“Arte é ânsia de conter o infinito numa expressão”.
(Gilka Machado)
Alguns poemas do livro Crystaes Partidos (1915), reeditados em 1918 no Livro Poesias (1915-1917), grafia da época
No torculo da fórma o alvo crystal do Sonho,
Musa, vamos polir, num labor singular:
os versos que compões, os versos que componho,
virão esfrophes de ouro após emmoldurar.
Para sempre abandona esse teu ar bisonho,
esse teu taciturno, esse teu simples ar;
pois toda a perfeição que dispões e disponho,
nesta artística empreza, é mister empregar.
Seja espelho o crystal e, em seu todo, refíicta
a trágica feição que o horror comsigo traz,
e o infinito esplendor da belleza infinita.
E, quando a rima soar, enlevada ouvirás
percutir no teu sêr, que pela Arte palpita,
o sonoro rumor do choque dos crystaes.
Silencio
Gilka Machado
A Antonio Corrêa d’Oliveira
Mysteriosa expressão da alma das cousas mudas,
Silencio — pallio immenso aos enigmas aberto,
espelho onde a tristeza universal se estampa.
Silencio — gestação das dores cruéis, agudas,
solenne imperador da Treva e do Deserto,
estagnação dos sons, berço, refugio e campa.
Silencio — tenebroso e insondavel oceano,
tudo quanto nos teus abysmos vive immerso,
tem a secreta voz dos rochedos, das lousas.
És a concentração do sêr pensante, humano,
a vida espiritual e occulta do universo,
a communicação invisivel das cousas.
Um intimo pezar toda tua alma invade,
ó meu velho eremita! ó monge amargurado!
Dentro da cathedral da verde natureza,
ouço-te celebrar a missa da Saudade
e invocar a remota effigie do Passado,
dando-me a communhão sublime da tristeza.
Seja engano, talvez, do meu cérebro enfermo,
Mas eu comprehendo os teus sentimentos profundos,
Eu te sinto cantar olentes melopéas...
Foste o início de tudo e de tudo és o termo.
Silencio —concepção primitiva dos mundos,
cosmopéa de todas as idéas.
Silencio — solidão de symptomas medonhos,
pantano onde do mal desenvolvem-se os vermes,
fonte de inspiração, rio do esquecimento,
lagôa em cujo fundo os sapos dos meus sonhos,
postos alheiamente, inânimes, inermes,
fitam de estranho ideal o fulgor opulento.
O’ Silencio! O’ visão subjetiva da Morte!
— refúgio passional que eu sempre busco e anceio,
gôso de recordar... torturas e confortas,
pois fazes com que ao teu influxo eu me transporte
ao seio da Saudade, a esse funéreo seio
— esquiffe onde revejo as illusões já mortas.
Da scisma na minha alma o triste cunho imprimes,
és o somno, o desmaio, o natural mysterio,
trazes-me a sensação dos gélidos tormentos;
e si nesse teu ventre hão germinado os crimes,
no teu cérebro enorme, universal, ethereo,
têm-se desenvolvido os grandes pensamentos.
Luz
Gilka Machado
Luz — concepção primeira e cósmica da Treva!
por esse teu fulgor lançares, dispenderes.
a belleza da Forma o olhar attrahe e enleva,
gosa a vista os da Côr emotivos prazeres.
Por ti fluctua no ar dos perfumes a leva,
és o verbo de Deus, o poder dos poderes,
o alimento vital que as cousas todas ceva,
o calor que impulsiona a machina dos sêres.
És o semen do Sol, que a Mãe-Terra fecunda,
que na treva germina e varias formas toma,
de cuja producção a humanidade é oriunda.
Possa eu sempre te vêr por tudo distribuída,
luz que és som, luz que és cor, que és sangue, força, arôma,
que és idéa a medrar no cérebro da Vida.
Ser Mulher...
Gilka Machado
Ser mulher, vir á luz trazendo a alma talhada
para os gosos da vida: a liberdade e o amôr;
tentar da gloria a etherea e, altivola escalada,
na eterna aspiração de um sonho superior...
Ser mulher, desejar outra alma pura e alada
para poder, com ella, o infinito transpor;
sentir a vida triste, insipida, isolada,
buscar um companheiro e encontrar um senhor...
