisa que tu rejeitaste.

Hoje não sou mais uma, somos duas,

e valemos nas horas de saudade

pobres gravatas que já foram tuas.

ÚLTIMO DIA

Para quem teve um dia que nascer,

sempre outro dia ansioso e feio o espera;

um dia mau, com garras de pantera

que o deixa vivo e extingue o seu viver.

E’ um certo dia em que a desgraça gera

uma negra vontade de não ser.

Dia que esmaga, arruína e dilacera,

dia de morte para não morrer.

Dia que vem amortecer a vida...

Chuva de fogo num jardim em flor...

Ecos de adeus na noite da partida,

relógio que só marca horas de dor,

— dia em que morre uma ilusão querida,

último dia do primeiro amor.

EQUÍVOCO

Eu fugia de ti, do que era teu,

anciosa de expulsar-te da memória...

— Pronto! Esqueci-o... nosso amor morreu!

Exclamava eu feliz... cheia de glória.

— Esta separação é provisória...

diziam-me a sorrir. Negava eu.

Depois ia contando a nossa história,

dizendo tudo como aconteceu.

Dizia o que fazias e eu fazia...

Como, amando-te tanto, eu te fugia...

como agora de tudo me curava.

E havia tintas de contentamento,

quando eu assegurava o esquecimento...

Sem lembrar que assim mesmo te lembrava.

SEMPRE

Aquele abandonar-me um certo dia,

aquele ADEUS para uma vida inteira,

não foi verdade — AMOR, foi brincadeira

em que jamais eu acreditaria.

Tua voz, ouço-a ainda como a ouvia...

Tua respiração, a noite inteira

sinto-a junto de mim, queira ou não queira...

E vejo-te no sonho, na poesia...

E estamos para sempre separados.

Tu distante de mim, dos meus cuidados,

fingindo sempre o mesmo mal-querer...

E eu enganando a tôda a humanidade,

sempre a fugir de ti sem ter vontade,

sempre a dizer que posso e sem poder.

QUADRO AMARGO

Perdi-te, e estás comigo. Em tôda a parte

procuro-te sòzinha, vida em fora.

Parece-me, ao chegar, que fôste embora,

contigo no meu peito, ando a buscar-te.

O grande amor, a devoção e a arte,

com que tranquila eu te prendia outrora,

já não tem fôrça para conquistar-te.

Tudo o que ontem valeu, não vale agora.

Meu desgraçado amor, dormente, lasso,

à prova mais singela não resiste.

E’ ausência apenas, frígido cansaço.

E nas cinzas da jura não cumprida

resta sòmente o quadro amargo e triste

de um homem falso e uma mulher traída.

ABANDONO

Sim. Deixaste-me tudo o que possuías,

quando me pretendeste abandonar:

tôdas as coisas do modesto lar,

companheiras caladas dos teus dias.

E assim, talvez por tudo me deixar,

tu me deixaste as tuas alegrias,

que já me vieram tôdas procurar,

por não saberem onde te acharias...

Tudo deixaste, tudo o que era teu,

quando a mim me deixavas, sem saber,

que eu era o único bem que Deus te deu.

E eu deixei-te partir sem te dizer,

que a alma — essa alma que fôra um sonho meu

não deixaste ficar por não a ter.

RASCUNHO

Eu fui papel que te serviu de prova...

Tu eras estudante e eu me prestava

a ser a humilde fôlha que gravava

cada exercício da matéria nova.

Jamais lançaste em mim canção ou trova...

Eram notas de moço que estudava.

Julgando bem servir-te, eu não pensava

em ter na cêsta de papéis, a cova.

Olhei-me um dia e achei-me mal escrita...

Caligrafia assim de quem hesita.

Não parecia do teu próprio punho.

E quando vi depois a tua escôlha,

tive ciúmes sem fim da outra fôlha,

eu que fôra somente o teu rascunho...

AUSÊNCIA

Quando tu estás ausente eu imagino

palavras lindas que te irei dizer

e aos ouvidos te sôem como um hino,

chego a cantar, até chego a escrever.

Minha voz será, penso, a voz do sino

na capela da serra a enternecer.

E como as mães esperam seu menino,

espero-te feliz, para eu sofrer.

Tudo a postos. Aguardo-te sòmente...

Tenho nos lábios a oração ardente

com que te hei de aquecer a alma gelada...

Chega o dia. Tu vens... Estou contigo...

Deixo a hora passar, nem nada digo,

nem te digo porque não digo nada...

FUGA

Hoje te olhando, eu ontem só te vejo...

Para mim hás de ser sempre o passado...

Notas tristes vibrando o mesmo arpejo,

um depois que vem antes, sempre amado.

Gôsto de amor deixado pelo beijo

tanto mais falso quanto mais foi dado;

cadáver renascido de um desejo,

presente antigo que me foi tirado.

Olho-te amigo para ver-te estranho;

com teu ser atual não me exasperas

pois vejo em ti velhos ideais de antanho.

E só em ti procuro o teu invés

para te ter como há três lustros, eras.

Para fugir daquilo que tu és.

AMOR

I

O amor... quem é que o tem compreendido?

Quem nos diz se nos tira ou nos dá sorte?

Em cada sêr tem um feitio e porte...

Quanto mais velho, mais desconhecido...

Deixai-o sempre como houver nascido...

Êle, por si, já é tão grande e forte,

que fazê-lo crescer é dar-lhe a morte

ou para além de nós vê-lo sumido.

Nasce pela alvorada de um desejo...

Sepulta-se no túmulo de um beijo...

— E’ esse o amor em que a pensar me ponho...

Tem um viver muitíssimo precário.

E para que êle exista é necessário

que não vá nunca para além de sonho.

AMOR

II

Todo amor há de ser como o demente:

perigoso, se fica em liberdade.

Qualquer que esteja amando, está doente

de um mal de que se tem necessidade.

Quem não fala de amor, mais amor sente.

Matar de amor não chega a ser maldade,

pois quem morre de amor, morre contente

e no mundo conserva a eternidade.

E’ como o sono, o amor: dêle sabemos

apenas o seu custo, se o perdemos.

Jamais, se o vemos, o podemos ter.

Se antes que o conquistemos o enxergamos,

passamos a saber porque que amamos,

e deixamos de amar, sem o saber.

NÓS

Sinto que dia a dia mais estamos

retratados na vida dos amantes.

Também êles em nós vivem constantes

e somos nós que nêles nos amamos.

A cada instante assim ressuscitamos...

E na fala, nos gestos, nos semblantes

daquêles que de amar vivem radiantes,

nós vivemos eternos... não passamos...

Nosso afeto nos outros continua...

Em qualquer parte e seja como fôr,

onde se ouça: — "Eu sou teu. Eu serei tua".

Quem nos censura, imita-nos depois...

Onde existir um par, havendo amor:

— Eu sou ela... Êle és tu... Somos nós dois...

DEIXA-ME SÓ

Deixa-me só!... quero viver sòzinha...

Conversar com o silêncio... no abandono...

Ter a Saudade só como vizinha...

Ter um mundo só meu durante o sono...

Deixa-me só! quero viver sem dono...

Minha alma, prêsa à tua, se amesquinha...

Quero pôr-me a mim mesma sôbre um trono.

Quero viver comigo e ser só minha.

Deixa-me só! E dize aonde passares,

a tôdas as mulheres que encontrares,

que eu já te quis, mas não te quero agora.

Vai-te... que o tempo todo mal consome.

A ti te basta eu respeitar teu nome;

e a mim me chega o que me fôste outrora.

FIDELIDADE

Tal como os outros meses, maio veio.

