Fernando Pessoa RECEBE Afonso Duarte sob o olhar da Natureza













  
















Quando eu não te tinha... 
(Alberto Caeiro)   

Amava a Natureza como um monge calmo a Cristo... 
Agora Amo a Natureza como um monge calmo a Virgem Maria, 
Religiosamente, a meu modo, como dantes, 
Mas de outra maneira mais comovida e próxima... 
Vejo melhor os rios quando vou contigo 
Pelos campos até a beira dos rios; 
Sentado a teu lado reparando nas nuvens 
Reparo nelas melhor — Tu não me tiraste a Natureza... 
Tu mudaste a Natureza... 
Trouxeste-me a Natureza para o pé de mim. 
Por tu existires, vejo-a melhor, mas a mesma, 
Por tu me amares, amo-a do mesmo modo, mas mais, 
Por tu me escolheres para te ter e para te amar, 
Os meus olhos fitaram-na mais demoradamente 
Sobre todas as coisas. 
Não me arrependo do que fui outrora 


Por que ainda o sou. 



Afonso Duarte (Portugal, 1884-1958)

"... Aos flavos Sóis e aos tempos vos semeie
Minha bátega fluida de pedraços,
Forte rima de versos que idiei.
Que o engenho do meu cântico se afoite
Às invocadas órbitas da Noite
Em que me envolve o espírito da vida.
E da fôrça-mistério, no tormento
Da névoa, me desperte o Sentimento
Da grande fé que trago indefinida".

                       Estrofes Pagãs
                   (Excerto da Estrofe II)


Mais poemas de Afonso Duarte extraídos do livro "7 Poemas Líricos", Coimbra, 1929, e reeditados no livro "Obras Completas 1-Obra Poética", Lisboa, Plátano Editora, 1974 - respeitadas as grafias de ambas as épocas - 



                         



Inscrição
Afonso Duarte

Dos vastos horisontes me invocaram,
Noutras fórmas artísticas imersos,
Revoltos pensamentos que formaram
Todo amor e pureza dos meus versos.

Melodias que os ventos orquestraram
Foram verbo dos átomos dispersos:
Palavras que meus olhos soletravam
Num indizível sonho de universos.


Foram aromas das fecundas messes:
Como se tu, ó Terra, m'os dissesses
Numa profunda comunhão de máguas.

Geraram-mos os génios das Montanhas
Na sua fé de catedrais estranhas,
Na panteísta devoção das Águas.


Evocação de um Rochêdo
Afonso Duarte

Como rasgadas, magestosas fontes
Interrogando o gesto das Montanhas,
Génio da sombra em gestações estranhas,
O Rochêdo domina os horisontes.

E de alto pensamento, a recordar
Seus cantos de Beleza, decidido
Aponta as ondas do revolto Mar
Num sonho desmedido.

É sua voz a voz desconhecida
Duma canção perdida
Ás indizíveis músicas do vento:

Assim, bocas de rochas pedragúdas
São partituras de palavras mudas,
Falam por sentimento.

De escarpas fugidias os seus dedos,
Seus olhos fontes de águas em balada,
São límpida toada
A sublinhar proféticos segredos.

São suas veias esbatidos traços
De iluminuras íntimas, lavradas
Por um desgasto de infinitos passos
De moiras encantadas.

E plena unção de verbos de harmonia,
E a aza de sonho, a sua fantasia,
Por formas nunca dantes concebidas,

Arrasta-se nas ondas vaporosas
Como palavras de átomos radiosas
Talhando azues de tintas diluídas.

E arquitetando novos horisontes
Rézam-lhe um forte canto de verdade,
Bravos talhes de Rocha, o Mar e os Montes,
Profunda voz da doida imensidade.

A voz ungida dos bons tempos de oiro,
Que ha de volver os povos ao Tesoiro,
Duma outra época risonha, novas datas!

Que, ó Marte, ó Lua, atómicas paisagens,
Dessa vidente linha de Fragatas
Vós sereis as gangéticas Paragens!

E em novos cantos de beleza e de arte
Hão de soar no eter-universo 
Dantescas epopeias de alto verso.

Que a essa paz rutilante das esferas
Homem de Deus, Herói, hão de elevar-te
Novas façanhas fecundando as Eras.

