Livro Sol nas Trevas - BENEDICTA DE MELLO (1944/1978)

 


Sol nas Trevas (1944/1978)

 BENEDICTA DE MELLO

2ª. Edição - 1978

(grafia da época)

 

 



PREFÁCIO

 Benedicta de Mello, poetisa admirável.

     Dando o nome de Benedicta a esta pernambucana, como que adivinharam o seu belo destino intelectual, porque abençoada tem sido ela pelo espírito, mau grado a impossibilidade de ver diretamente as coisas e as criaturas da Terra. 

    Seu talento é vigoroso e, sentindo, imaginando tudo isto, é ela superior a tantos donos deste mundo de luzes e cores, incapazes de deter-se diante de um sorriso de criança, de uma haste florida, de um casal de namorados. 

    A ninguém que a encontre pela primeira vez dá Benedicta a impressão da cegueira. Seus olhos se nos afiguram límpidos e profundos, de uma suavidade estática. E igualmente seus versos não transmitem qualquer sensação de cegueira mental. Como que ela recolheu em pessoa todos os temas emotivos e descritivos de que fala. As suas imagens vibram de vida real e as palavras cantantes pousam sempre, antes de desferir vôo, numa encosta de colina, num recanto de jardim, numa crista de vaga que a gente parece reconhecer sem esforço, que todos parecem ter visto ao mesmo tempo que essa admirável poetisa "as viu". 

    Tratando do amor, do grande artista Carlos Gomes, da saudade, das flores pomposamente ornamentais ou dos insetos mais humildes, a autora destes versos, versos entre românticos e clássicos, faz-nos compreender que, como no impressionante símbolo de Maeterlinck, os cegos são outros, são, os que vivem perdidos na selva dos preconceitos nefastos e jamais enxergarão em sua noite a estrela que conduz, ao presépio onde Cristo renasce sempre para os ambiciosos de ternura... 

    Rio, outubro de 1944.

 

                                   AGRIPPINO GRIECO

 

 

 

AOS QUE ME LEREM 

Vós que o mundo enxergais e sois felizes,

perdoai se nestas páginas sombrias

aparecem queixumes dos meus dias

cheios de melancólicos matizes.

 

A desgraça tem folha e tem raízes;

é planta que nasceu nas penedias,

exposta ao sopro de rajadas frias,

plena de golpes e de cicatrizes.

 

Ao pé dela, a mim própria indiferente,

fui formando este livro, descontente,

sem nenhuma vaidade e nenhum brilho;

 

toda a amargura que em seus versos vai,

vereis naquele que for cego e pai,

vereis naquele que tem cego um filho.

 

 

PARA VOCÊ

À minha amiga Maroquinha Jacobina Rabelo.

 

Você que me vem ver longe, onde moro,

que cedo ou tarde, sempre me procura,

que n'alma tem a excelsa formosura,

que me consola, quando às vezes choro,

 

você, que jamais nega o que lhe imploro,

que no mundo me deu tanta ventura,

que fez de estrelas minha noite escura,

você cujas virtudes eu adoro,

 

você, que minha vida deu história,

que me acendeu as luzes da memória,

que sem arrefecer sempre me quis,

 

tome estes versos como puro afago,

dados todos por bens que eu não lhe pago,

pois ninguém paga o bem de ser feliz.

 

 

AO HÉLIO 

Quero-te a ti e a tudo quanto é teu;

quero-te pobre como foi Jesus;

quero teu sofrimento, tua cruz,

quero teus olhos onde o olhar morreu.


Imenso egoísmo que do amor nasceu,

e não sei a que ponto me conduz;

quero-te assim, sem vista, pois sem luz,

creio-te mais profundamente meu.

 

que se o mundo visses, visses tudo,

de mim terias pena, embora mudo,

para não afligir a minha dor;

 

é que não vendo tu, como eu não vejo,

sinto mais meu, igual ao meu teu beijo

e vejo o teu amor no meu amor.

 

 

EU NÃO SOU INFELIZ 

Eu não sou infeliz no meu rincão;

infeliz não será quem tanto goza

de natureza tão prodigiosa

que causaria inveja à perfeição.

 

Durmo a sorrir na rede de algodão,

suspensa aos galhos de árvore frondosa,

ouvindo a sinfonia majestosa

da passarada em linda orquestração.

 

Eu não sou infeliz; não pode ser

quem vive sem os danos padecer

de saraivas, ciclones e vulcões.

 

Eu não sou infeliz na Pátria imensa

onde o homem, que é livre, escreve e pensa

na sábia e doce língua de Camões.

 

O RIO E O PINGO D'ÁGUA 

O rio passa ufano, intrépido, bravio,

fertilizando a terra, inundando a baixada,

estrepitoso, audaz, impávido, erradio,

com selvagem rosnar de uma hiena esfaimada.

 

Numa pequena folha, tênue, delicada,

rutila ao novo sol, de manhãzinha, ao frio,

uma gota de orvalho humilde, abrilhantada;

eu paro deslumbrada olhando a gota e o rio.

 

E penso: Este caudal, forte como o destino,

que denota ousadia em sua correnteza,

há de invejar, e muito, o fulgor diamantino

 

deste pinguinho d'água em sua singeleza,

a brilhar por si só, trêmulo, pequenino,

em meio à vastidão da imensa natureza.

 

 

FAZ DE CONTA 

A criançada brinca no terreiro;

enquanto vai brincando, vai mentindo.

A lua nasce, flores vão-se abrindo,

e ela faz do que é falso, o verdadeiro.

 

Crianças, como o gozo é passageiro!

Saudade! Quanto frio vou sentindo!

Parece que em minh'alma vai caindo

a neblina que cai no mundo inteiro.

 

"Faz de conta que eu sou uma rainha",

grita uma pequenina. "E a princesinha

sou eu, sou eu", outra garota diz.

 

Assim a infância esta existência afronta:

a vida é bela! Tudo faz de conta.

Poder fazer de conta é ser feliz.

 

 

O PENSAMENTO 

O pensamento! Sabes o que seja?

Ele é inferno ou céu n'alma da gente;

asa incolor que sobe e que rasteja;

prêmio ou castigo, só seu dono o sente.

 

Sincero servidor, mágica lente

permitindo que o próprio cego veja;

farol norteando a evolução da mente,

se a maldade dos homens a apedreja.

 

Pensamento! Intangível condutor!

Chega sempre depressa e sem rumor;

guia o bem, e se é mal, guia a maldade.

 

Com rapidez maior que a de um lampejo,

se vem antes do amor, ele é desejo;

se vem depois do amor, ele é saudade.

 

 

TIVE VONTADE 

Tive vontade de partir também,

tive vontade de ficar sozinha,

tive vontade de não ser ninguém

sem perceber que era vontade minha.