Ao meu pesar, que importam suas flôres,

os seus dobres de sinos, seus cantores,

suas noites de festas e de anseios?...

Maio veio... e tu foste. De permeio,

com o esplendor de maio, os sons e as côres,

tu me deixaste um rio de amargores,

um rio fundo eternamente cheio.

Quando as rosas de maio emurchecerem,

quando êste maio fôr e outros vierem,

sôbre o meu infortunio duplicado,

tu verás, muito tarde, infelizmente,

quanto sofri por te saber ausente,

e quanto, até na ausência, foste amado.

LONGE

Partiste. E mais e mais vou percebendo

tua presença em tudo quanto faço.

Todos me falam, e eu te fico vendo

na água da fonte, até no azul do espaço...

E tu me vais em tudo aparecendo...

Na linha do horizonte e em meu regaço.

Ouço-te... Não te atendo, mas te entendo.

Deixo-te atrás e busco-te onde passo.

Porque te vejo em tudo assim, sem tréguas,

é que te fujo como de um perigo,

é que converto um metro em tantas léguas...

Com a ilusão do amor já não me iludo...

Se ganho o prêmio de ficar contigo,

perco a fortuna de encontrar-te em tudo.

ESCONDIDA

Quando em criança, ainda bem criança,

Tôda a vida levava em brincadeira...

Corriam, a buscar-me, a casa inteira

as meninas de tôda a vizinhança.

Debaixo de uma mesa ou uma cadeira,

por fim era encontrada... Que folgança!...

Correria... algazarra... Sem tardança,

ia esconder-se alguma companheira...

Hoje, no sazonar de nossas vidas,

jogo às vêzes sòzinha às escondidas

nas noites em que o ar tem cheiro à lua...

Numa alegria que não podes ver,

a minha alma brincando de esconder,

fica tôda encolhida atrás da tua...

YELLOW AND GREEN

Em colóquio de amor que nunca se define,

batizamo-nos nós, os dois, por brincadeira:

— "Yellow"... te chamaria a minha vida inteira,

e a vida inteira tu me chamarias "Green"...

O tempo então passou... Perdeu-se na carreira...

A semente do amor, onde quer que germine

vai variando de fôlha e fruto e de maneira...

Contém sempre o amanhã que chega e não previne...

Alguns anos depois, em mais um lar sem dono

como lembrança triste, o teu nome aparece,

recordando um amor que já nasceu no Outono...

Tinha de ser assim para o meu desconfôrto...

Minha tenra afeição, agora amadurece...

Vê rolar pelo chão, o teu amor já morto...

SÍMBOLO

Amei-te... E tudo mais foi fantasia...

O vestido de noiva, o véu, o encanto

da vela que brilhava ao pé do santo,

as lembranças que tive neste dia.

O sorriso que em tudo eu percebia...

O perfume de rosa em cada canto,

as comovidas gôtas do teu pranto,

os acordes finais da Ave-Maria.

Tudo fugiu. Foi coisa sem valor...

Resta no dedo a pálida lembrança

de um anel com teu nome... é a minha dor...

De que me serve agora essa aliança?...

O que se não consegue pelo amor,

por uma argola de ouro não se alcança.

CARNAVAL

Tu não eras assim quando eu te amei.

Do que fôste, só tens o nome que usas.

Atitude ora de anjo, ora de rei,

tinhas virtudes grandes e profusas.

Não fugias ao bem que hoje recusas.

Eras a perfeição com que eu sonhei.

Se de tanto mudar, te não acusas,

é que não sabes que mudaste, e eu sei.

O carnaval chegou, te mascaraste.

De fingir que eras outro, outro ficaste,

sem perceber que estavas diferente.

O Rei Momo passou. Veio outro dia.

Mas nunca mais te vi sem fantasia,

retomar o teu eu de antigamente.

DESTINO

Serei sempre algo que te pertenceu.

Um dia fui a tua aspiração.

Fui depois, sem saber, o tudo teu,

tua sincera e única afeição.

Fui mais tarde um brinquedo em tua mão...

Logo após, uma flor que esmaeceu,

no vaso rubro do teu coração.

Agora, sou teu sonho que morreu...

Hei de ser sempre alguma coisa tua.

Coisa que o teu desprezo não destrua...

Farta, sutil e eterna como a poeira.

E contra o teu querer, tua vaidade,

quando não puder ser tua Saudade,

eu serei teu Remorso a vida inteira!

OUTRO

Teu vício de imitar tem te emprestado

o gesto, a fala, o gosto, o próprio sêr.

E tanto estás a isto acostumado,

que já nada de teu tu podes ter.

Não. Nada tens de ti. Ficas mudado...

De instante a instante é de outro o teu querer.

Move-te um amor sempre renovado,

que dita incertamente o teu viver.

Alheio é o teu sorriso que insinua.

Alheio é o teu pensar que de outro vem.

Tua vontade é de outro, não é tua.

E essa tua meiguice disfarçada,

quando não é de alguém — é de ninguém,

pois de ti próprio não conserva nada.

DESPOJOS

Vai-se partindo aos poucos, laço a laço,

aquele nosso grande amor de outrora.

Ontem foi um desgôsto, hoje embaraço.

Amanhã vai-se uma ilusão embora.

Mais uma falsidade revigora

em minha alma essa dor, êsse cansaço.

O próprio ciúme, com um sôpro escasso,

está fadado a perecer agora.

Nada mais acharás, quando voltares,

que o fundo sono dêsse amor acorde:

nem desejos, nem sonhos, nem pesares...

E embora em ti de novo o amor transborde,

sentirei nos meus lábios, se os beijares,

o sabor da perfídia que me morde.

ESQUECIMENTO

Esquecer-te é possível, mas espera.

Se a vida não fôr curta para tanto,

nesta mansão de amor, hoje tapera,

tu verás o passado morto a um canto.

Já vimos sem tristeza e sem espanto,

morto o rosal da nossa primavera;

em breve o outono há de envolver num manto,

muito do que tu foste e do que eu era.

Esquecer-te há de ser o meu afã.

Amanhã, amanhã, sempre amanhã,

conseguirei o que hoje não consigo.

Espera um pouco mais que o tempo gaste

êsse pouco de mim que tu levaste,

êste muito de ti que anda comigo.

EXCLUSIVISMO

Jamais eu cobicei o que outrem tinha

ou desprezei o bem que alguém me dava.

Amava uma desgraça por ser minha

e da ventura alheia me afastava.

Quando me pertencias, eu retinha

o teu sêr no meu sêr, e te trancava

como quem do futuro algo adivinha.

Ias ficando e o tempo se passava.

Quando deixaste de me pertencer,

Deixei no mesmo instante de querer

O teu afeto e tudo que era teu.

Um amor de dez anos, em minutos

eu vi morrer. Fiquei de olhos enxutos...

Só gostava de ti porque eras meu.

CONSOLAÇÃO

Gostaste de uma Neuza e de uma Luísa...

De diversas gostaste. Não importa...

Amor fácil, de amor fácil, precisa.

Que o meu assim não seja, me conforta.

Amor jogado ao vento... Fôlha morta

que em poeira se desfaz, se alguém a pisa;

que em noite escura o coração aborta

e só almas mesquinhas escraviza.

Mil mulheres terás em teu caminho;

mas não conseguirás que o teu carinho

faça a nenhuma o bem que já me fêz.

Fui a primeira e fui a mais querida!

A nenhuma darás em tôda a vida,

o que me deste a mim durante um mês.

AVÊSSO

Tudo o que é bom tem hora para o ser.

Deu-me esta vida um bem, já fora de hora...