E névoas dos Azues intemeratos,
Leves sonhos de tintas espargidas
Que parecem fingidos aparatos;

Verbos de luz a doidejar em notas
Que o vento canta em óperas sentidas,
Num mar revolto, mar de ondas ignotas;

Ó profunda e rasgada profecia
De sonhos infinitos!
Sob as azas supremas da Poesia
Sereis Beleza olímpica de Mitos.

— E era tão alto e largo o pensamento
Que levava de sonhos o Rochêdo
Que à escuta do seu cântico, o Arvoredo
É todo um mudo mar de sentimento.

— E num compasso de harmonia as Fontes
Rezavam-lhe mistérios de anciedade;
Benziam-se com gestos de verdade
Os vastos e profundos Horisontes.


Seguidilhas
Afonso Duarte


       I

Dizei vosso verso
Meu verso disperso
Nas azas do vento?



— Foge à luz dum pensamento
A alma dum sonho-universo
Perdida de sentimento.


      II

Qual é esse vago
Dos sonhos que trago
Dos écos dos montes?

— Ao longe nos horisontes
Pede-o ao luar sobre um lago...
Pede-o às águas das Fontes...


     III

E quais os sentidos
Poëmas erguidos
Das verdes folhagens?

— Paisagens, tudo paisagens...
São sonhos indefinidos
De vozes vagas de Imagens.


      IV


Que vogais abertas
Vão no vento incertas,
Sem rumo, sem dono?
      

—  São palavras de abandono:
Penugens de aves libertas,
Folhas caídas no outono.


      V

Que tristes endeixas
Nos dizem as queixas
Da mágua das Fontes?

— Menina e moça, não contes
Garganta das minhas deixas:
São fios de águas nos montes.


O Que Me Diz O Vento
Afonso Duarte

Como um guerreiro de armaduras de aço
Jogando a vida em formidando alento,
Em galopadas triunfais no Espaço,
Vibra convulso o coração do vento.

Brame e crepita a natureza imensa
Na sua voz em harmonias de oiro;
E sinto cantos dentre a névoa densa,
Rásam ondinas pelo trigo loiro.

Oiço ramagens ciciando ao largo
Vagos poemas de indizíveis mágoas:
— Falas-me, ó vento, nesse tom amargo
Das folhas soltas ao rumor das águas?

Por ti me falam cimos de Montanha,
Toalhas de neve e rios em cascata
Cavando as faces, numa fôrça estranha,
Às rochas nuas dum luar de prata.

Por ti me falam num saüdoso agoiro
Os corucheus das velhas catedrais,
Ó semeador de mil sementes de oiro
De urnas abertas como germinais!

Nesse teu hesto heroico e de mistério
Eu sinto, ó vento, a tua aspiração:
No movimento do teu peito aério
Ouço vibrar a voz da Perfeição.

Vento, ó vento, coração triunfante,
Figura estranha, solitário monge...
Aza do vento, como vens distante?
E o vento avança, o vento diz: mais longe!


Lápides
Afonso Duarte


          I

Olhos que vissem mais fundo,
Vista que tanto dissesse,
Não vão de certo no mundo.

Olhos de estrelas em messe
Dão toda a gama de côres,
Vista que aos céus apetece.

Olhos fundos, cavernosos,
São um brazil de tesoiros
De universos radiosos.

Fornalha ardente dos oiros,
São gêmas de sóis brilhantes
Brilhando nos sorvedoiros.

Ainda o Homem nunca dantes
Dêsses olhos tinha os olhos
E já se olhavam distantes.

Senhor de fundos abrolhos
Só o mar os conhecia
Soletrando nos escolhos.

Chama oculta, impedernida,
Olhos de alta profecia,
Primeiro lume na vida
Com que se o lume acendia.


          II

Mal saído da lúgubre floresta,
Quando sem nome e ainda rude fera,
Logo o Homem primitivo as considera
E nelas seu talento manifesta.

Bem cêdo bem se revê no seu tesouro
Como fonte do belo:
Das pedras faz a lâmina, o cutelo,
E soberbo de gala o seu decôro.

Com as gêmas brilhantes
De esmeralda e de jaspe e de ametista,
Feras das tribus bárbaras e errantes,
Sentiu-se ilustre, e concebeu-se artista.


         III

Hoje ainda o seu brilho se deseja;
Com êle há quem se mostre muito mais:
Linda mulher que o meu olhar corteja
Com seu colar de pedras desleais.

Petrógrafo sabido não me contes
Que as pedras preciosas, as mais delas,
Num corpo de mulher, sendo tão belas,
São destroços reais de mastodontes.