 

Sem pensar que vontade você tinha,

tive vontade de lhe ser alguém;

um alguém que você não adivinha,

mas a quem deveria querer bem.

 

Tive vontade... Não sei bem de quê:

de ficar para sempre com você,

vontade de o querer como já quis.

 

Quanta dor, quanto amor, quanta saudade!

Tive vontade de não ter vontade,

Para ser, sem vontade, mais feliz.

 

 

O CORAÇÃO E OS OLHOS 

"Ama", foi ordenado ao coração.

"Vêde e chorai", aos olhos foi mandado.

"De quem será maior o galardão"?

Foi-lhes também um dia perguntado.

 

"Meu" disse o coração "Eu tenho amado".

"Nosso" os olhos disseram; "A paixão

que em teu vibrar ansioso tens guardado,

em nosso pranto achou consolação.


O coração, se deixa de viver,

deixa de perceber, deixa de amar;

entanto os olhos, não; podem sofrer,

 

podem extravasar-se e até murchar;

cessam de fulgurar, cessam de ver,

porém não cessam nunca de chorar.

 

 

SER MULHER 

Ser mulher é ter alma e essa alma engrandecer;

é ter nascido sonho, é ter nascido amor;

ser mulher é ter mais do que se pode ter;

é viver dando sombra, é morrer dando flor.

 

É descer sem cair, é subir pela dor,

é saber desejar, esperar e sofrer;

é receber um mal e achar nele um favor;

é transformar-se em luz e para a luz viver.

 

Ser mulher é guardar dos homens o destino,

se dizê-lo tentasse, acaso, um ser divino,

após anos passar em apurado estudo,

 

não resistindo à luz da inspiração sagrada,

sem que ao mundo pudesse acrescentar mais nada,

diria só: "mulher"! E ficaria mudo.

 

 

O ALGODOEIRO 

O algodoeiro, sem que alguém lhe empreste

as três cores de sua curta vida,

ao nascer traz de verde colorida

a tenra folha de esplendor agreste.

 

Se de lagarta não o assola a peste,

e a chuva dá-lhe a natural bebida,

cresce e conserva a mesma cor garrida,

até que todo de ouro se reveste.

 

E a árvore, como esplêndida donzela,

no luxo da roupagem amarela,

de um noivado parece antegozar;

 

então, num gesto sedutor e franco,

toda se envolve num vestido branco,

para depois ao homem se entregar.

 

 

O LOUVA-A-DEUS 

O louva-a-deus tão verde e tão franzino

fica às vezes nos campos a vagar,

como um galho de Planta pequenino

que fosse alguma planta procurar.

 

Tem dos humanos muito a recear:

quando me viu, foi tal seu desatino,

que pôs as mãos, talvez para implorar

que o deixasse seguir o seu destino.


Vendo tanta humildade e mansidão

nessa doce atitude de oração,

de joelhos, pus as mãos, rezei também.

 

Minutos de emoção e de magia!

Perto, o canto do galo ao céu subia,

e a natureza murmurava: "Amém"!

 

 

AS DUAS GOTAS 

No quarto de um enfermo, em tarde colorida,

encontraram-se a sós, não sem surpresa e espanto,

uma gota de sangue e uma gota de pranto,

e a primeira falou, voz vibrante e atrevida:

 

"Eu sou o vigor do corpo, o movimento, a vida;

sou no mundo animal, a sedução, o encanto;

guardam-me os reis a cor na púrpura do manto;

e tu, quem és?" pergunta à lágrima sofrida.

 

Ela não respondeu; e mal o sol raiou,

débil por natureza, evaporou, sumiu;

enquanto o sangue ao chão endureceu, secou.

 

Agora tem já feia e negra sua cor;

entristece e repugna; e o pranto ao céu subiu

para luzir depois no seio de uma flor.

 

 

 

UM PRESÉPIO 

Ele sai, ela fica; está sozinha

nesses dias de aurora rosicler.

Espera um filho, arranja-lhe a roupinha.. .

Como será feliz quando ele vier!

 

"Há de ser lindo!" diz: "se Deus quiser!"

Beija-lhe o cinto, o cueiro, a camisinha.

E de um belo regaço de mulher,

vem para o mundo um ser; é já noitinha.

 

Chega o pai, da lavoura, e a mão calosa

põe na criança, pétala de rosa,

que o fluxo de um amor deitou num lar.

 

De joelhos, junto aos dois, na mesma esteira,

sob o langor da tarde brasileira,

aquele homem grosseiro aprende a amar.

 

 

ESPINHOS 

A rosa purpurina, de ouro ou neve,

tem, com razão, orgulho de ser flor;

sua vida tão útil quanto breve,

ao vivo e ao morto leva o seu favor:

 

Possui em cada espinho um protetor

que lhe resguarda a fronte pura e leve;

fornece mel à abelha e esparge odor,

com altivez de alguém que a ninguém deve.


Feliz, desabotoa num sorriso;

pelas verdes agulhas protegida,

aplaude o bem, e para o mal é aviso.

 

Mulher! Tal como a rosa preferida,

deves saber magoar, sendo preciso,

se quiseres ser flor durante a vida.

 

 

OS HOMENS 

Os homens são bons venenos

que se aprova ou se rejeita

se aprovados, são terrenos

que mal permitem colheita.

 

Males que a razão aceita,

e o coração torna amenos,

são lagos fundos, serenos,

onde se banha a suspeita.

 

Causam-me às vezes receio,

às vezes me inspiram dó

com seus maldosos anseios.

 

Ei-los em linhas gerais;

e se eu não amasse um só,

achava-os todos iguais.


CARTAS

 Várias cartas trocamos noutros dias;

eu, nas minhas, não disse que te amei;

falava-te de flores, de poesias,

de tanta coisa linda, que nem sei.

 

O amor que em tardes cálidas sonhei,

guardei-o n'alma envolto em fantasias;

para evitar desgostos que terias,

somente eu soube o mal que a mim causei,

 

Carta de amor não vai pelo correio:

profanaria o mais sagrado anseio.

Quis dizer-te em palavra, o que senti.

 

Uma carta se faz, e outra se pensa;

guardei intacta essa afeição imensa

na que pensei e nunca te escrevi.

 

 

TRANSFORMAÇÃO 

Um sino cujo som nos ares erra,

num apelo aos fiéis para oração,

foi uma vez levado para a guerra

transformado em sacrílego canhão.

 

Sua voz foi gorjeio, hoje é trovão;

bênção de outrora que hoje um crime encerra.

e ao grito rouco e mau responde a ação,

e tingem-se de sangue mar e terra.


Sino da torre que desceste tanto!

Tu'alma há de vibrar, magoado sino,

na gota ardente do sentido pranto

 

da viuva sem lar e sem conforto,

que tem no colo o filho pequenino

e tem no peito o coração já morto.