O que há já tanto eu desejara ter,

Não me trouxe vantagens vindo agora.

Perda de tempo que meu sêr deplora;

não era aquêle o tempo de eu querer;

e eu quis, fora do tempo, sem saber,

que sem seu tempo ter, nada vigora.

E tendo embora mais do que mereço,

do direito de tudo eu tive o avêsso:

a sorte me foi sempre assim trocada.

Tive o riso de quem foi mais sisudo.

De quem nada aspirei me veio tudo.

E de quem tudo quis não tive nada...

CONFUSÃO

Pretendeste deixar-me... Que loucura!

Acaso pode a luz deixar o dia?...

E o sêr deixar a forma, poderia?...

E pode o fel deixar sua amargura?...

Vivemos separados, de mistura,

o meu sêr no teu sêr em harmonia...

Se tu me abandonasses, criatura,

de ti, em ti, já nada restaria.

Não me deixaste a mim; deixaste a casa.

Temo-nos desenhados na alma em brasa.

Somos um coração íntegro e nu.

Não podias deixar-me... Que no mundo,

de tal sorte contigo me confundo,

que nem sei se eu sou eu, ou se eu sou tu.

CONFORMAÇÃO

Que males você me faça,

ninguém de senso imagina.

Eu sou na própria ruína

indiferente à desgraça.

Qualquer tédio logo passa...

Vem a saudade em surdina,

essa médica divina,

que cura a gente de graça...

Encho as noites de invernia,

de uma porção de poesia;

não fazem falta as estrêlas,

no encanto que a vida encerra,

da chuva beijando a terra,

das plantas sorrindo, ao vê-las...

 

 

ANDA DEPRESSA, AMOR!

 

Anda depressa, Amor, que êste Ano Velho morre...

Só doze dias mais e eu lhe verei o fim...

Volta antes que de crepe a vida se nos forre

E nada mais aclare escuridão tão ruim.

 

Anda depressa, Amor, que o Ano Vindouro, corre...

Vai te encontrar distante e perguntar por mim...

Por que é que o braço teu o meu já não socorre?...

Para onde é que tu foste e para onde é que eu vim?...

 

Anda depressa, Amor... Vinte e dois de dezembro...

Faz anos, afinal, que me deixaste assim:

— como o doente deixa a atadura de um membro,

como se deixa ao sol o pé do borzeguim...

 

Anda depressa, Amor, que o tempo não espera...

Bate à porta o Natal de vestes carmezim.

Vamos juntos ouvir a voz da Primavera,

e nos embriagar no aroma do jasmim.

 

Anda depressa, Amor, que êste mês vai ligeiro...

O Natal já passou, de brocado e cetim.

Já por trás do Presépio avistamos janeiro,

marchando para nós a toques de clarim.

 

Anda depressa, Amor, são duras as demoras...

O reloginho teu que tu me deste a mim,

vai marcando, marcando a sentença das horas

e as horas vão marcando a sentença do fim.

Trinta e um de dezembro! Instantes derradeiros!...

Que te importa onde estou?... Que me importa onde estás?...

Sôbre mim e sôbre ti hão de passar janeiros...

É meia noite, Amor!... tu nunca voltarás...

 

 

CARTA

I

Eu guardei tua carta meiga e linda,

num envólucro azul de azul forrado.

Hoje recordo essa ternura infinda,

tesouro do meu cofre, no passado.

 

Carta azul, sonho azul, dia azulado!

Tua letra, teu fluido! Amas-me ainda?...

como outrora nos dias de noivado,

comove-me pensar na tua vinda.

 

Medito nesse amor... Nasceu no estio,

nunca tremeu e nunca sentiu frio...

Almas em sonho... Corações em ânsia...

 

Vive na carta o amor que não morreu...

Eu tenho-a aqui, como um retrato seu,

intacto na saudade e na distância.

 

 

CARTA

II

Mas não. A carta azul está fechada

e não me atrevo a abri-la. Não me atrevo...

Posso e não quero. Quero mas não devo

perder ainda esta ilusão dourada.

 

Essa carta é tua alma delicada

que tua própria mão tornou relêvo;

e no instante angustioso em que te escrevo,

saudade de três lustros resguardada.

 

Dentro, um amor perfeito se resume

na perfeição de um coração eleito.

Não tem sequer o espinho de um queixume.

 

Dizem que é cinza de um amor desfeito.

Até a cinza tem clarões de lume

se a gente a aquece bem dentro do peito.

 

 

CARTA

III

 

Ante esta carta azul tôda me agito...

Gelam-me as mãos e o sangue se acelera.

Dia de inverno!... Entanto primavera

vejo acenar com flôres o infinito.

 

O Amor é do Universo o grande grito,

que vai da pomba ao coração da fera.

Na bôca da criança e da cratera,

é sempre o mesmo, indômito, bendito.

 

Fôrça que move o mundo e nos acalma,

único bem que temos dentro da alma,

cabedal que levamos para a morte.

 

Fora de um grande amor na nossa vida,

nosso ponto final e de partida,

nada mais eu distingo que conforte.

 

 

CARTA

IV

 

Ao receberes esta carta, creio

que a lerás noite a dentro, quase a mêdo,

como quem se apossasse de um segrêdo.

Não me cabe julgar o teu receio.

 

Levar-me a mal não deves: foi o meio

que encontrei de falar-te hoje bem cedo,

daqui, do meu esplêndido degredo,

triste, vasio, mas de ti tão cheio!

 

Não são palavras de paixão impura,

mas de infinita e singular ternura,

que a tua alma em minha alma derramou.

 

Que ouvindo-as, tôdas as mulheres sonhem.

Não são frases banais, que me envergonhem;

são pedacinhos da alma que eu te dou.

 

 

VERGONHA

— "Menina!" — disse alguém, no grande instante

em que era dividido em dois um sêr...

E essa palavra, pelo mundo avante,

foi o meu santo orgulho de viver.

 

Ser menina. Ser moça. Ser constante.

Ser caráter. Ser honra. Ser dever.

Por mais tropeços que encontrasse adiante,

nunca eu entristeci de ser mulher.

 

Mas veio o amor. Veio a traição ferina

e todo o orgulho meu de ser menina,

roubou-o a sorte malfadada e crua.

 

E veio a dor. E veio a mágoa, o tédio...

E a vergonha escaldante e sem remédio

de ter sido mulher para ser tua.

 

 

 

DOIS

 

Éramos dois em tudo, sobejando

num o que o outro não tinha, sem sentir.

Sem um viver chorando e outro chorando.

Sem nunca os dois ao mesmo tempo rir.

 

Tu buscando outro amor e eu te buscando...

Tu chegando na hora de eu partir...

Mas sempre os dois... e sempre os dois, olhando,

alvos diversos, longe no Porvir...

Tudo é feito de dois na Natureza...

De dois a vida surge em dois instantes...

Dois... sinal de equilíbrio e de firmeza...

 

Seguindo o mundo, éramos dois também,

e enquanto fomos dois, fomos bastantes...

Hoje não somos dois... somos ninguém...

 

 

ETERNIDADE

 

Quando eu morrer quero-te junto a mim...

Pelo muito que outrora nos quisemos,

tu me darás um ramo de jasmim,

da casa em que moramos e sofremos.

 

E depois?... E depois?... Não nos veremos?...

Sim, meu amor, não será êsse o fim.

Lá na outra vida nos encontraremos...

Foi Deus que disse, tem de ser assim...

 

Eu amar-te-ei melhor na eternidade...

Lá onde a treva da infelicidade,

é um dia azul na massa azul do povo...