Consente que me iluda, sim, consente,
Que poise meu olhar nos seus aneis
E os beije com amor... E nobremente,

Tomado de beleza altiva e rara,
Ame o brilho solene, a carne avára,
Do seu colo aos seus dedos infieis.


        IV

Ó pedra donde a custo medra o trigo,
Mas onde há límpidos cristais em flor,
Eu te bemdigo
Bloco de amor!

Vencendo, ó pedra, as feras indomáveis
Por ti subi de fera rude a Homem.
Vim das cavernas aos templos adoráveis
Que os séculos mal gastam, mal consomem.

Por ti meu ar antigo se descobre
Desde a alma primitiva e desumana
A essa atitude grega, ao gesto nobre
Do traçar duma túnica romana.

Pedras de um templo, ó estátuas de granito,
Sois uns lábios eternos onde a vida
Se condensa num cântico infinito;

A palavra dos tempos instruída
Donde me fala e se liberta e flui
A alma que tive, a sombra do que fui.


       V

A vida não se passa, não se conta:
Todo um tempo infinito por mim erra;
Minha idade remonta
Aos primitivos séculos da Terra.

Fui o eterno; depois o celebrado
Na bárbara rudeza duma gruta;
Ontem 'Sfinge; hoje um friso de voluta,
Amanhã serei Deus petreficado.

Ó meu frágil carbone, ó carne fóssil,
Meu jovem corpo há-de florir-se em rosa,
Num límpido cristal esbelto e dócil.

E em safira, turquesa ou diamente
Serei talvez a pedra preciosa
De algum colar duma mulher galante.


      VI

Levada no rumor de uma corrente
Árida folha inerte, pobrezinha
Que se deixou do arbusto que a sustinha,
Nem vê, nem sente.

É um lánguido abandono
— Sem norte, nem rumo,
Das tristezas do outono.

Vê-la que importa?
Não me prende na vida, é como o fumo,
leva os desprezos duma coisa morta.

Mas se à pedra se incusta,
Se com amor se prende a uma rocha,
É vê-la ali robusta,
Como se faz eleita e desabrocha.

Assim petrificado o seu desenho
É vê-la em quantos sonhos reverdece,
Como nos prende à vida com empenho,
Fôlha que o Sol jamais afaga e aquece.

Por extinta que fôsse e de raiz
A árvore que a sustinha,
Dela nos fala o pequenino fóssil;

Êle a recorda, dela conta e diz,
Presa da rocha e friamente dócil,
A triste fôlha inerte e pobrezinha.


      VII

Pedra informe, pedra bruta,
Não vê, não pensa, não escuta;

Não arquitecta, Sombria,
É como se a Natureza
Quedasse tôda a harmonia
Dos concertos da beleza.

Pedra informe, pedra bruta,
Já vê, já pensa, já escuta:

Deu-lhe o buril e a ambrosia
Da forma viva dum gôsto:
E, pedra, foi cantaria,
Quebrada a linha do tôsco.

Pedra informe, pedra bruta.
Se vê, se pensa, se escuta?

Deu-lhe o cinzel Senhoria,
Tocou-a de alma, de estilo...
E aquela grossura fria
Vai toda Vênus de Milo.


      VIII

Sonha na pedra e canta delirante
Tua orquestra de células sentida,
Ó prece dos escopros incessante
Talhando a rocha inerte e adormecida.

Ó prece dos escopros, sonha e canta
Por essa luz profunda que irradias;
Reza na Pedra a melodia santa
Do verbo-unção das grandes harmonias.

Em tercetos de mármores urdida,
Vaga prece da Forma, sonha e canta:
Reza na Pedra, evangeliza a vida!

Que em palavras de largas fantasias
Desse teu canto forte se levanta
O Busto secular de nossos-dias. 





                   













Águas Passadas
Afonso Duarte

Sôbre uns conceitos íntimos da vida
Interroguei as águas caudalosas:
As que me dão na sua voz sentida
Uma impressão de coisas tenebrosas.

Interroguei as águas que distante
Do que deixaram passam a cantar
E cuja vida é caminhar avante
Desde a nascença até fundir-se em mar.

Águas que amaram os cristais e as flores
Pelas vertentes frias das montanhas,
Cantando-nos seus límpidos amores
Em germinais de convulsões estranhas.

Águas que ouviram íntimos segrêdos
À rocha nua, aos lábios do granito,
Azul do céu, estrêlas e arvoredos...
— Que as águas são espelhos do infinito.