 

 

MINHA BONECA 

Eu tive uma boneca, uma somente;

Quando fiz anos, minha mãe me deu;

clara e loura, de mim tão diferente,

mas era minha filha, achava eu.

 

Vi-a através de sombra transparente.

Pena não ser moreno o rosto seu,

nem ser o seu cabelo reluzente

e crespo assim como era crespo o meu.

 

Chorava-lhe a mudez e fria calma.

Aos meus olhos sem luz era divina.

Por isso a fiz princesa e dei-lhe palma.

 

Minha boneca esbelta e pequenina!

Só pude vê-la pelos olhos d'alma

nos embaçados dias de menina.


CROMO 

Costuravam as duas. Da janela

via-se o monte além, de sol banhado.

Mãe e filha: botão desabrochado

e rosa a desfolhar-se, ainda bela.

 

Descrenças nesta, seduções naquela.

Ao descuido da filha, a mãe, ao lado,

ralha mostrando o pano mal talhado

E beija ternamente face dela...

 

Fiquei muda, de pé, alma vibrante,

a mendigar, faminta, algum bafejo

daquele amor materno, edificante.

 

Sabendo o que é ter mãe, tive desejo

de tomar para mim naquele instante,

toda a repreensão daquele beijo. 

 

TENHO PENA DE TI 

Tenho pena de ti porque adivinho

neste sorriso teu que ao mundo engana,

a quintessência da tristeza humana,

a dor de amar e de viver sozinho.

 

Do amor provaste o ambicionado vinho;

venceu-te a sorte má e soberana;

dominou-te da vida a luta insana,

e em vez da rosa, deu-te o mundo o espinho.


Não percebes que o chão rebenta em flores,

que os pombos vivem cochichando amores

que há festa de noivado nas auroras;

 

sofres ainda mais entre os felizes.

Tenho pena de ti porque não dizes.

Tenho pena de ti porque não choras.

 

 

A CAPELA DA VILA 

A capela da vila abre de par em par

as portas aos fiéis que aos domingos lá vão.

Cedinho o sino chama o povo do lugar,

e outro sino responde em cada coração.

 

Fartos raios de sol douram-lhe teto e chão;

andorinhas ali de noite vão sonhar;

outras aves também, em doce comunhão,

às pias orações misturam seu cantar.

 

Nessa igrejinha pobre, isenta de aparatos,

branca, da cor do lírio, entre os lírios dos matos,

rememoro da Pátria a página primeira.

 

Em tão linda manhã, cuja luz me enfeitiça,

figura-se-me ouvir toda a primeira missa

que Frei Henrique disse em terra brasileira.


CONTO REAL 

No virgem coração da pequenina

ele jurou morar a vida inteira;

mas na sua inconstância masculina,

cresceu, casou-se e ela ficou solteira.

 

Diante de qualquer berço ela se inclina;

desiludida na afeição primeira,

seu amor a ninguém mais se destina;

só aquela afeição foi verdadeira.

 

Quando um sobrinho pequerrucho e lindo,

hoje lhe pede entre chorando e rindo:

— "Conte uma história, tia, conte aquela..."

 

Ela repete qual se um conto fora:

— "Era uma vez uma menina loura..."

E ninguém sabe que essa história é a dela.

 

 

VITORIA RÉGIA 

Vitória régia! Estranha floração

nos espelhos das águas inclementes!

Branca e rosada filha das enchentes!

Teto, refúgio, ornato, barco, pão.

 

A lenda a envolve em mística paixão:

dois jovens namorados descontentes,

atiram-se ao caudal; almas ardentes,

eram dois corações num coração.

 

Morre no ocaso o sol. A noite é escura.

O desditoso par sucumbe imerso.

Da cor da rosa e imaculada alvura,

 

flutua de manhã no rio fundo

para maior deleite do universo,

uma das grandes floras deste mundo. 

 

BORBOLETAS 

As borboletas sutis

são como rosas pequenas

de roseirinhas terrenas

que têm nos céus a raiz.

 

Ornatos do meu país

Nas manhãs de sol, amenas,

são jóias de asas e antenas,

de variegado matiz.

 

Pousam nas flores singelas,

róseas, azuis, amarelas,

lilazes, brancas, violetas;

 

e na harmonia das cores,

as borboletas são flores,

as flores são borboletas.


RECOMPENSA 

Muito o ouro lhe comprou, vaidoso e mudo;

razão, justiça e tudo mais lhe deu;

fez sorrir-lhe o caráter mais sisudo,

pôs o mundo a seus pés para uso seu.

 

Ainda assim, um dia ele sofreu;

fustigou-lhe o desprezo frio, agudo;

perdeu a paz logo que o lar perdeu.

Quando o amor lhe fugiu, fugiu-lhe tudo.

 

Mas o feliz de outrora, o outrora amado,

conservou da riqueza um nobre cão

que nunca lhe deu gastos nem cuidado.

 

Pôde sorrir ainda e ser querido

O encontrar num festivo "lambe-mão",

afeto nem comprado nem pedido.

 

 

ESPIRITUALIDADE 

Profunda simpatia me inspiraste,

que me domina todo o pensamento;

nasceu do pranto, quando tu choraste;

cresceu, floriu na rapidez do vento.

 

Bendito afeto! Uni bálsamo, um alento

que não me enrubeceu quando falaste;

com proporções de grande sentimento,

será de nossas almas novo engaste.

 

Porém se por fraqueza ou por vaidade

do sexo a que pertences, tu desceres

onde tenta descer a humanidade,

 

apenas me terás quando morreres

e verás, nos umbrais da eternidade,

como sabem ser puras as mulheres. 

 

A REDE 

Rede que vai e que vem;

distante, na solidão,

suspensa lá no sertão

onde repousa meu bem!

 

Estás num Brasil além,

teceu-te a morena mão,

rede feita de algodão

que é brasileiro também.

 

Nunca me sai da memória

que há rede na nossa história,

que há rede no meu destino;

 

nela a índia se deitou,

nela também se embalou

meu coração pequenino.


O PAPAGAIO 

Aquele papagaio infortunado,

roubado às tardes mornas do sertão,

à pequena gaiola acorrentado,

passa a gritar as horas que se vão.

 

Voltou ao mesmo ríspido patrão

quando por várias vezes foi rifado;

gargalha agora um riso resignado

com notas falsas na satisfação.

 

Tive meu coração agrilhoado

por um desgosto que julguei sem fim

e também de fingir tive cuidado.

 

Por isso sofro quando o vejo assim:

Parece conhecer o meu passado

e leva agora o dia a rir de mim. 

 

A ESTRELA E A FLOR 

Você, meu jasmineiro, é tão formoso,

de verde e branco assim sempre trajado,

a imensidão fitando silencioso,

pelo sol muitas vezes castigado!