 

E de mãos dadas pela pátria etérea,

amar-nos-emos longe da matéria,

nós que morremos para amar de novo.

 

 

DESISTO...

Desisto por amor a ti, amor,

de tudo quanto a vida me tem dado.

De quaisquer glórias em qualquer setor,

dos sonhos que hoje sonho e que hei sonhado.

 

Desisto, seja como e quando fôr,

dos louros que da glória hei conquistado,

de tudo aquilo a que mais dou valor,

para que de sofrer sejas poupado...

 

Desistirei da paz e dos prazeres,

dos momentos felizes que me deres,

do que das tuas mãos já recebi.

 

Sem ver o mal que a mim me faço nisto,

nem o preço dos bens de que desisto,

eu desisto, por ti, — até de ti.

 

 

VERSOS

 

Fazem-se versos por motivos vários...

Para ficarem por aí dispersos...

Para andarem nos cantos dos armários...

Até para enterrar, fazemos versos...

 

Muitos os fazem e eu já vi diversos,

Para trancá-los bem nos seus santuários...

Para escondê-los tôda a vida, imersos

no seio da alma, ignotos e precários...

 

Eu não os faço para o meu confôrto,

nem para ter as glórias dêste mundo.

São para ungir o meu amor já morto...

 

Não. Não os faço para ser querida.

São para veres como é longo e fundo,

o traço que deixaste em minha vida.

 

 

SEGUNDA PARTE

 

TROVAS

 

Tens um segrêdo profundo,

que é teu triunfo entre as gentes...

Tu mentes a todo o mundo...

Só tu sabes que tu mentes...

 

Tu traíste o meu amor...

Mataste a felicidade...

Agora precisas ver-me,

para matar a Saudade...

 

Tu me pedes que te esqueça.

E eu não te deixo esquecido.

Como te posso esquecer,

Se de ti vem o pedido?...

 

Só hoje sei ter amado

Dois homens, ardentemente:

— Tu, como eras no Passado

e tu, como és no Presente...

 

Dizem que quando o amor morre

sepulta-se atrás de um beijo...

O amor só tem vida longa,

quando resiste ao Desejo...

 

Para meu bem, no futuro,

preciso de te esquecer...

Mas enquanto isso procuro,

vou lembrando sem querer...

 

Não digas que me esqueceste,

que ninguém esquece assim.

Teimando que me esqueceste,

vais-te lembrando de mim...

 

Se morta eu tiver desejos,

hei de pedir a meu Deus,

para vir cobrar-te os beijos,

que por direito eram meus...

 

Não me adianta nem me atrasa

chorar a tua partida...

Saíste da minha casa,

ficaste na minha vida...

 

Gozo porque me maltratas,

quando a todos tratas bem.

Do modo como me tratas,

não tratas a mais ninguém.

Tanto padeço na vida,

por causa do mal de amor,

que a alma, de tão dolorida,

já me dói na própria dor.

 

Tu foste o primeiro em tudo;

foste em tudo o pioneiro.

Até quando me mentias,

mentias a ti primeiro.

 

Rasgaste naquelas cartas,

as palavras que escreveste...

Quem me dera que rasgasses,

aquelas que me disseste!

 

Somos gente de verdade,

se duas coisas fazemos:

dizer sempre o que sentimos,

sentir sempre o que dizemos.

 

Se gosto dos meus amigos,

porque me fazem vontades,

aprecio os inimigos,

porque me dizem verdades.

 

A Saudade é um bem malvado,

de quem tenho muita queixa.

Quero esquecer o passado,

mas a Saudade não deixa.

 

Dizem que nos pertencemos,

mas prova ninguém me deu.

Posso jurar que fui tua,

mas nunca que foste meu.

 

No tempo em que me mentias,

sempre em ti acreditei.

Não digas hoje a verdade,

que não te acreditarei.

 

Terei tão grande amargura,

quando deixar de te ver,

que já padeço a tortura

da Saudade que hei de ter.

 

Deu-me a vida dois prazeres,

que quero agora dizer-te:

um prazer grande; — o de amar-te.

Outro maior; — esquecer-te.

 

Deste-me tudo o que tinhas,

tudo o que a vida te deu.

Amor firme não me deste,

porque só dás o que é teu.

 

Dizem-me que eu nasci cega;

e eu não posso acreditar.

Ceguei já tarde na vida,

na cegueira de te amar...

 

Fiz versos antigamente

por estar feliz contigo.

Agora de ti ausente,

faço versos por castigo...

 

Saudade de quem não se acha

por muito que se procure,

não é moléstia que mate,

nem há remédio que cure.

 

Dormindo descanso o corpo.

Dormindo nada padeço.

Porém só gosto do sono,

porque dormindo te esqueço.

 

De animais brutos, tiranos,

não me lembra haver fugido.

Porém, de seres humanos,

correndo tenho vivido...

 

Chamar-me de sem vergonha

por amá-lo? Meu Senhor!

Amor que tiver vergonha,

será a vergonha do amor...

 

Erraste, ficaste triste.

Não sofras! Também errei...

Erraste porque mentiste

e eu porque te acreditei.

 

Por menos que satisfaça

o teu carinho inseguro,

para quem ama de graça

isto é já paga com juro.

 

 

TERCEIRA PARTE

 

OUTROS VERSOS

 

INFÂNCIA

 

Tendo a noite sem luz por companhia,

eu fui daquelas que o sofrer não poupa.

Minha ceia era magra: pão e sôpa.

Um vestido sòmente possuía.

 

— "Há de andar limpa". Minha mãe dizia.

Eu sentava-me à sombra, numa estôpa.

Cantava enquanto me secava a roupa,

e como era feliz naquele dia!

 

A minha infância, que não é segrêdo,

não me deslustra, antes me ilustra o nome.

Sonho e pobreza, como acaba cedo!

 

Os que pragas escutam em vez de hinos,

os que nasceram entre o frio e a fome,

só têm seis anos para ser meninos.

 

 

A CIDADE DE VICÊNCIA

 

Minha cidade pobre e pequenina!

Virgem rezando aos pés do Sirigi!

E’ simples como as flôres da campina,

bendita sejas, terra onde eu nasci.

 

Cedo, ao fechar seu cálice — a bonina,

olhas o sol! E o sol, cheio de si,

beija-te a silhueta alva e franzina.

Bendita sejas, terra em que eu sofri.

 

Amo-te assim, calcada e reprimida,

pelos donos de engenhos explorada,

sem pão, sem vestes, sem amor, sem vida.

 

E’ minha a tua dor. São meus os ais

que os teus carros de boi deixam na estrada,

levando o sangue dos canaviais.

 

 

MEU QUARTO DE BANHO

 

O meu quarto de banho era um riacho

que atrás do meu casebre se estendia

e ali formava um cristalino tacho

que a natureza cuidadosa enchia.

 

Ramalhada por teto, areia em baixo.

E paredes de palha luzidia

retirada ao coqueiro, ainda em cacho,

onde insistente um bem-te-vi mentia...

 

O cabide era o tronco dos ingás.

Sôbre pedras, nas margens embutidas,

que sabonete bom, raspas de juás!

 

Êsse rio em que virgem me banhei,

por entre as tranças de cipó floridas,

foi bem a pia em que me batizei.

 

 

A AÇAFROEIRA

 

Na minha roça, de manhã bem cedo,

pequenita, descalça, mal vestida,

saudada pelo alegre passaredo,

eu demandava uma árvore florida.

 

Era uma açafroeira, a preferida.

Galho por galho, eu sacudia a mêdo.

E uma esteira de flor desiludida

se estendia por baixo do arvoredo.