Ser mulher, calcular todo o infinito curto
para a larga expansão do desejado surto,
no ascenso espiritual aos perfeitos ideaes...
Ser mulher, e, oh! atroz, tantalica tristeza!
ficar na vida qual uma águia inerte, preza
nos pezados grilhões dos preceitos sociaes!
Estival
Gilka Machado
Ao Dr. Miranda Ribeiro
Accende-se o Verão.
A selva é uma officina,
onde operando estão
todos os elementos naturaes;
e, ao violento calôr das forjas estivaes,
a cigarra buzina,
marcando as horas de descanço e ebullição.
O ar, que de azul se adensa,
expelle irradiações de polido crystal;
o olhar se eleva e pensa
que uma poeira de vidro cae da altura,
que ha vidro em pó no chão, na montanha, no val.
O Sol culmina, o Sol deslumbra, o Sol fulgura
— é um rutilo vitral,
pondo todo o esplendor da sua illuminura
no largo tecto azul da etherea cathedral.
A água se inflamma, o azul se inflamma, a terra
parece toda em combustão;
o olhar a custo se descerra
e os olhos ardem, como brazas, adeante
da payzagem cremante
do Verão.
Longe, distingue-se a feição das casas
qual uma singular constellação.
O ar é tão morno
que parece provir de uma occulta cratera,
que a sensação nos traz do bafio de um forno.
A natureza reverbera,
e o Sol que se destaca
no azul de um céo fulmineo,
é uma accesa placa
de alumineo.
A toda vastidão da selva inunda, invade,
a solar claridade.
Nas arvores se faz um tal sopôr,
nas frondes ha uma tal oleosidade,
que as arvores, supponho, á solar claridade,
estão tresuando de calôr.
Do meio-dia na hora,
é plena a quietação; nem uma ave apressada
faz ouvir do seu vôo a cadência sonora,
nem a expressão de um gesto o olhar divulga, nada
se move, a Terra está como que asphyxiada;
apenas, de onde em onde,
echôa pelo espaço e sae de cada fronde
um som agreste, um som nervoso e emocional,
um som de verde-vegetal:
é a cigarra que canta, é a cigarra que tece
hymnos ao Sol, ao deus possante, ardente e louro!
mas tal é a solidão na selva, que parece
a natureza inteira estar cantando em côro.
Ancia Azul
Gilka Machado
A Francisca Julia da Silva*
Manhans azues, manhans cheias do pollen de ouro
que das azas o Sol levemente saccode!...
quem dera que, numa ode,
como numa redôma,
eu pudesse contêr o intangivel thezouro
da vossa luz, da vossa côr, do vosso arôma!
Manhans azues, manhans em que as aves, em bando,
entoam pelo espaço o hymno da Liberdade!
Que anceio formidando!
Que sêde de infinito o cérebro me invade!
Esta luz, esta côr, este perfume brando,
que se evola de tudo e que, de quando em quando,
o Vento — acolyto mudo,
passa thuribulando;
esta mystica fala,
que das cousas se exhala:
e conclama, e resôa
em toda a natureza,
como uma etherea lôa
entoada á vossa olympica belleza;
tudo á libertação, tudo ao prazer convida
e faz com que a creatura ame um momento a Vida.
Lindas manhans azues!
manhans em que, qual um zumbido
de tão intensa, a luz
sôa por todo o ambiente, echôa-me no ouvido,
e o Sol no alto espreguiça as múltiplas antennas,
quente, lúcido e louro,
como um bezouro
de ouro.
Manhans suaves, serenas,
manhans tão mansas, tão macias,
que pareceis feitas de pennas
e melodias...
Tudo se espiritualisa
á vossa côr sublime, suggestiva,
onde ha dedos de luz levemente a accenar...
a essa invencivel suggestão captiva,
na aza abstracta da brisa,
a alma das cousas sobe e fluctua pelo ar.
Eu, como as cousas, sinto indefinidas ancias:
a attracção do Ignorado,
a attracção das Distancias,
a attracção desse Azul,
ao qual meu pobre ser quizera transportado
vêr-se, da Terra exul.
E que gôso sentir-me em plena liberdade!
longe do jugo vil dos homens e da ronda
da velha Sociedade
— a messalina hedionda
que, da vida no eterno carnaval,
se exhibe phantasiada de vestal.