 

Se lhe falta água ao pé e ressecado

sofre, nunca ninguém o viu queixoso;

já por mais de dez luas foi beijado;

não parece entretanto, ser ditoso.

 

Raiz no solo, olhares no infinito,

você namora o brilho das estrelas

numa ânsia de atingi-las, mudo e aflito.

 

Sua vida também exige amores,

e eu creio que de tanto pensar nelas,

você já tem de estrela as próprias flores. 

 

OUTRA 

Eu sou na tua vida uma lembrança;

um quadro que recorda um bem qualquer;

um passado que fala da esperança

que tu leste nuns olhos de mulher.

 

Lembro alguém que tu'alma ainda quer,

que viste e amaste no girar da dança,

mas que perdeste numa tarde mansa

e teimas em buscar onde estiver.

 

Tens no peito uma espécie de jazigo

onde guardas do amor o escrínio santo

e cuja chave de ouro está comigo;

 

Lembro-te a voz de quem amaste o canto.

E é por saudades de um afeto antigo,

é só por isto que me queres tanto.


AMOR MALÉVOLO 

Amor é uma palavra diferente

de quantas inventou a língua humana;

é grau mais alto onde pode ir a gente,

delícia universal e soberana;

 

Chispa do céu que sempre se profana,

que em toda a parte e em tudo está presente,

que se veste de gala na cabana

e no palácio traja-se igualmente.

 

Mas há o amor de trapos revestido,

há o amor que perdeu qualquer sentido

da sua primitiva perfeição:

 

amor matéria, amor que é sensualismo

e que após nos levar até o abismo,

só tristeza nos deixa ao coração. 

 

O BEIJO 

O beijo é o rio d'alma áureo e profundo

que não nasce nas sombras do desejo,

mas tem do sol do amor todo o bafejo,

que afronta os mares e avassala o mundo.

 

Percorre várzeas de estendal fecundo

no seio humano; aí tem ele ensejo

de unir os seus marulhos ao arquejo

do coração misterioso e fundo.


Dos olhares recebe os afluentes;

avoluma-se, cresce de tal jeito

que desafia o céu, a terra, as gentes.

 

Segue depois em disparada louca;

já não cabendo n'alma nem no peito

sai transformado em chamas pela boca. 

 

A MORTE DE «TIA ANTÔNIA» 

"Tia Antônia" morreu. No rancho e no terreiro

há flores e canções, crianças e alegria;

ela enquanto viveu chorava o dia inteiro

e era ouvindo cantar que tranqüila morria.

 

A natureza canta, e tudo se extasia;

há chilreios no vale e há cantigas no outeiro;

garganteia o canário, a cigarra cicia,

cantam aves ao sol pelo céu brasileiro.

 

O Brasil generoso onde ela foi cativa,

onde tanto sofreu chorando, quando viva,

O Brasil de afeições e de mãos dadivosas,

 

deu-lhe agora, velhinha, essa morte feliz

que talvez não tivesse o rei de algum país,

essa morte cantada entre lírios e rosas.


MINHA FLOREIRA 

Minha floreira de cristal, vazia,

pequeníssima concha cor de lua

embora na minha alma não influa

a tua solitária companhia,

 

és mimo de Natal, lembras poesia;

quero sentir gelada a face tua

que belezas aos olhos insinua,

retine aos dedos e reflete o dia.

 

Não me culpes se flores não te der,

sê desinteressada, sê mulher,

quero-te igual a mim ou parecida;

 

meu coração também é uma floreira

que andou vazia pela terra inteira,

e jamais teve flores nesta vida. 

 

IRACEMA 

"Que é feito de Iracema?" Interroga a jandaia.

Iracema partiu em busca do guerreiro;

ora em meio da mata, ora à beira da praia,

caminha sem destino e chora o dia inteiro.

 

Vão molhar-se de orvalho as folhas do ingazeiro,

aparece em seu posto a lua, de atalaia;

ao balanço da brisa estremece o coqueiro;

o sol, o imperador, vendo a noite, desmaia.


Existe na mulher incrível sutileza,

como nas aves há um dom da natureza

que cedo as faz sentir um mal que se avizinha.

 

Por isso é que a jandaia acorda ao vir da aurora

e vendo aproximar-se tudo antes da hora,

na afeição de Iracema angústias adivinha. 

 

II

 Anoitece e amanhece; ora aqui, ora ali,

Iracema se esforça em parecer tranqüila;

e mais o sol esquenta e mais forte cintila

e grita o papagaio e geme a juriti.

 

Amantes como o dela, há muitos por aí,

de peito de granito e coração de argila;

vai procurá-lo, ou não? Ela vacila...

Canta agora a jandaia atrás do buriti.

 

Vence às vezes o mal quando triunfa o amor.

Iracema caiu como cai uma flor

em tardes cor de rosa ou sob céus de anil,

 

como a folha flutua entre flocos de espumas,

e vai surgir depois entre moitas e brumas

e na raça que povoa as terras do Brasil. 

 

III 

Sob a fronde da mata Iracema definha;

definha lentamente e é calmo o seu sofrer;

era tão grande e aguda a saudade que tinha,

que sentia mais vida ao sentir-se morrer.

 

Naquele doloroso e santo padecer,

muitas vezes em sonho o branco amado vinha;

ela iria com ele os espaços fender,

já que em terra o ingrato a deixara sozinha.

 

Aquele estóico amor que tanto se profana,

de onde tudo o que é belo e grande e santo emana,

vive em toda mulher e predestina algumas,

 

aquele amor que agora incitaria vaias,

viveu chorando ao sol ao cantar de jandaias

e morreu de mansinho entre flores e plumas. 

 

RENDAS 

No rendilhado da vida,

que importam rendas escuras

que o mundo fez mal tecidas

e salpicou de amarguras?!

 

Rendas! ... Meiguices, canduras

de virgens recém-nascidas,

de noiva em meio às venturas,

e de flores não colhidas.


Lua no céu de quem ama,

ninhos cingidos à rama,

pomos de muitas contendas,

 

pincéis com que o amor é tinto.

Sempre fica em labirinto

quem não soube usar as rendas. 

 

REENCONTRO 

Tu choraste; fiquei aborrecida;

ouvira choro já de muita gente.

Zombei de ti, sorri, passei à frente;

que me importavam lágrimas na vida?!

 

E prossegui na estrada; era florida;

de safira era o céu, o sol, ridente,

verdejante era o chão, o mar, fremente;

e eu caminhava alegre, distraída.

 

Murcharam flores ao me ver passar.

Recordei-me de ti, do teu penar;

porém feliz ainda, andei além.

 

Mais tarde a dor veio bater-me à porta;

vendo por fim minha alegria morta,

quando te vi chorar, chorei também.


TRÊS AMORES 

Perguntei à velhinha forasteira

quantas vezes o amor passou por ela.