 

E desfolhava anciosa, a flor singela;

jogava fora pétalas de estrêla,

guardando os tubos de sangrenta côr.

 

Bem sei que era infantil, minha atitude...

Mas lembra os que espezinham a virtude

e devoram o corpo sem amor...

 

 

INGRATA

 

Buganvília, minha amada,

onde pássaros cantores

vinham em tarde rosada

cantar cantigas de amores.

 

Foi junto ao muro plantada.

Guardei-a dos malfeitores.

Por ser assim, bem cuidada,

dava-me todas as flôres...

 

E um dia fiquei tão triste,

por ver que em tudo que existe,

sempre existe a ingratidão!

 

Pela parede subiu,

e do outro lado floriu,

distante da minha mão.

 

 

MINHA ESCOLA

 

Minha escola! Existia só aquela

no tempo em que estudei. Jovem. Tranqüila.

— Por sabê-la dos cegos — a pupila,

dia por dia se me fêz mais bela.

 

Podem ir vê-la, porém nunca ouví-la:

torce a verdade, é fina e tagarela,

com falar afetado, ela é singela.

 

Como eu a soube amar e sei sentí-la!

 

Pintaram-lhe de rosa a alta figura.

Sofre, porém, de mal que não tem cura...

E’ velha já, cem anos faz agora.

 

Quanta alegria e garbo na fachada!

E lá por dentro, quanta dor guardada!

— Muita gente há feliz assim, por fora.

 

 

VENDAVAL

 

Corre o vento e de poeira o espaço infesta.

Derruba muro e casa — o que acha à frente.

Revolve ondas do mar, curva a floresta.

Tem a voz rouca, túmida, inclemente.

 

Semeia o luto, a dor e não os sente.

Vai derruindo ao passar. Requeima. Cresta.

Tudo destrói indiferentemente,

como o gênio do mal que andasse em festa.

 

Mas no outro dia, de manhã bem cedo,

cantam de novo as aves no arvoredo,

a erva nasce onde espalharam morte.

 

Refaz a aranha a teia destruída...

Que para além do Vendaval, a Vida

é a vitória do fraco sôbre o forte.

 

 

PALAVRAS

As palavras, meu Deus, são abundantes!

Longas, breves, compostas, simples, belas,

tôscas, em moda ou não, e tôdas elas

portadoras de idéias palpitantes.

 

A qualquer pensamento são bastantes.

Estas, do povo; do erudito, aquelas.

Numa só, cabem lendas ou novelas.

São pequenas aqui, e além gigantes.

 

Pela palavra, tudo se faz claro.

Ela é no mundo o bem mais vivo e raro.

Em tudo e para tudo é procurada.

 

Mas para nossa angústia e desencanto,

tanta palavra existe a dizer tanto,

e se trata de AMOR, não nos diz nada.

 

 

PENA

 

Não tenho pena de ninguém na vida.

Nem do mais imbecil dos imbecis.

Nem de quem não tem pão, nem tem guarida

Nem do falso feliz. Nem do infeliz.

 

Nem de quem tem por pele uma ferida.

Nem daquele cuja alma é a cicatriz

de uma dor mal fechada ou mal contida.

Nem de quem jamais teve o que mais quis.

 

Mas tenho pena, pena que é tortura:

Pena que à minha estrela faz escura.

Pena que é desespêro, tédio, horror...

 

que põe na alma um sulco amargo e fundo.

— Pena de quem passou por este mundo

e viveu e morreu sem ter amor.

 

 

VELHICE

 

Velhice é a bôrra do final da taça...

O sabor derradeiro da bebida.

Visão que terna a criatura abraça,

porém que sempre a encontra distraída.

 

Tem de tudo que finda, a eterna graça.

Por todos, com tristeza é recebida...

Qualquer fase da vida surge e passa,

sem que por isso passe-nos a vida.

 

Ela, não. Ela fica. E’ a mais sincera...

E’ mais que o Outono e mais que a Primavera...

Para atingi-la, quanto não fazemos!

 

Vai-se a infância e risonhos prosseguimos...

A mocidade foge e resistimos...

Mas se a velhice morre, nós morremos!...

 

 

FOME

 

Caminha o prêso à frente do soldado.

Já velho, onde nascera ainda vivia.

Seu rosto de azeviche que alumia,

volta-se para o chão, envergonhado.

 

Analfabeto, era leal e honrado.

— "Ladrão"! grita um moleque. Outro assobia...

E ladrão êle o foi naquêle dia,

se quem roubou um pão, tiver roubado...

 

E condena-se um homem que nascido

para sofrer, nasceu sem ser ouvido...

Que padece do mal que a ninguém fêz.

 

E condena-se a quem, sem ter um nome,

a vida inteira trabalhou com fome

e quis matá-la ao menos uma vez.

 

 

SOFRIMENTO

 

Senhoras! se o existir vos foi avaro,

a estrada que trilhastes, feia e torta,

se perdestes bem cedo o ser mais caro,

e cedo vistes a Esperança morta;

 

Se sofrestes miséria e desamparo,

se nada mais na vida vos exorta,

se em vosso negro horror não resta um claro,

e nem já tendes pranto que conforta,

 

Se todos os martírios suportastes,

se todos os punhais vos têm ferido,

se todo o mundo riu quando chorastes,

 

Se todos os desgostos tendes tido,

— mas se não vos traíram quando amastes,

então, jamais, jamais tereis sofrido!...

 

 

NOSTALGIA

 

Noite triste. Soluça a natureza,

a tiritar de frio, desolada.

E eu procuro encontrar nessa tristeza,

motivo de sentir-me confortada.

 

Chorei tanto que não será surprêsa

se algum dia encontrarem apagada,

pela água do meu pranto transbordada

a vela da alma que eu mantinha acesa.

 

De todos os que sofrem tenho a sorte.

A dor do mundo inteiro dói-me forte.

Não sei porque assim sou, mas sou assim.

 

Atraio, triste, tudo quanto é triste.

E tenho a dor de tudo quanto existe

e tôda a dor que existe dói em mim.

 

 

VIAGEM

Quando partimos sós para lugar distante,

deixando o nosso amor a soluçar no cais,

vamos achando em tudo o que se encontra adiante

um nostálgico arfar de sombras funerais.

 

Se buscamos além a ternura dos pais,

vamos deixando longe uma ternura amante.

E reparte-se a alma, ora à frente, ora atrás,

num distendido abraço fluido de gigante.

 

A metade ficou, metade vai-se embora.

Sob os pés do navio o mar magoado chora,

a lágrima da espuma o atormenta e prateia.

 

E a gente vai, rolando entre a saudade e a crença,

escrava sem querer de uma vontade imensa

que faz da própria alma uma presença alheia.

 

 

AS PÉROLAS

Pérolas há de anéis, brincos, colares,

que ao fim de certo tempo desmerecem...

Confortadas embora, em ricos lares,

satisfeitas por isso não parecem.

 

Sentirão falta de seus quentes mares?...

Lembrar-se-ão de alguns peixes que as esquecem?...

Recordarão desgostos ou pesares,

das conchas que por elas adoecem?...

Talvez sofram na sua singeleza,

por servirem a um mundo de vaidade,

contrariando a própria Natureza.

 

Talvez pensem, por fim, nos dias bruscos,

que são lindas, mas são na realidade,

tumescências calcárias de moluscos.

 

 

O CÃO

 

Meu lindo cão... vejo-o sem forma e côr.

Certo, assim não me vê nem imagina

sua alma nobre, ao homem superior

na afeição, no dever, na disciplina.

 

Segue-me como o crente segue o andor.

Se ante mim não se ajoelha, o peito inclina...