Manhans azues, manhans em que os vírides prados,
pelo vento ondulados,
parecem mares calmos,
e os mares, mollemente espreguiçados,
sobre as praias espalmos,
são vastos, verdes e floridos prados.
Manhans em que nas estradas
— lindas romeiras, enfileiradas,
diante do vosso sumptuoso templo,
que alto reluz — as arvores contemplo,
dansando todas, com gestos lentos,
ao som dos ventos,
na festa sacra da vossa luz!
O' mágicas manhans!
vós me trazeis ao cérebro ancias vans.
O fulgor que de vós se precipita,
perturba minha vida de eremita,
açora-me os sentidos
na narcose do tédio amortecidos;
ao vêr a Natureza toda em festa,
do seu pagode abrir as portas, par em par,
o meu sêr manifesta
desejos de cantar, de vibrar, de gosar!...
Esta alma que eu carrego amarrada, tolhida,
num corpo exhausto e abjecto,
ha tanto acostumado a pertencer á Vida
como um traste qualquer, como um simples objecto,
sem gôso, sem conforto
e indifferente como um corpo morto;
esta alma, acostumada a caminhar de rastos,
quando fito estes céos, estes campos tão vastos,
aos meus olhos ascende e deslumbrada avança,
tentando abandonar os meus membros já gastos,
a saltar, a saltar, qual uma alma de creança.
E analysando então meus movimentos,
indecisos e lentos,
de humanisada lêsma,
eu tenho a sensação de fugir de mim mêsma,
de meu sêr tornar noutro,
e sahir, a correr, qual desenfreado pôtro,
por estes campos,
escampos.
De que vale viver,
trazendo na existência emparedado o sêr?
Pensar e, de continuo, agrilhoar as idéas
dos preceitos sociaes nas tôrpes ferropéas;
ter impetos de voar,
mas preza me manter no ergastulo do lar,
sem a libertação que o organismo requer;
ficar na inercia atróz que o ideal tolhe e quebranta...
................................................................................
Ai! antes pedra sêr, insecto, verme ou planta,
do que existir trazendo a forma da Mulher!
Aves!
Quem me déra têr azas,
para acima pairar das cousas rasas,
das podridões terrenas,
e sahir, como vós, ruflando no ar as pennas,
e saciar-me de espaço, e saciar-me de luz,
nestas manhans tão suaves!
nestas manhans azues, lyricamente azues!
(*) – poetisa brasileira Francisca Julia da Silva (1871-1920)
Perfume
Gilka Machado
A Alberto de Oliveira
Vaga revelação das sensações secretas,
das mudas sensações dos mudos vegetaes;
arco abstracto que afina as emoções dos poetas
e que ao violino da alma arranca sons iriaes.
O' perfume que a dôr das plantas interpretas
e encerras, muita vez, desesperos mortaes!
busco sempre sentir-te errar, nas noutes quietas,
quando teu floreo corpo em somno immerso jaz.
E's um espiritual desprendimento ao luar,
si á noute sonha a flor do calice no leito,
e és a transpiração da planta á luz solar.
Mas, si acaso te extrahe o homem — sêr destruidor,
perfume! — decomposto, inane, liquifeito,
és a essência, és a vida, és o sangue da flôr.
Sandalo
Gilka Machado
A Antonio Egas Moniz Barreto de Aragão
Quente, esdruxulo, activo, emocional, intenso,
o sandalo espirala, o espaço ganha, berra...
e eu, que soffrêga o sôrvo em longos haustos, penso
sêr elle a emanação da volupia da Terra.
Odor que o sangue inflamma e que ujm desejo immenso
de prazeres sensuaes em nossas almas ferra,
quer perfume o brancor de um rendilhado lenço,
quer percorra, a cantar, as brenhas, o êrmo, a serra.
Quando o aspiro a embriaguez em mim se manifesta,
e ebria do amôr transponho a virential floresta,
onde a Luxuria, como uma serpente, assoma...
Ha rumores marciaes, sangrentos, aggressores,
de trompas, de clarins, cornêtas e tambores,
na fórte exhalação deste infernal arôma.
Rosas
Gilka Machado
A Luiz Murat
I
Cabe a supremacia á rosa, entre o complexo
das flores, pelo viço e pela pompa sua,
e o arôma que ella traz sempre á corolla annexo
o coração humano excita, enleva, estua.