"Três vezes" respondeu. E havia nela

recordações de uma existência inteira.

 

"Última vez, penúltima e primeira"...

começou a contar; a história dela,

do fim para o princípio era mais bela;

pôs-se a falar da fase derradeira.

 

«Última vez... amei; o amor foi d'alma;

a penúltima vez, desvelos, calma;

a primeira foi bem que hoje deploro;

 

o último amor desfez-se como a idade;

o penúltimo vive da saudade;

pelo primeiro amor, ainda choro:'' 

 

REMINISCÊNCIAS 

Esta preocupação, esta ansiedade

que sempre tenho ao te sentir passar,

lembram-me beijos que te dei ao luar,

em séculos vividos n'outra idade.

 

Tudo me diz ter sido realidade

que já te amei, que me quiseste amar;

a vida que se foi torna a voltar,

e tudo volta em forma de saudade.


"Reminiscência!..." Eu sei! é o que disseste:

"sentimento das almas encarnadas

que prende o berço à sombra do cipreste.

 

São coisas velhas, cinzas sepultadas

num pedaço de chão longínquo, agreste,

são lembranças de vidas já passadas". 

 

A ORQUÍDEA 

Da mata longe, um dia foi trazida

aquela orquídea toda em flor agora;

num caule seco, para os céus erguida,

vive somente de beber aurora;

 

Para dar flor, ela só pede escora;

flor entre as mais formosa e preferida,

que por Deus abre e por milagre cora;

no que está morto reaparece a vida.

 

Mulheres tristes! Podeis ser felizes:

buscai forças na força das raízes,

e renúncia nos mais santos amores,

 

e, se por sorte tendes mau marido,

ligai-vos a seu peito ressequido,

reverdecendo-o para dar-vos flores.


O VÉU DE RENDAS 

Conheci-a no tempo de ilusão:

rica, bela, feliz, não sei que mais;

desposaria um belo rapagão,

teria o amor do esposo e o amor dos pais.

 

E casou-se. Da flor dos laranjais

cobriam-se-lhe o colo, a fronte, a mão.

Sob o seu véu de rendas virginais

pulsava de ansiedade um coração.

 

Mas como até nas rendas manda a sorte,

quando é já mãe a esposa, vem a morte

que o frágil ser arranca ao seu conforto;

 

no mesmo véu de rendas, delicado

que a envolveu no dia do noivado,

chorando envolve agora o filho morto. 

 

VERSOS ETERNOS 

Aqueles versos que eu te fiz, rasguei;

eles falavam do teu rosto e porte;

fui em casos de amores sempre forte;

e foi por isso que tal fim lhes dei.

 

Um poema igual depois te dediquei;

entre papéis inúteis teve a morte;

outros compus, dei-lhes a mesma sorte;

os últimos, por fim, não publiquei.

 

Vários versos perdi depois de escritos;

mal nascidos, talvez, iam-se embora

sem serem dados e sem serem ditos.

 

Há versos que se fazem e publicam;

e existem versos que se deitam fora,

mas dentro d’alma eternamente ficam. 

 

ASAS

Asas! Lembranças de alguém

que asas de vento levaram;

dissabores que passaram

deste mundo no vai-vém!

 

Asas chegadas de além,

asas brancas que se alaram

e descendo se pintaram

das cores que a noite tem.

 

Para das asas falar,

eu pensei na garça a voar

e no cenário desnudo;

 

por fim achei, conformada,

que as asas são quase nada,

que as asas são quase tudo.


PRANTO ALEGRE 

Se se escolhesse amor, eu buscaria

o que no pranto visse despontar:

o afeto vindo da melancolia

fica-nos sempre n'alma a gorjear.

 

Foi com os tristes que aprendi a amar;

no sagrado Alcorão da nostalgia

o amor é um soluço e principia

no ponto em que a alegria terminar.

 

Se se escolhesse o amor, tenho certeza,

eu ia procurá-lo na tristeza

de certa amargurada devoção:

 

tive um amor outrora que nasceu

de uma lágrima límpida e morreu,

sem mágoas me deixar no coração. 

 

RECORDANDO A «FAZENDA DA

PAULICÉIA» 

Paulicéia! canteiro de Angustura,

recanto, do Brasil, terra Mineira!

Gemer de flautas na cabana escura,

pela manhã, gorjeios na mangueira.

 

A "rainha da noite", a noite inteira

a derramar pelo ar essência pura;

tudo próprio da gente brasileira;

tudo simplicidade, amor, candura.


Ao deixar-te, formosa Paulicéia,

sossego de alguns meses, panacéia

dos males de minh'alma combalida,

 

eu senti no meu ser o mais profundo

estremecer do meu pequeno mundo.

Tive a maior saudade desta vida. 

 

AMOR E AMIZADE 

Nome sem verbo, idéia sem ação,

no amor universal achou guarida

a pálida amizade combalida

que pouco lugar tem no coração.

 

O amor afronta d'alma o furacão

ante o qual a amizade se intimida;

o verbo amar é tudo nesta vida;

ama-se Deus e a Pátria, a flor e o cão.

 

O amor é força redentora, é luz;

foi só do amor que nos falou Jesus;

quem diz amor já diz eternidade.

 

Ele tudo constrói, tudo edifica;

quando a amizade morre, nada fica;

mas quando morre o amor, finda a saudade.

 

DIGA-ME 

— "Diga uma coisa, diga" ela pedia:

"que me faça sorrir, faça chorar;

diga uma coisa assim... como a poesia!...

diga uma coisa como... o verbo amar".

 

Ele ficava mudo a meditar.

"Diga-me uma palavra", ela insistia,

"Que seja triste como em treva é o mar,

que seja alegre como alegre é o dia.

 

Diga uma coisa para eu ter de cor,

que possa repetir como estribilho

e seja de entre todas, a maior.

 

Diga uma coisa de tão forte brilho,

que eu feche os olhos para ouvir melhor".

E ele disse enlevado: "Nosso filho!" 

 

TIMIDEZ 

Jamais a olhara demoradamente;

tinha orgulho demais para o fazer;

achava-a linda! Porque não dizer?

Porém queria ser-lhe indiferente.

 

Certo dia fitou-a e sem querer;

no seu olhar tranqüilo e transparente

ele se viu menor que toda a gente;

teve então pena do seu próprio ser.


Um grande amor os liga. Anos depois...

Rebentos de su'alma em torno aos dois.

Ele é feliz. Sorri. Nada mais quer;

 

devia tudo àquele instante ameno,

ao grande instante em que se viu pequeno

nos olhos virginais de uma mulher. 

 

QUANDO O AMOR COMEÇA 

O amor começa numa frase boa;

começa quase sempre por um nada;

pelo pranto que rápido se escoa

ou pelo ruído de uma gargalhada;

 

ao apertar de certa mão gelada;

por uma folha ao chão, que ao vento voa;

por um fio de linha desbotada;

começa por si só, começa à toa.