Porque é no peito que reside o amor,

porque é o amor que a ser humilde o ensina.

 

Assim procede e assim é diferente,

do resto dos mortais... de tanta gente

que, até no altar de sua devoção,

 

aparência de pomba, alma de cobra,

se dobra os joelhos e a cabeça dobra,

inflexível conserva o coração.

 

 

DOR

Eu sempre achava a minha dor maior

que a dor dos outros. Uma dor aguda

a que ninguém trazia alguma ajuda,

tinha que ser de tôdas a pior.

 

Dores diversas tinha eu já de cor

e comparava-as como quem estuda.

Diante da minha que era funda e muda,

a do Universo inteiro era menor.

 

Depois fiz o confronto friamente,

entre a que sinto e a de tôda a gente.

Menos me dói a que hoje me espezinha;

 

sinto-a menos amarga e menos feia,

ao ver que é tal e qual a dor alheia:

a forma de sentí-la é que é só minha.

 

 

A POESIA

A poesia é dos anjos o falar.

Quando mais diz é quando está calada.

A quem não sabe ouví-la, não diz nada.

Só responde a quem sabe perguntar.

 

Voz do céu, voz da terra, voz do mar,

possui a natureza por morada.

Busca a tristeza e foge à gargalhada.

De tudo é feita. Em tudo pode estar.

 

E’ linguagem das almas escolhidas

que se buscam no afã de conseguí-la

dentro dos sonhos róseos de outras lidas.

 

Mas só os que amam podem concebê-la...

Pois é preciso amar para sentí-la,

e é preciso sentir para entendê-la.

 

 

MÃE

 

Quando eu vivia em terra sertaneja,

a minha mãe beijava-me e dizia:

— "Estas árvores, filha, são igrejas,

os pássaros são sua companhia...

 

Muitas serpentes em redor havia,

denso urtigal que ainda ali viceja.

Era rumor de vida malfazeja,

que eu não sonha va e que ela não temia.

 

E conheci mais tarde a humanidade,

com seus frios instintos de maldade,

envenenando tantas horas boas.

 

A minha mãe tinha razões prudentes,

para deixar-me perto das serpentes,

mantendo-me afastada das pessoas.

 

 

BONECA

 

No seu brincar, falando, ela deslinda

o universo infantil... Gente... Paisagem...

Uma grande boneca, pura e linda...

Um boneco de trapos, sem coragem.

 

E eu escuto, passagem por passagem...

Diz uma história incerta que não finda...

Ouço o meu nome como uma homenagem

de quem não sabe ser ingrata ainda...

 

E eu sou feliz nestes instantes lêdos,

esquecendo o meu sonho moribundo,

a ouvir-me retratada em seus brinquedos...

 

E sinto um grande orgulho alegre e fundo

de tornar-me pequena entre os seus dedos

e também fazer parte do seu mundo...

 

 

EGOÍSTAS

 

Os egoístas estão em todo o canto.

Andam sós. Querem tudo. Não dão nada.

Seguem envoltos por espêsso manto.

Vivem dentro de si, de alma trancada.

 

Não sabem a ansiedade, o sonho, o pranto.

Sofrem talvez por não manter fechada,

a flor que entrega o seu perfume e encanto

a todos quantos passam pela estrada.

 

O egoísta afinal é inocente...

Por mais que o amor como um incêndio avance,

há de sempre encontrá-lo indiferente.

 

Mal ou não, vive só para viver.

Não faz o bem que está no seu alcance,

Nem o mal que outros gostam de fazer.

 

 

FARINHADA

 

Na casa de farinha, a farinhada,

de madrugada ainda, principia.

A mandioca é aos sôcos arrancada.

A maniçoba cai. Começa o dia.

 

Raspam-na rindo. A sã rapaziada

range o rodete, rola a massa fria

que na prensa, entre palmas apertada,

vai aos poucos secando: é a sangria.

 

Para o fundo do côcho desce a goma.

Da massa ao forno já se espalha o aroma,

depois que em jôrro a manipoeira corre.

 

Seguem após caminhos diferentes:

Farinha e goma vão nutrir as gentes,

e a manipoeira, quem a bebe, morre.

 

 

CÂNTICO

Lembro-me: em frente à minha casa havia,

uma redonda e tépida lagôa.

Sapos que andavam pelo vale à tôa,

iam juntar-se lá, quando chovia.

 

De longe, um côro a gente percebia,

que ainda hoje aos meus ouvidos sôa.

E a tarde assim chuvosa era tão boa,

que tal não acho agora, quando estia.

 

Compreendi por isso muito cedo

que, se nos falta um canto no arvoredo,

outro canto há de haver noutro lugar.

 

Amo o que tenho, sêdas ou farrapos...

Amo a harmonia no coaxar dos sapos,

quando não ouço os pássaros cantar.

 

 

ALMAS FINGIDAS

 

Conheço nêste mundo almas fingidas.

Vi-as em outro tempo e as vejo agora.

Aves da noite, escondem-se da aurora.

Ante a verdade ficam abatidas.

 

São sempre trabalhadas e polidas.

Enganam muito mais quem sofre ou chora.

Têm na boca um falar que a gente adora.

Andam por tôda a parte e são queridas.

 

Almas de Judas, iludindo Cristos!

Monstros que cegam para não ser vistos.

Plantas do mal a germinar no escuro!

 

Almas risonhas, suaves, delicadas,

que escondem sob as azas perfumadas

a triste podridão do seu monturo.

 

 

NORDESTE

 

Fui sentir a planície nordestina.

Céu a queimar-se ao sol. Chão a ferver.

Havia em tudo emanações de ruína.

E ouvi-a em flor quando escutei chover.

 

E senti-me, como ela, renascer.

E voltei ao meu tempo de menina...

Sem pensar, pus-me a rir, pus-me a correr,

pisando oh úmido chão de areia fina.

 

Até sem vista a gente a vê formosa,

minha terra garrida e buliçosa,

que enche a alma de um suave colorido...

 

Para não entender sua alma ardente,

preciso é ter-se o coração dormente,

ou ser de pedra, ou não ter lá nascido...

 

 

BENDITA CEGUEIRA

Não vi ciscar a terra o pintainho,

nem vi no lago espreguiçar-se a lua.

Não vi num ramo balouçar-se o ninho,

nem no dorso do mar vi a falua.

 

Não vi, em frente, o rumo ao meu caminho...

Vi ruidosa e deserta cada rua...

Meu sêr em toda a parte vi sòzinho...

Não vi o mato verde, a pedra nua.

 

Mas se não vi a graça de uma flor,

Nem plumagem de pássaro cantor,

Bendigo o que não vi, para bem meu...

 

Não vi o frio olhar de quem renega...

E a dor de minha mãe ao ver-me cega...

E o rosto de meu pai, quando morreu...

 

 

PAI

 

Para meu pai, amante da poesia,

o algodoal que em volta se alvejava,

era o véu em que a terra se envolvia,

para esperar o sol com quem casava...

 

Ante a semente a germinar rezava;

e a doce lã da terra o seduzia.

E todo o seu cabelo já branqueava,

naquele amor que não envelhecia.

 

Às vêzes eu, pequena, junto a um tôco,

onde sòzinha ia brincar um pouco,

julgava, meio opresso o coração,

 

que meu pai, de pensar o dia inteiro

no destino de cada algodoeiro,

tinha a cabeça alvinha de algodão.

 

 

OS POETAS

Os poetas são quase imateriais;

um painel de crepúsculo, de aurora;

pousam-nos n’alma, cantam, vão-se embora,

sem que nós os vejamos nunca mais.