E recordando-lhe os cristais e as rosas
Interroguei as águas caudalosas
Sôbre o que seja esta ância de viver:

E ouvi então à sua voz sentida
Num tom convulso dum adeus dizer:
— Viver? É a vida sempre em despedida.


O Cântaro da Água
(Canção do Oleiro)
Afonso Duarte

Ao pé das águas correntes
De bruços matei a sêde:
E, encanto que me faz mágoa,
Nas mãos depois encontrei
A concha de beber água.

Mas o vaso era imperfeito
E a sêde não me parava
Por montes de áridas fráguas:
A modos que era de geito
Ter um regato comigo
Pelos desertos das águas.

E vai, como era preciso,
Com juizo e longo adrêde
Da terra mãi fiz o vaso
Que bastasse à minha sede.

E como sabia amar,
A gôsto de rapariga,
Minha amiga e minha bela,
Foi cheio do gôsto dela
Que eu me dei a modelar.

Dum barro côr de sol-pôsto,
— Ora vêde que primor! —
Eu fiz o púcaro e o cântaro
À vista do meu Amor.

Foi cheio do gôsto dela,
Foi meu amor... foi Aquela...
Num dia morto de sêde...
Ora vêde
Quem o anima e reanima
Se não é o corpo dela
Da cintura para cima?

E em ar de dança do Povo
Os braços ergue à cabeça:
E o pucarinho, com graça,
Sentado no têsto côvo
É uma figura travêssa.


Rimance
Afonso Duarte

Já as aves das ramarias
Com gestos da sua graça
Mal o sol dá na vidraça
Entram a dar-nos Bons-dias.

Já meu irmão roussinol
Canta das bandas do Rio
E eu, por mim, o desafio
Às simpatias do Belo.
— Na propria língua do Sol
"Bons-dias" entro a dizê-lo.

E o rossinol vôa. Vôa
Meu canto no coração:
E o Sol benze e abençôa
Todas as terras de sol,
Da terra que não floresce
À que engrandece o meu pão.

Mas vai que neste remanso
Por onde nunca descanso
De me encontrar fugidio,
Parece que a luz do Sol
Se pôs tôda em mês de cio.
Já agora se alpina em brasa
De sôbre as águas do Rio.

E entrando a dar-se de mal
Salgueiros do Salgueiral
Com um sol tão doentio,
Vendo-se quáse de rastros
Já vão de si para si:
"É bem que êle, rei dos astros,
Apenas acaricie".

"Nós, cá, somos achegados
Ao sangue dêste remanso
Que é gente de nossa casa
(Dizia um salgueiro novo),
Não descanso
Enquanto o não vir sem brasa,
Frio, frio ao continente
Lá pelas bandas do Poente
Sem estas águas do Rio".

E êles que eram achegados
Tomavam-no fugidio
Àquelas águas do Rio.

Só a mim, a mim, coração
A quem muito amor ordena,
Dava o sol estimação.

Sol de uma moça morena
Que agora vinha e lavava
As anágoas, as roupinhas
De sua irmã mais pequena.

E já o sol acaricia
A bem dos verdes salgueiros;
Já por ele enternecia
O canto do roussinol.

E mais fazia o meu gôsto,
Com seu ar de desafio,
Vê-la bater a cantar
Seu rol de roupa no Rio.

Que um amorzinho de moça,
Na graça do seu amor,
O amor das coisas remoça.

Já o sol por entre fraguas
Dava mancheias de côr
Às águas: E eu amava-a
Ainda com mais amor.

E as águas vendo-lhe as formas
Quando passavam por ela,
Tinham preguiça de vê-la
Que paravam
Com ondinhas de carícias
Espertas, vivas e crespas
Em torno dos braços dela.

Já um salgueiro do remanso
Daquela curva do Rio
A beijo e a gosto da aragem
Ia afagar o seu rosto
Com gesto brando e macio.

Que um amorzinho de moça,
Na graça do seu amor,
O amor das coisas remoça.


                  

























Versos da Madrugada
Afonso Duarte

Manhã de Sol caindo aos silvos na água!
O dia rompe a cantos de epopêa:
Aço de enxadas a bater em frágua,
Luz orquestral a que o verão semeia.

E p'lo sinal da luz amanhecente,
Sol-nosso, o povo reza, Avé-Maria...
Doa-se à Terra e aos Céus por toda a gente
O terrível pagão do claro dia.