 

O amor começa num minuto; e às vezes,

por uma convivência de alguns meses;

vem muito devagar ou vem depressa.

 

O amor que tem de Deus a força exata,

é coisa tão sutil e tão abstrata,

que não se sabe nem quando começa.


FUTURO 

Quando eu chegar ao fim desta jornada,

quando for velha, trêmula e sozinha,

sem os beijos sequer de uma netinha,

sem lar, sem pão, sem luz, talvez sem nada,

 

recordarei meada por meada

esta linha da vida, ingrata linha!

Tais ziguezagues nelas se continha,

que sempre me ficou embaraçada.

 

Sei que já tenho o meu lugar previsto

nessas moradas de que fala o Cristo

para ali, sem fraqueza, trabalhar;

 

lá, onde amigos não nos deixam sós,

eu hei de recordar a tua voz

e por que não dizer? — Hei de chorar. 

 

FALA-ME 

Senta-te perto de mim

e fala ao meu coração;

seja idéia boa, ruim,

terás a minha atenção.

 

Palavra é luz, é razão,

palavra é principio e fim.

Destrói o mal com teu "não",

constrói o bem com teu "sim".


Porque não falas, querido?

O teu silêncio é fingido.

Dize uma coisa qualquer.

 

Não peques ficando mudo;

na vida a palavra é tudo

quando diz o que Deus quer. 

 

METAMORFOSE 

Era o temor da infância aquele velho,

o velho Cariri tristonho e doente,

dobrado, quase a caminhar de joelho,

sacola ao ombro, errante, penitente,

 

esfarrapado, uns ares de demente.

O seu olhar, no entanto, era um espelho

a refletir resignação de um crente,

e a sua voz pausada era um conselho.

 

Quando pequena eu lhe ficava ao pé,

sem me assustar sua mochila preta:

Ele era a fonte em que eu bebia fé.

 

O medo que inspirava me foi nulo;

su'alma era uma linda borboleta

de que seu corpo feio era o casulo.


AS ROSAS 

As rosas nascem, morrem, como nós

e talvez como nós, tenham linguagem,

falem ao sol, à abelha, à própria aragem,

talvez seja o perfume a sua voz.

 

O botão sedutor, a flor após,

toda a gente a render-lhes homenagem;

vida curta, um instante, uma passagem;

por fim, ei-las ao chão velhas e sós.

 

Rosas tiradas virgens às roseiras

para o cárcere branco das floreiras!

Viveram pouco para ser ditosas.

 

Quanto mistério! Quanta sutileza!

E dentro do meu ser, quanta tristeza

de nascer e morrer sem ver as rosas! 

 

A CARLOS GOMES

I

 Há vários longos anos, em Campinas,

nascia pobre um grande brasileiro

que seria da pátria um verdadeiro

semeador de inspirações divinas.


Vêm da pobreza as almas diamantinas;

Foi o pai de Jesus um carpinteiro;

têm o santo e o artista iguais doutrinas

no menosprezo aos bens do mundo inteiro.

 

Mil, oitocentos, trinta e nove... Vão

muitos anos corridos de roldão

sobre esse Onze de Julho que passou;

 

pena é que não me escute hoje o universo

para me ouvir cantar agora em verso,

a data em que tal vida começou.

 

II

Quando um artista chora, tudo canta

nas profundezas claras do seu ser.

Pranto é banho lustral, torna a alma santa

na dolorosa prova do viver.

 

Vai chorar Carlos Gomes; vai sofrer:

a vontade paterna se levanta

contrária a seu desejo, e a força é tanta,

que é preciso fugir para vencer.

 

Mil oitocentos e cinqüenta e nove...

Já tem vinte anos, sofre, a noite é fria;

De olhos de estrelas luz prateada chove.

 

O Rio! a Corte! o Imperador! a Glória!

e num celeste oceano de harmonia,

um grande vulto a reluzir na História.


III

Na Corte um anjo, uma mulher, o guia

com gesto humanitário e sedutor;

nesse instante a mulher não faltaria,

que a mulher é das artes o primor.

 

Por ela chega junto ao Imperador

o jovem brasileiro; e nesse dia,

seu êxito de artista se inicia!

Começa a ter amparo seu valor.

 

As óperas sucedem-se brilhantes:

são tesouros sonoros rutilantes,

para orgulho da gente brasileira;

 

a arte surge num lar do mundo novo,

e ergue bem alto o nome do seu povo,

mostrando o seu Brasil à Terra inteira.

 

IV

De "O Guarani", um trecho, eis a balada;

canta a virgem eleita de Peri;

acompanha a viola apaixonada,

tão brasileira como "O Guarani".

 

Um sussurro de folha aqui e ali;

bem perto, um índio oculto, mão armada;

uma réstea de lua desmaiada

junto à cabeça loura de Ceci.


Retrato da inocência mais perfeita

que o bem vigia, quando o mal espreita:

é miniatura do Brasil de outrora;

 

delicadeza que enternece a vista,

e em que se abraçam escritor e artista

e a saudade da Pátria canta e chora.

 

V

Vai repousar a bela portuguesa;

vela o filho das selvas ao relento;

ela tem n'alma encantos de pureza,

ele só nela, tem o pensamento;

 

um não percebe da maldade o intento;

outro adivinha o mal, põe-se em defesa;

um é folhagem ao sabor do vento

e outro, impenetrável fortaleza;

 

um é a Pátria a navegar distante,

grandes conquistas para além dos mares;

outro é o Brasil a renascer possante

 

entre inúbias, tacapes e cocares,

sorvendo os beijos de um luar brilhante,

estrugindo de flechas pelos ares.


VI 

Escutai! Escutai! Desponta o dia;

vão as notas falar como ninguém;

vão as aves rezar em harmonia;

vão as raízes responder: "Amém!"

 

Levanta-se o Brasil aqui e além,

Brasil que dança, ri, grita, assobia

para mostrar ao sol toda a alegria

que provém do labor, supremo bem.

 

Eis a divina música extasiando!

Noss'alma vai subindo e resvalando

para se erguer de novo, sem parar,

 

sentindo a luz dessa alvorada quente

em que o suor do escravo, amargo e ardente,

pela justiça humana vem bradar.

 

VII

Respeito! Devoção e patriotismo!

Filhos da terra que mais foi amada!

esse trecho convida ao misticismo;

é toda a natureza musicada;

 

é sangue de uma raça estrangulada

pela vitória louca do egoísmo,

é tortura chegada ao paroxismo

de uma desgraça a rir numa alvorada.


Dá-nos vontade até de ouvir de joelhos

melodias assim, pois são conselhos;

talvez seja dever tê-las de cor,

 

e como prece das manhãs rezá-las,

ou mesmo de mãos postas escutá-las,

fechando os olhos para ouvir melhor.