 

Êles são nossos filhos, nossos pais;

choram por todos e ninguém os chora;

São sempre do presente, são de agora;

quando sucumbem ficam imortais.

 

O seu pranto constrói nossa alegria;

tiram da própria dor nossa poesia;

contentes e infelizes, vão passando;

 

Iguais no nascimento, iguais na morte,

são donos de igual vida e de igual sorte;

fogem do amor para morrer amando.

 

 

AS BONINAS

As boninas! Por tôda parte as vejo...

Quasi rentes ao chão, são como esteiras

com que Deus cobre as terras brasileiras,

quando não há do sol nenhum lampejo.

 

Tímidas, castas, fecham-se ao bafejo

do astro nascente nas manhãs fagueiras;

humildes, são o inverso das palmeiras;

nem dos pássaros, sentem o adejo.

 

Florinhas débeis e raiz segura,

a bonina perfuma a noite escura...

Dispensa a luz nem mesmo é cultivada.

 

Criaturas de Deus! Sêde boninas!

Simples, mimosas, brandas, pequeninas,

dando-se a todos sem pedir-lhes nada.

 

 

O MÊS DE JUNHO

 

O mês de junho chega. Pelos ares,

brilha um foguete, outro ao subir apita...

Perto se ouve um estouro. Além crepita

uma fogueira convidando os pares...

 

"E’ proibida a bomba"! — um velho grita.

Dansas, balões, folguedos e cantares...

Viva São João!... A noite está bonita...

O povo vê no céu lindos altares...

 

Um buscapé travesso queima e assusta,

Certa menina rica... Não há rogos...

Isso, pancada ao Zé pretinho custa.

 

Passa-se o mês... No entanto o mal nos fica...

Fica impune, depois, quem vende os fogos...

Fica impune também quem os fabrica...

 

 

VOLTA

 

Voltando à minha terra, nas ramadas,

já não ouvi cantar de passarinho...

Uns ouvi em gaiolas penduradas,

cantando prêsos, sem amor, sem ninho...

 

O Serigi, com águas empestadas,

corre tristonho por ali sòzinho...

Passam crianças fracas no caminho...

Foram-se as serenatas e as toadas...

 

E amo ainda essa terra. Eu sei querer

muito mais nos momentos de sofrer

do que nas horas de satisfação...

 

Sêres e coisas nossas, se os amamos,

seja com êrro ou não os aceitamos,

amando-os afinal como êles são.

 

 

SAPOS

Na minha terra, em noites de invernia,

eu ia ouvir os sapos num açude.

Coaxavam para mim... Eu os ouvia...

E dêles aprendi tudo o que pude...

 

Sempre tratados de maneira rude,

nos recessos da sombra eu os sentia.

Todos me censuravam a atitude

de procurar aquela companhia...

 

Asquerosos e feios e engelhados...

Úteis, embora, sempre eram tangidos

e rolavam na lama, os desgraçados...

 

Todos os infelizes mal vividos,

se não quiserem ser apedrejados

terão que andar, às vêzes, escondidos.

 

 

AQUARELA

Aquêle claro regato

tem muito que meditar;

passa tranqüilo, pacato;

água de tempo a passar.

 

Não é rio de aparato,

não tem desinteligência;

ama as florinhas do mato

que lhe dão a preferência.

 

É um regato feliz,

é um regato prudente,

que tem tudo quanto quis.

 

Dá grande lição a gente!...

O que êle sente e não diz

Sei de quem diz e não sente.

 

 

EXORTAÇÃO

Mulheres, vamos comigo,

saiamos de praça em praça,

levando ao pobre um abrigo,

levando um beijo à desgraça.

 

O céu não nos ameaça...

O mar será nosso amigo...

Não nos assusta o perigo,

já perto a vitória passa.

 

Cumpramos nosso destino,

tornar mais brando o furor

do coração masculino.

 

Vamos dar graça e valor,

ao fútil, ao pequenino,

pelos milagres do Amor.

 

 

APELO

 

Há festa no arraial. A juventude

Daquela terra tôda brinca e dança...

Tranqüila, a Jaçanã já deixa o açude...

Terna, chama o borrego, a ovelha mansa...

 

Em cada lábio, um riso, uma esperança...

A mentira do mundo ainda os ilude,

porque só muito perto a vista alcança...

Nunca viram a queda da virtude.

 

Na terra onde há gemidos, ouvem hinos...

Deixa-os sorrir. Ingrata Humanidade!...

Felizes somos só quando meninos...

 

Deixa-os beber o mel da Liberdade!...

Não desanimes nunca os pequeninos!...

Não desiludas nunca a Mocidade!...

 

 

QUANDO

 

Quando as tardes sentires mais bonitas...

E vires nas manhãs, luzes estranhas...

E os domínios das fôrças infinitas

te atraírem acima das montanhas...

 

Quando esqueceres íntimas desditas...

Quando ficares a sonhar façanhas

ou tiveres idéias esquisitas...

Quando perderes e pensar que ganhas...

 

Quando mentiras te fizerem crer,

e tanto em ti teu eu se vá mudando,

que até mais um sentido logres ter...

 

Quando adorares quem te vai matando...

Quando teu já não fôr o teu querer,

não há dúvida alguma, — estás AMANDO!...

 

 

IMPOSSÍVEL

 

Vive sempre a fugir-me o que procuro,

numa volúpia incrível de ir-se embora;

passa-me n’alma, vôa, pousa fora,

cai-me das mãos se o tenho mais seguro.

 

Se o alcanço, não o vejo, é muito escuro;

ansiosa espero o refulgir da aurora,

para perdê-lo assim que o dia aflora.

E outra vêz a segui-lo me aventuro.

 

Impossível! efêmero estandarte!

queira o homem, não queira, o mundo é vosso.

Estais em tudo, como em qualquer parte.

 

Empregando em buscar-vos todo o empenho,

quando quero é uma coisa que não posso,

quando posso é uma coisa que não tenho.

 

 

A ÁLVARO MOREYRA

 

Você tem uma voz de uva madura,

fresca, rosada, ao despontar da aurora;

tem voz de flauta que gorjeia e chora

e mais, é ouvida pela noite escura.

 

O relógio de cada criatura

devia repetí-la de hora em hora.

E’ voz que a gente inveja, não decora,

quer imitar, não pode e se tortura.

 

Diga os meus versos. Dá-nos a entender,

que só os fiz para você dizer,

para que tua voz se torne um hino,

 

E eu os escute livres de senões,

tão fortes como os versos de Camões,

tão doces como a prece de um menino.

 

 

O MÉDICO

"AO MEU GRANDE AMIGO DOUTOR NAHOR RODRIGUES"

 

Dia e noite, do enfermo à cabeceira,

o sábio luta com o mal que insiste,

e que lhe toma aos poucos a dianteira,

e que mau grado seu saber, persiste.

 

E’ guerreiro a lutar de lança em riste

contra o subir de uma invasão traiçoeira.

Defende a vida e vê à sua beira,

que a morte vence e o doente não resiste.

 

Como inútil alívio a tantas dores

dos que ficaram órfãos e abatidos

vêm abraços de amigos e vêm flôres.

 

Fica o médico a sós com a consciência

e sente o luto amargo dos vencidos

por ver a morte derrotar a ciência.

 

 

O ENTÊRRO DE VIRÓ*

À minha amiga Aracy Botêlho de Magalhães.

 

... E foi assim o entêrro de Viró...

Numa linda manhã ensolarada,

ao som da orquestração da passarada,

cada alma ensimesmada no seu dó.

 

Sem vista, sem ninguém, não viveu só.