E ao Sol o povo, manteando o monte!
Até as pedras deitam flor e fruto!
— Ouço em eco meus versos no horizonte...

Ó dor e amor! Ó Sol da manhãsinha!
Canções da gente rude, se as escuto,
Eu mesmo cavo e sou quem poda a vinha!


Elegia do Cavador
Afonso Duarte

          I

Deus do Céu venha a meu rôgo,
Que a enxada já mal se ferra:
Grita o sol dardos de fogo
E eu ando farto de terra!


         II

Há nuvens negras a prumo
Sôbre os meus ombros, ó dor!
São minha carne a pôr fumo,
São bagas do meu suor.


        III

Veio daqui a subir
Fumeiros da minha casa...
Outros que passam a rir
Custam-me os nervos em brasa.


        IV

Serei eu escravo dum crime
Que a Deus fizesse algum homem?
De corpo feito num vime,
Minhas lágrimas consomem.


        V

Deu-me Deus a vida cara,
P'ràs nuvens se vai meu ganho:
Custam-me os olhos da cara
Donas das terras que amanho.

                    







       












I

Recolhe o dia aos campos e à cidade
A Tarde... E, num crepúsculo de beijos,
Que o Sol alança a bôca aos meus desejos,
As horas vão morrendo com saüdade.

E o dia lembra — que é chegado ao fim —
Ao Pintor das Penumbras a que venha...
E como deixa os altos da montanha
O Sol, à Tarde, afasta-se de mim.

Vai longe a taça de oiro e pedrarias
Das voluptuosas, bêbadas manhãs,
Do grande Sol heróico dos bons-dias!

E ao recair das horas, pelo outono,
As coisas choram lágrimas cristãs
Sob as cinzas da tarde, ao abandôno.


       II

O céu baço enevoa-se de alfombras...
E o Pintor das Penumbras, já sem tintas,
Larga a chamar o mágico das sombras!
E o grão Pintor das coisas mortas, pinta-as...

"Vem com os tons de nuvem para leste,
Por onde o sol viu o dia mais contente"
Diz-lhe o das tintas vagas! — Tarde agreste...
Vão cheias de oiro as portas do Poente...

"Detem o braço dos heróis, o músculo
À raiva das enxadas que eu contemplo!
Dá-lhe o teu oiro, ó névoa do Crepúsculo...

"Vês as sombras da tarde? Anda acendê-las
À luz da minha sombra. Olha, o meu templo
É um negro céu com lâmpadas de estrêlas".


      III

Já do Sol-pôsto o dia se embriaga:
E olhos fitos nos céus, e as mãos erguidas,
Os choupos implorando a Tarde vaga
Lembram spectros de místicos suicidas.

E ao Crepúsculo, assim, todo indeciso,
Eu creio piamente — oh! céu profundo —
Que é o dia transcendente do juízo,
E os choupos que são almas do Outro-mundo.

Calam as coisas seu perfil aéreo...
E ajoelham-se os montes-olivêdos
A rezarem na sombra o seu mistério.

A Tarde morre: e com seu ar contristo
Os choupos lembram, lívidos e quêdos,
Ao pôr do Sol, macerações de Cristo.





                   























Prólogo
Afonso Duarte

Oh! Musas da antiga Roma,
Oh! Liras da Grécia amiga,
Portugal, Sol-pôsto, assôma
À maior beleza antiga.
Que do Dante até a mim
O mundo só tem gritado!
E assim, ó Almas, assim,
Épico mundo moderno,
Eis-me entoando ao Inferno...
Sou o seu grito acabado.


Plenilúnio
Afonso Duarte

Dá a Lua-cheia sôbre o meu casal...
Que fundos de alma em religiosas telas!
Olha por mim o céu de Portugal
Com olhos beatíssimos de estrêlas.

E, em fluído ocaso ainda, o sol derrama
Não sei que olhar extático de monge...
E, lívido êrmo onde o Silêncio chama,
Dobra em minh'alma a voz cristã do longe.

Dia ao mar: o sol finda o seu Poema...
E, hora de cinza, em dúvida suprema,
O longo fim da tarde desconsola.

Já nas sombras da noite, orando aos céus,
Como um pobre de Cristo pede esmola,
Erguem os choupos suas mãos a Deus.


Hora Mística
Afonso Duarte

Noite caindo ... Céu de fogo e flôres.
Voz de Crepúsculo exalando côres,
O céu vai cheio de Deus e de harmonia.
Silêncio ... Eis-me rezando aos fins do dia.