Quando essa flôr se ostenta á luz tibia da Lua,
o luar busca enlaçal-a, amoroso, perplexo,
e ella sonha, estremece, oscilla, ri, fluctua
e desmaia, ao sentir esse etheral amplexo.
Si é rosea lembra carne ardente, palpitante...
nivea — lembra pureza e nada ha que a supplante
rubra — de certa bocca os lábios nella vejo.
Seja qualquer a côr, por sobre o hastil de cada
rosa, vive a Mulher, nos jardins flôr tornada:
— symbolo da Volupia a excitar o Desejo.
II
Rosas cujo perfume, em noutes enluaradas,
é um sortilegio ethereo a transpôr as rechans;
rosas que á noute sois risonhas, floreas fadas,
de cutis de velludo e tenras carnes sans.
Sejaes da côr do luar ou côr das alvoradas,
rosas, sois no perfume e na alegria irmans,
e todas pareceis, á luz desabotoadas,
a concretisação dos risos das Manhans!
O' rosas de carmim! O' rosas roseas e alvas!
ha nesse vosso odor toda a maciez das malvas,
a púbere maciez do pêcego em sazão.
Dae que eu possa gosar, ao vosso collo rente,
esse perfume, a um tempo excitante e emolliente,
numa dubia, sensual e suave sensação!
Dentro da noute
Gilka Machado
A Annibal Cardozo de Castro
As laranjeiras estão floridas
e, sob o yéo alvo do luar,
de branco assim todas vestidas
parecem virgens a caminho para o altar.
A alma nos fica inteiramente preza
de um mystico languor,
ao perfume que exhalam na deveza
os laranjaes em flor.
Ha um ruido de oração, de longe em longe,
anda o hyssope da Lua aspergindo todo o ar,
e o Vento reza como um velho monge,
para no altar da sombra as arvores casar.
Enquanto a noute fulge toda accesa
para a festa do Amôr,
vão desfolhando as flôres da pureza
os laranjaes em flor...
E, fecundando as viçosas vidas,
as laranjeiras, par a par,
assim se casam nas ermidas,
nas ermidas lyriaes, lactescentes do luar.
Um pollen branco, de etheral leveza,
— porphyrisado amôr,
distribuem por toda a natureza
os laranjaes em flôr.
E, aos laranjaes que andam noivando, vêde:
a alma goza um prazer secreto e salutar,
adormecendo, como numa rêde,
neste perfume que anda a oscillar... a oscillar.
Julgo absorver a essência da Pureza
no vosso meigo odôr,
ó virgens laranjeiras da deveza!
ó laranjaes em flôr!
Beijo
Gilka Machado
Beijo, beijo de amor — ave em cuja aza crêspa
o espirito se eleva a paragens ethereas,
ignivoma, nervosa e zumbidora vêspa,
que infiltra nas arterias,
da volúpia o fervente e orgiaco veneno;
som que ao festivo som de um guiso se assemelha,
que, a um só tempo é gemido, é gargalhada e é threno;
semente, que a vermelha
flôr da luxuria vem plantar sobre o maninho
solo da alma; licôr que se contem da bocca
na amphora coralina; espiritual carinho;
bala rubra que espôca
no lábio; arredondada e rútila e sonora
phrase que vem narrar do amor todo o áureo poema,
e que entender só pôde o ente que ama, que adora.
Beijo de amor — suprêma
delicia, original pomo da arvore da alma,
cujo galho, a subir, vae pender sobre a ameia
do lábio, pomo que ora excita e que ora acalma.
Dentro, em nós, mais se ateia,
ao contacto febril do lábio amado e amante,
das ancias a fogueira, e dos beijos o ruido
sêr julgo o crepitar dessa fogueira estuante.
Beijo de amôr — olvido
para os males da ausência; astro canoro e rubro
que no horizonte arcoal do lábio humano aponta;
flôr que adorna do affecto o sumptuoso delubro;
aurifulgente conta
que, ó Alma! vaes enfiar no collar dos prazeres
rumor que, em si, contem scintillas polycores,
sonora confusão das boccas e dos sêres;
mixto de sons e odores,
beijo, beijo de amôr — escandalosa lôa,
que, na festa pagan do luxuriante gôso,
em louvor á Cupido a humana bocca entôa;
elixir delicioso,
que ao paladar nos traz dia saudade os resabios;
remedio com que, ó Ancia! esse teu mal ensalmas;
beijo, beijo de amôr — matrimônio dos lábios
— concubito das almas.