 

VIII 

Escravidão! Aqui ficou escrito

em notas claras o teu drama escuro;

o teu suplício a reboar em grito,

nas madrugadas de um Brasil futuro;

 

todo o ranger do ferro áspero e duro

que te sangrou o coração aflito

nessas manhãs formosas de céu puro.

Tudo ficou; o desatino e o atrito:

 

zunir de foices, retinir de enxadas,

rumor de engenho, alertas de feitor,

queixa de anuns, estouros de enxurradas;

 

até ouvimos com respeito e amor,

estalidos de bocas delicadas

sugando o leite da mulher de cor.


AOS BRASILEIROS 

Ama o Brasil, patrício, por vontade,

não só por suas glórias, seu valor,

ou por seus dias de intranqüilidade,

ou pelo seu futuro promissor.

 

Seu chão produz urtiga e produz flor;

não se ama por defeito ou qualidade;

o amor não vem do orgulho ou da vaidade,

não há razões de amor fora do amor.

 

A ti somente importa haveres tido

para cenário de um olhar primeiro,

este país no qual foste nascido.

 

E o Brasil assim vibra e continua

em qualquer parte onde haja um brasileiro.

"Ama o Brasil, porque ele é pátria tua”. 

 

À BANDEIRA

Bandeira linda! Não te vejo as cores

embora as tenha sobre o céu da mente;

essência mãe de tropicais odores,

loura epopéia da morena gente.

 

Pátria! Eu te sinto cálida, envolvente,

no constante fremir dos teus amores,

no pugilo de heróis que tens à frente,

na poesia eternal dos teus cantores.


Tenho o sagrado instinto de adorar-te;

vibras em mim e a mim quero prender-te,

sem que do verde teu nunca me farte,

 

sem que jamais me canse de querer-te.

Eu não preciso ver-te para amar-te.

Qualquer que saiba amar-te pode ver-te. 

 

QUERO-TE, MEU BRASIL 

Quero-te, meu Brasil! Como dizê-lo

em maternal ternura de acalanto

se apenas percebendo o teu encanto,

mal posso adivinhar o quanto és belo!

 

Teu céu de estrelas, como descrevê-lo?!

E o coração palpita e sente tanto!

O amor à Pátria, mais que puro — é santo,

mesmo para quem sonho é pesadelo.

 

Quero-te, meu Brasil! Com energia;

quero-te tanto, que não passa um dia

sem que eu te ache maior e mais perfeito;

 

assim é que te quer minha vaidade:

tão grande quanto é grande a eternidade,

tão pequeno que caibas no meu peito.


AMO-TE 

Amo-te as criaturas pequeninas,

terra de quem sou filha, com vaidade;

amo-te na corola das boninas

e no perfume tênue da saudade;

 

amo as pessoas na primeira idade,

tanto menores, quanto mais divinas,

amo-te os débeis seres da humildade,

nas cavernas, nos mares, nas colinas.

 

Amo a fragilidade, a singeleza;

o mais ínfimo ser da natureza,

amo com força e nesse amor me enleio.

 

O colibri, a abelha, o vagalume,

a flor mimosa, com ou sem perfume,

terão em mim, de amor o peito cheio. 

 

AO FORASTEIRO 

Ama esta terra! Vieste do estrangeiro;

Aqui tiveste pão, amor e lar;

pudeste enriquecer ou prosperar

em seu seio fecundo e hospitaleiro.

 

Tudo o que é teu provém do seu celeiro.

Ama-a por gratidão, sem a magoar;

quem grato sabe ser, já sabe amar.

Ama o Brasil, ama o que é brasileiro.


Não esquecendo embora a pátria tua,

exalta este país, louva-lhe o brilho

na floresta, no mar, no sol, na lua.

 

E estuda a mesma língua de Castilho.

Sente que a tua pátria continua

na pátria imensa onde nasceu teu filho. 

 

COMPENSAÇÃO 

Quando eu nasci, já tarde, o sol fugia

para não mais voltar ao meu viver;

parecendo sentir que ele partia,

começaram as rosas a morrer.

 

E foi sentindo-as desaparecer

que esperanças futuras eu perdia

na dolorosa angústia de não ver

o regaço de mãe que me aquecia.

 

Mas nascer no Brasil sempre é ventura,

embora seja a vida noite escura

e as mãos da sorte magras ou sovinas.

 

Sem os raios do sol que tudo douram,

tive em lugar das rosas que se foram,

o perfume noturno das boninas.


LENITIVO 

Você, que um livro meu folheia agora,

um pobre livro de sentido encanto,

onde existe um anseio em cada canto,

em cada canto um suspirar de outrora,

 

será que você sofre? Você chora?

Quero adoçar o que lhe amarga tanto;

quero levar à agrura do seu pranto

o que achei de consolo vida em fora.

 

Se a sua mágoa é como a que eu já tive,

guarde-a no coração e vá mentindo

a todo ser que afortunado vive.

 

Para o alegrar sei que serei bastante:

é já conforto haver quem chore rindo,

é já conforto haver quem sofra e cante. 

 

MINHA HISTÓRIA

Ao eminente escritor e poeta português Thomás Ribeiro Colaço, que publicou na Imprensa literária de Lisboa, alguns dos meus primeiros versos.

 

A minha história é bela de contar;

nasci pobre e fui pobre a vida inteira;

dormindo num colchão ou numa esteira,

tive sempre risonho despertar.


Afetos, sempre os tive para dar,

sem ambição, sem susto, sem canseira,

a subir e a descer essa ladeira

da vida, sem na vida reparar.

 

Contei-a como pude a toda gente;

todo o mundo ficou indiferente.

Você me ouviu e a conservou de cor.

 

Repetiu-a depois com tons de glória;

Por isso, se houver luz na minha história,

foi você que lhe trouxe a luz maior. 

 

A UM MARINHEIRO 

Filho de troncos de um rincão do norte,

da mesma Terra em que Poti nasceu,

sê sempre audacioso e bom e forte,

honrando o teu passado, também meu.

 

Quando a Pátria exigir o sangue teu,

segue e não tremerás perante a morte,

que dar-lhe a vida, se essa é tua sorte,

é dar-lhe aquilo que ela já te deu.

 

Ergue teu peito altivo na batalha

na devoção de conservar sem falha

a conduta exemplar de marinheiro;


e se a morte subir do mar profundo,

mostra à Pátria querida, mostra ao mundo,

como sabe morrer um brasileiro. 

 

MORTE FELIZ 

Sempre a morte o meu pranto fez cair;

fugiu-me, entanto, ao desenlace dela;

é que só junto à morte a vi tão bela!

Somente a morte a fez cantar e rir.