Névoa de luz criando imagens na água,
Nome das águas esculpindo os céus,
Tarde aos relevos húmidos de frágua,
Boca da noite, eis-me rezando a Deus.

Eis-me entoando, a voz de cinza e ouro,
— Oh, côres na água vindo às mãos em branco! —
Minha ópera de Sol ao último arranco.

E, oh hora mística em que o olhar abraso,
— Sol expirando aos Pórticos do Ocaso! 
Dobra em meu peito um oceano em côro.

                   


Magia dos Pirilampos
Afonso Duarte

Scintilam na restêva os pirilampos:
— Bailados de luz viva, logo morta.
Anda a crença a bater de porta em porta
Que há alminhas penadas pelos campos.

Luzem na floresta às vezes tantos
Que ao luzeiro macábro, além, da horta
Um frio gume de mêdo me recorta
— O infantil mêdo que se esconde aos cantos.

E, despedindo lume entre os silvêdos,
Cruzam de agoiro a noite e de bruxêdos,
Luzes de feiticeiras contradanças.

"Pirilampos debaixo da maquia",
Que vezes me embruxou vossa alquimia,
Oh! magos" — "para engano das crianças".


Hora de Saudade
Afonso Duarte

Vou de luar em rosto, descontente:
Meus olhos choram lágrimas de sal.
— Adeus, terras e moças do casal,
— Adeus, ó coração da minha gente.

A hora da saudade é uma serpente:
Quero falar, não posso, e antes que fale,
Ela enlaça-me a voz tão cordeal
Que as coisas mais me lembram fielmente.

Olhos de amóra, e uma ave na garganta
Para enfeitiçar a alma quando canta,
Môças com sua parra de avental;

Graças, Beleza, um verso sem medida,
A Saudade desterrou-me a vida...
Sou um éco perdido noutro vale.


Noite do Roubo
Afonso Duarte

A quem foram roubar os pobres trapos:
A mim, que sou humilde pobrezinho?
Olhem bem que o valor dêsses farrapos
Está em ter minha avó fiado o linho.

Ó rocas a fiar, contos de fadas!
Eu tinha-lhes amor e a simpatia
Que vem das saudades de algum dia,
Longe, das velhas noites seroadas.

Bragais de minha casa, e as roupas feitas
Por mãos de minha mãe, muito me assusta
Que os tomassem perversas mãos suspeitas.

Ah! mãos do furto, olhai, trazei-me à justa
Os meus linhos — suor dumas colheitas —
E amor dos meus que a mim muito me custa.


O Mêdo das Sombras
Afonso Duarte

Rondam sombras pelas têlhas:
Não é vento! são andanças
De bruxas! As bruxas velhas
Chupam o sangue às crianças.

A mãe dorme, a filha ao pé,
Em casa de têlha vã
Onde nem há chaminé;

E de interiores deserta 
É tôda uma casa aberta
À chuva e sol da manhã.

E a filha diz para a mãe,
Como a mãe responde à filha,
Porque êste drama não tem
A mais do que mãe e filha:

— Mãesinha, que é, que é?

— Nem vento, nem lua cheia,
Nem sombra que se dê fé
De algum morrão de candeia.

— Mãesinha, que é, que é?

— Não luz vidro no soalho,
Nem há lume de tição;
Está a gatinha ao borralho.

Oh! dorme, meu coração,
Susto, filha, não te dê:
A água do bebedoiro
Espelha luz que se vê.

Longe vá o mau agoiro,
Benza-me a luz que nos olha:
Quem não existe não é.

O pucarinho de fôlha
Lá está no mesmo pé.

— Pela têlha destelhada,
Minha mãe, minha mãesinha,
Voar negro de andorinha
Com risos de gargalhada!

— Água da bica, lá fóra,
Corre, corre, que se chora:
Filha minha, não tens sêde?

— Como peixinhos na rêde,
Sombras, ó mãe, na parêde!

Não é nada, não é nada:
Buraco da fechadura,
Em rosa de luz coada
Será a luz da madrugada
Que vem em nossa procura.



                 





















Memória
Afonso Duarte

No outeiro da verdura estremecida,
Mui saüdoso do balir dos gados,
Dei razão de comêço à triste vida.