Esqueceu sua sina de enjeitada...

Morreu velhinha, amando e sendo amada.

Vai ver aquêle que a tirou do pó.

 

E Benjamin Constant tudo lhe deu:

Instrução, pão e lar. Quanto era seu,

por ser seu, êle o deu à humanidade.

 

Morto, ainda a levou consigo à história.

Fê-la participar da sua glória,

levando-a pela mão à Eternidade.

 

(*) - (Viró era o apelido de ELVIRA DOS ANJOS, cega,

criada como filha por BENJAMIN CONSTANT.)

 

 

ALMAS DE SOL

À minha amiga D. Domicia Flores

 

Quando o sol tropical de ardor intenso

derrama sôbre o bosque amplo e florido,

seu calor, sua luz, seu brilho imenso,

dando-lhe vida, seiva e colorido,

 

como o bosque é feliz! Cerrado e denso,

agradece o favor de ter nascido.

Tem nas ramadas um perfume a incenso...

Canta hinos de ternura ao nosso ouvido!...

 

Depois, se extingue o sol no céu sisudo.

Não aparece o luar e percebemos

que o bosque fica triste, ancioso e mudo...

 

Almas de sol, nós cegos, conhecemos!

Quando conosco estão, nós vemos tudo

e é quando elas se vão que nada vemos.

 

 

MENSAGEM

À Margarida Lopes de Almeida

 

Vai, que haveremos de seguir teus passos.

A terra de Camões e de Junqueiro

é nossa terra; o nosso lar primeiro

a que nos prendem amorosos laços.

 

Nestes tempos atuais, de senso escasso,

quando nem o sentir é verdadeiro,

leva-lhe a alma do verso brasileiro,

leva, no teu, nossos milhões de abraços.

 

Leva-lhe o palpitar do mundo novo

no mesmo verbo cálido de outrora

que de dois grandes povos fêz um povo.

 

Dize-lhe um verso claro e tão bonito

que desde o albor da língua até agora

nunca ninguém assim o tenha dito.

 

 

SUA CASA

À querida amiga D. Maroquinha Rabelo.

 

Sua casa, onde quasi que morei

É dez vêzes, talvez, maior que a minha;

mas meu afeto a faz pequenininha

e dentro de meu peito a conservei.

 

Ela ficou em mim. Nela fiquei.

Constantemente, assim vejo-a todinha:

jardim, grandes salões e a capelinha

onde cheia de sonhos me casei.

 

Sua casa de paz e de concórdia

foi o meu ninho de misericórdia,

onde levei contentamentos e ais.

 

Sacrário bom do meu amor primeiro,

nem no meu pensamento derradeiro,

poderia esquecê-la nunca mais.

 

 

GRATIDÃO

 

Nunca vos vi assim, amigos meus,

preocupados talvez com quasi nada;

com uma desconhecida torturada,

a mais simples plebéia entre os plebeus.

 

Nunca tive, de crentes e de ateus,

por coisa alguma, tanta coisa dada;

nunca me vi de afetos tão cercada,

nem tanto, em alguns homens, achei Deus.

 

Mas se tanto carinho nunca tive

nem o encontrou qualquer que sofre e vive

em meio a tanta mágoa e desencanto,

 

também vós não tivestes entre as dores,

quem de vós recebendo tantas flores,

soubesse como eu sei, amar-vos tanto.

Hospital Evangélico

Setembro de 1953

 

 

CRIANÇA

À Severina Maria de Souza.

 

Sempre ao deitar-se ela agradece rindo,

a bonequinha que em seus braços ponho.

E na alegria de um sorriso lindo,

todo me envolve o coração tristonho.

 

Vive uma noutra sempre, fruto inconho,

se aquela foge é que essa está dormindo.

E vão juntar-se pelos céus em sonho,

para esperar o sol, se o dia é lindo.

 

A relíquia da minha fantasia,

aos meus braços fugiu também assim.

Também eu esperei um novo dia.

 

Mas minha noite nunca teve fim,

e para meu suplício eu não dormia,

quando o Destino a separou de mim.

 

 

O MAPA VIVO

(À memória do grande Professor Mauro Montagna.)

 

Um belo mapa vivo, iluminado,

fôra o sonho do magno professor,

que insatisfeito em tê-lo assim formado,

ainda água lhe deu, frio e calor.

 

Fui encontrar um dia espedaçado,

êsse fruto de intrépido labor,

numa parede fria, sepultado:

vi duas vêzes morto o seu autor.

 

Foi grande o meu pesar. Foi mais profundo,

porque eu amava o Mestre como a um Deus,

porque sòmente um Deus faria um mundo.

 

Ao ver de esfôrço tal tamanho tombo,

eu senti da mansão dos sonhos meus,

o que prêso aos grilhões sentiu Colombo.

 

 

A BENJAMIN CONSTANT

 

Eu te agradeço, Benjamin Constant,

eu te agradeço todo bem de outrora,

que há tantos anos feito, eu sinto agora

e sentirão os cegos do amanhã.

 

Tôda a luz do Saber, fulgente aurora,

com que me batizaste a alma pagã.

E os teus esforços que pusemos fora,

a trôco apenas de promessa vã.

 

Eu te agradeço as expressões sinceras,

que dia e noite vens me repetindo,

certa de que és ainda o que antes eras.

 

Eu te agradeço o labutar infindo,

pelo qual te entendi e amei deveras.

E, sendo cega, pude ver-te lindo!

 

 

O PÉ DE MARACUJÁ

À Magdala Silva Esteves Pereira.

 

Foi de maracujá, um pé viçoso,

seu último presente a mim, num dia

em que pairava no ar uma alegria.

O céu estava triste, o mar queixoso.

 

Quando meses depois, feliz, partia

para o seio do Todo Poderoso,

o maracujazeiro florescia

de um roxo melancólico, saudoso.

 

E cada flor me recordava um círio...

Tinha a coroa e os cravos do martírio,

pelo qual nossa culpa foi remida.

 

Desde êsse dia, pela vida em fora,

sempre que a linda trepadeira enflora,

lembro o ponto final daquela vida.

 

 

À HELEN KELLER

 

Tu vivias em mim sem que eu soubesse...

Era a tua alma que falava à minha,

no instante emocional da minha prece

ou se corria atrás da luz, sòzinha.

 

Era tua a vontade que me vinha

de fazer como o dia, que amanhece

na casa da mendiga e da rainha.

Eras bem tu, meu sêr te reconhece...

 

Eram bem tuas mãos que me guiavam,

que me viam, que ouviam, que falavam

de um sentido de vida, mais profundo.

 

Eram bem tuas mãos, estas estrêlas,

que me diziam com palavras belas,

tôda a razão de termos vindo ao mundo.

 

 

ÚLTIMA HOMENAGEM

Ao meu cão Fidalgo, em 29-7-1955.

Vais partir, eu bem sei. Em poucas horas

teu corpo forte ao solo tombará.

Nada pedes. Não gemes e não choras,

nem esperas sequer que eu também vá.

 

A vida que vivemos é tão má!

Nem esperança temos de melhoras;

tu, na tua mudez, não a deploras.

Assim achaste e a deixas como está.

 

Agora o que me fica já não presta.

És a única afeição que ainda me resta.

Sòmente a ti pude chamar amigo.

 

Instantes de amargura vou passando.

Sinto-me só e fico imaginando

que me seria um bem, partir contigo.

 

 

(Livro Luz de minha vidaBENEDITA DE MELLO, 1ª. Edição, 1955, Editôra Lux Ltda., Rua México, 90, grupo 505, Rio de Janeiro)

 

 

 

 

 


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