 

Pronto estava o lugar para onde ir;

tombaria do galho a flor singela;

dos céus ouvia o canto na capela,

tinha desejo e pressa de partir.

 

Por isso vendo-a morta não chorei;

regressava feliz quando a encontrei.

A morte era caminho sem mistério.

 

Quando nela hoje penso, intimamente

creio que num domingo de sol quente

fui deixá-la a dormir no cemitério.


A TRISTEZA MAIOR 

Ia ser mãe pela primeira vez;

indizível anseio a dominava;

recebeu o rebento que esperava

em róseo dia do mais belo mês.

 

Era seu sonho ter um lar de três

mas agora outra vida a esperava;

no vazio que ao filho ela deixava,

vi quanta falta minha mãe me fez.

 

Nesse momento de aflições sem termos,

todos os vendavais, todos os ermos

previ em torno ao ser por quem sofria.

 

E no meu modo de sentir e crer,

eu não chorei a mãe que ia morrer,

chorei antes aquele que nascia. 

 

ANIVERSÁRIO 

Nascer para ser bom, para ser forte,

crescer na idade, nos ideais crescer,

triunfar nesta vida e além da morte,

eis a grande alegria de nascer.

 

Ter a alma pronta para amar e crer,

ter grande o coração que vibre e exorte,

ser como estrela-guia na má sorte,

eis a grande alegria de viver.


Ter voz para falar aos desgraçados,

ter fibra para amar o seu país,

ter bons conselhos para os transviados

 

no tempo em que tudo isso é tão precário,

é ter motivo de passar feliz

o dia do seu próprio aniversário. 

 

A MEMÓRIA DE STEFAN ZWEIG 

Mais um pouco, e verias deslumbrado

o triunfo da gente americana;

e essa bandeira à qual foste abrigado

verias tremular garbosa e ufana.

 

Dominou-te a fadiga soberana

dos tormentosos dias do passado.

E sucumbes à dor mais justa e humana,

E sem que vejas o mundo libertado.

 

Dorme calmo no chão do mundo novo,

que o teu nome, no dia da vitória,

estribilho será na voz do povo.

 

Quando tombar da guerra o braço hostil,

será lida e relida a tua história

no futuro grandioso do Brasil.


A MEMÓRIA DE GUAMACA 

Eu te trago hoje aqui inteiro, o coração,

meu caboclo imortal da terra dos pinhais;

trago-te o farfalhar de densos coqueirais

da terra que hoje é minha e foi de Camarão.

 

Trago na minha voz a voz do teu irmão;

trago-te assim, meu culto e o dos meus ancestrais;

tudo isso eu trago aqui; ninguém te trará mais;

trago todo o passado a pedir-te perdão.

 

Muitos danos te trouxe essa gente estrangeira

a quem abriste um dia a taba hospitaleira

e o coração a rir no peito largo e nu.

 

Tua terra, tu viste estranhos dominá-la;

nela vive outro povo, outra língua se fala;

mas o Brasil de outrora há de ser sempre tu. 

 

ANTE O AVIÃO «BENJAMIN CONSTANT» 

Com este nome um grande brasileiro

cobriu de glória a terra onde pisou:

onde chegou depois, foi o primeiro,

quando dele o Brasil necessitou.

 

Foi de luz, entre os cegos, seu roteiro;

muito sofreu porque demais amou,

soldado no sentido verdadeiro,

foi centelha que nunca se apagou.


Hás de vencer, hás de subir veloz

mostrando no presente em plena glória

que os que morrem jamais nos deixam sós.

 

Vai, "Benjamin Constant", galgar espaços;

se à guerra fosses, vias a vitória.

Quem o nome te deu, abra-te os braços. 

 

A BENJAMIN CONSTANT 

Partiste, mestre, e ainda hoje é teu nome

bendita luz que nos conduz o passo;

brasileiro de escol, exemplo de aço

que o roer da calúnia não consome.

 

Deixaste pão que ainda o cego come

exercitando a inteligência e o braço;

Inspirando-me os versos que hoje faço,

do corpo e d'alma assim matas a fome.

 

Bem hajas pelo muito que nos deste!

Com teu prestígio enorme de soldado,

ao teu lado na história nos puseste.

 

E o cego bebe luz nesse passado

lembrando o bem que um dia lhe fizeste

para ser muito menos desgraçado.


SÓ A VERDADE 

Não sei se alguém é mau por ser austero,

nem sei se os que castigam são daninhos:

Quem fez a rosa com tão grande esmero,

deu para companheiros, os espinhos.

 

Encontrarão tropeço em seus caminhos

os que ainda procedem como Nero;

que se tenha avareza nos carinhos,

se assim fazendo, alguém for mais sincero.

 

Se as virtudes autênticas, reunidas,

se o verdadeiro amor — base das vidas,

não fossem fruto da sinceridade,

 

o que restasse então, seria a triste

negativa de tudo quanto existe

pois nada existe fora da verdade. 

 

ASCENSÃO 

Naquele dia em que vos vi de pé,

dez contra um só, famintos de vingança,

como ferida por aguda lança,

eu, por um pouco, não perdi a fé.

 

A fé... Essa irmã gêmea da esperança,

a confiança do ser, no ser que ele é,

a fé que em sua trajetória alcança

as estrelas, o sol e Deus, até;


Pensei: um dia, seja eu viva ou morta,

amanhã ou mais tarde, não me importa,

esquecerei desgostos que sofri.

 

Vereis o riso transformado em pranto

e que, por terdes vós descido tanto,

foi que, sem o saber, tanto subi. 

 

AOS ESPERANTISTAS 

Seres da mesma estirpe, em toda parte há tantos! ...

Deus lhes deu fala igual sobre esse mundo inteiro;

exprimindo igualmente as mágoas e os espantos,

ladram todos os cães como o cão brasileiro;

 

do mesmo modo o olhar traduz quaisquer encantos;

sempre os do mesmo idioma, entendem-se primeiro;

falam em pensamento almas da treva, e santos.

Diferença de língua é que faz estrangeiro.

 

Seja pois, o esperanto, a corrente de luz

que liga o servidor de Buda ao de Jesus;

somente haja um dizer, das estrelas ao pó;

 

com palavras iguais escrevam-se as doutrinas;

dêem-se a mesma forma às expressões divinas,

cantem todos o amor numa linguagem só.


****

Livro SOL NAS TREVAS, BENEDICTA DE MELLO, COOPERATIVA CULTURAL DOS ESPERANTISTAS

Av. 13 de Maio 47, sobreloja 208 — 20.000 —

Rio de Janeiro — RJ — Brasil

2.a Edição, 1978, RIO DE JANEIRO

 

 

FONTE (internet):

http://www.visionvox.com.br/biblioteca/b/Benedicta_de_Mello_Sol_Nas_Trevas.txt

 


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