Aqui nasceram, por sublime cousa,
Versos de adolescente enamorados
Onde dorido coração repousa;

Aqui jaz a memória de outros dias,
Viva como as piteiras dos valados
E as vozes das agudas penedias.

Distantes vão de amores as lembranças
Mas tão frescos os nomes tem gravados
Que se dizem ternuras de crianças.

E meu nome repetem vale e outeiro
E há árvores que dão a minha imagem.
Sacrifiquei, por certo, o amor primeiro
Por me encontrar de mais com a paisagem.

Oh! Na Árvore, há um bem extraordinário:
A palavra melhor que a nós nos prende
(Meu doido coração imaginário)
Se o coração de alguem nos não intende.

Árvore! Hás-de ser sempre uma irmãsinha
Duas horas da minha'alma, e tôda igual,
Como a lama do ninho no beiral
É lembrança perene da andorinha.


Carta a um «Amor»
Afonso Duarte

         — Para Margarida —

Recordo, Margarida, as tardes quando 
Caía no Marão o Sol de julho! 
Meu ranchinho de rôlas rorôlando, 
Vós éreis meu orgulho. 

O ar como um veludo, os ares tão macios, 
Ó tardes do jardim! à fonte da água, aos fios, 
íamos todos nós em tão alegre bando 
Que desde que eu o não sinto 
Sou como um corpo extinto, 
Não sinto ora nem quando. 

E estar de vós tão longe 
Cá neste meu terreno onde pareço um monge, 
Sem uma linha, um verso 
Dêsse Corgo sem par, a bôa e madre 
Terra como outra assim não haverá, 
Montanhas que no Céu têm aquási o berço! 
Escreve, Margarida, ao teu compadre, 
Vá! 

Quero que diga 
Florinda como vai, e vai assim Lorêto, 
Lindo pagem, que linda em seu veludo prêto! 
E os mais amorsinhos, rapariga, 
Os que tua amisade aí me deu! 

Na alma dum poeta, vê-se nela o céu: 
E assim 
A tudo, Margarida, o que o prendeu 
Arrecada-o na vida, e para a morte. 
Escreve mal, e daí, que não te importe, 
Mas lembra-te de mim! 
Saüdades minhas: tudo bem por cá: 
Escreve, Margarida, ao teu compadre, vá! 

Amor dêstes meus olhos nunca enxuito, 
Adeus — saudade:

                 Adeus:

                       Amo-te muito, muito. 


Cantigas
Afonso Duarte

     I

Não há pressas, nem demoras,
No coração das cantigas;
Nem os relógios dão horas
Quando cantam raparigas.

     II

Como algum dia ando hoje;
Sou o mesmo apaixonado;
Quem disser que o tempo foge
É de nunca ter amado.

    III

A saudade é queda d'água
Que ao longe quebra, ao bater;
É um compasso de mágoa
Marcado por te não ver.

    IV  

Como um adeus de saudade
Não há palavra tão louca:
Dizer adeus, ninguém há-de
Ouvi-lo da minha bôca.

    V

Quem ama liga-se à terra,
Quem canta, ao reino dos céus;
Quem pára que Deus o salve,
Quem anda que vá com Deus.


Amor
Afonso Duarte

          I

Por teu ventre começa a minha vida,
Por teus olhos a estrêla que me guia.
Amor, que Deus te salve! — Ave-Maria,
Cheia de Graça ó Bem aparecida.

Por meu e por teu verbo de harmonia
Se fará eterna origem comovida
De outros frutos de amor! — Ave-Maria,
Senhora da minh'alma apetecida.

E meu sangue amoroso e produtivo
Se fará carne e espírito fecundo
À tua imagem noutro corpo vivo.

E assim ambos, Amor, irêmos ser
Seio da vida originando o mundo
Por teu ventre bemdito de Mulher. 

          II

Pela vida mortal que eu adivinho,
Ó fonte dos meus olhos criadora,
Não me deixes perdido no caminho
Das tentações da carne pecadora...

Por gerações de amor, sagrado ninho,
Venham as mortes sôbre a Terra, embora,
Que noss'alma de enlêvo e de carinho
Será perante a Vida imorredoura.

E glória seja ao primitivo nome,
Graça eterna de Deus que ao Mundo veio,
Pelo fogo de amor que me consome.

Por tudo o que em minh'alma houver de bem,
Ventre que me geraste no teu seio,
Deus te abençôe por mim, ó minha mãe.

         III

Eleita da minh'alma e do meu gôsto,
Como te encontro bem dentro de mim!
Que lindo fica o teu olhar, assim,
Quando meus olhos queimam o teu rôsto!

Trago de longe os teus desejos... Tôdo
Cheio de mim vivo contigo imerso.
Quando nasceste ouviu-me Deus... A modo
Que foi assim meu coração teu berço.

Tu vives para mim tão casadinha,
Dá-se tanto minh'alma com a tua
Que não sei qual das duas seja a minha.

Criei, amor, bem dentro, aos meus desejos:
Amo a luz que a teu corpo me insinúa
E abraço tonto o coração aos beijos.


Rosas e Cantigas
Afonso Duarte

Eu hei de despedir-me desta lida,
Rosas? – Árvores, hei de abrir-vos covas
E deixar-vos ainda quando novas?
Eu posso lá morrer, terra florida! 

A palavra de Deus é a mais sentida
Dêste meu coração cheio de trovas…
Só bens me dê o céu! eu tenho provas
Que não há bem que pague o desta vida.

E os cravos, mangerico e limonête,
Oh, que perfume dão às raparigas!
Que lindos são nos seios do corpête!

Como és, nuvem dos céus, água do mar,
Flôres que eu trato, rosas e cantigas,
Cá, do outro mundo, me fareis voltar.


Vitral
Afonso Duarte

Franzina, é como um choupo à luz da Lua;
É a noite escura o seu olhar de mágoa.
Uma ogiva os seus braços quando amúa,
Modêlo foi dos cantarinhos de água.

Dizem os seios que a farão mãezinha:
Oh, que linda menina casadoira!
São os seios da virgem donzelinha,
Dois novêlos saltando à dobadoira.

Seus lábios, duas pétalas de rosa:
Abrem as rosas como a bôca enlaça...
Em beijo a bôca é uma flor ciosa.

Num lago a Lua: o seu andar embala;
São suas mãos às que eu imploro a graça,
Seu corpo esguio, uma ânfora com fala.


Provençal 
Afonso Duarte

Em um solar de algum dia
Cheïnho de alma e valia,
Foi ali
Que ao gôsto de olhos a vi.

Como dantes inda vasto
Agora
Não tinha pombas, nem mel.
E à opulência de outrora,
Esmoronado e já gasto,
Pedia mãos de alvenel.

Foi ali
Que ao gôsto de olhos a vi.

O seu chapeu, que trazia
Do calor contra as ardências,
Era o que a pena daria
Num certo sabôr e arrimo
Com jeitos de circunferências
A morrer todas no cimo.

Davam-lhe franco nos ombros
As pontas do lenço branco:
E sem que ninguém as ouça,
Eram palavras da môça
Com a voz alta de chamar;

Palavras feitas em gesto,
Igualzinho e manifesto,
Como um relance de olhar.

E bela, fechada em gôsto,
Fazia o seu rôsto dela
A gente mestre de amar.

Foi num solar de algum dia,
Cheïnho de alma e valia,
Que eu disse de mim para ela
Por êste falar assim:

Vem, meu amor!

E os dois iremos juntos pelos montes;
E o Sol abençoará, nosso tesoiro,
A seara, o pão da terra, o trigo loiro,
E como nós hão de falar as fontes.

Vem, meu amor!

E terás os meus cantos, o que eu valho;
Vem: serás do meu sangue e meu suor!
Dê-me beijos e graça o teu amor
E encherás de ternura o meu trabalho.

Vem, meu amor!

E o fim do nosso dia, o sol poente,
Sem más obras na mente e coração,
Há-de sorrir à nossa casa, à gente.

Vem, meu amor!

Vem como o Sol doirado quando brilha
De juntinho da terra e em devoção
Êle a beija e fecunda à maravilha.


Paisagem Única
Afonso Duarte

Olhas-me tu: e nos teus olhos vejo
Que eu sou apenas quem se vê: assim
Tu tanto me entregaste ao teu desejo
Que é nos teus olhos que eu me vejo a mim.

Em ti, que bem meu corpo se acomoda!
Ah! quanto amor por os teus olhos arde!
Contigo sou? — perco a paisagem tôda...
Longe de ti? — sou como um dobre à tarde...

Adeuses aos casais dessas Marias
Em cuja graça o meu olhar flutua,
Tudo o que amei ao teu amor o entrego.

Choupos com ar de velhas Senhorias,
Castelo moiro donde nasce a Lua,
E apenas tu, a tudo o mais sou cego. 


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