Sensual
Gilka Machado
Quando, longe de ti, solitária, medito
este, affecto pagão que envergonhada occulto,
vem-me ás narinas, logo, o perfume exquisito
que o teu corpo desprende e ha no teu próprio vulto.
A febril confissão deste affecto infinito
ha muito que, medrosa, em meus labios sepulto,
pois teu lascivo olhar em mim pregado, fito,
á minha castidade é como que um insulto.
Si acaso te achas longe, a collossal barreira
dos protestos que, outr'ora, eu fizera a mim mesma
de orgulhosa virtude, erige-se altaneira.
Mas, si estás ao meu lado, a barreira desaba,
e sinto da volúpia a ascosa e fria lêsma
minha carne polluir com repugnante baba...
Versos Verdes
Gilka Machado
A Hermes Fontes
Esperança — palmeira immensa, erguida
no Sahara da Vida,
que o pallio protector da tua sombra espalmas
á caravana das almas.
Esperança — cigarra cancioneira,
que a tua vida inteira
passas, numa algazarra
bizarra,
do sol da juventude ás claridades louras,
cantando, até que estouras.
Esperança — floresta que eu transponho
na tontura do sonho,
floresta onde perdida, ás vezes, vaga
minha alma aziaga,
anciando que desponte
no horizonte,
para aclarar-te, ó minha brenha escura!
o astro radiante da ventura,
ha tanto tempo posto,
que me deixou na vida a noute do desgôsto.
Esperança
— vasto e verde pascigo onde eu folgava em creança,
onde, despreoccupada,
desde o roseo raiar da madrugada,
eu ia apascentar, das phantasias minhas,
as tenras ovelhinhas.
Esperança — arvore amiga,
em cujas frondes se abriga
das illusões a passarada;
arvore que a crescer, numa etherea escalada,
ergues supplicemente os torços braços
para os espaços,
num gesto ancioso, num gesto afflicto,
como que procurando alcançar o infinito.
Esperança! Esperança — ave que nos transportas,
em tuas azas, ás portas
da Chanaan da Phantasia;
essa tua magia
faz com que os moribundos
fiquem pensando noutros mundos,
na ancia illusoria de uma vida
jamais vivida.
O' Esperança! tu és como a Phenix lendaria,
a tua duração é indefinida, é varia,
vives a reviver das cinzas de; ti mesma;
és da ventura humana o eviterno avanthesma,
o avanthesma enganoso,
a espiritual visão do inatingivel gôso.
Em derredor de ti encrespam-se, uma a, uma,
as marêtas da magua, e dos sonhos a espuma
se levanta, se accende,
procurando attingir o Ideal que no alto esplende...
E tu, no emtanto, alheia
a esse inconstante mar que ora em fúria estrondeia,,
ora triste soluça e queixoso se espraia
do coração na praia,
ora ufano te mostra, ora busca tragar-te;
impassível, dest’arte,
presa das almas nas tênues fibras,
como uma alga orgulhosa te equilibras
no caudaloso oceano
do anceio humano.
O' Esperança minha!
— ave de arribação, fugitiva andorinha,
com que carinho
o ninho
teceste no beiral da torre do meu sonho,
e fugiste, supponho,
ó progne erradia!
mal previste chegar da descrença a invernia.
Em tudo, em todo sêr a tua seiva impera,
desde a mais frágil flôr á mais temível fera,
desde a lympha mais pura ao verme repellente,
tudo, tudo te sente.
Mal penetras a Terra,
estranha sensação no imo das cousas erra,
dos devaneios a horda
alvoraçada accorda,
e toda a natureza em frémitos se agita,
ao sentir-te, Esperança, a caricia bemdita;
a alma das cousas jubilosa canta,
desabrocha da flôr o sorriso na planta,
e abre-se em cada bocca a rosea flôr do riso;
pões no inferno da vida uns tons de paraizo,
e fazes enflorar todo o sêr que te encerra,
ó Primavera da alma! ó Esperança da Terra!
Esperança
— luar pacificador, luar lento de bonança,
luar mystico, luar santo,
ó luar lavado pela enxurrada do pranto!
ó luar consolador cuja luz triste e calma
penetra a noute tempestuosa da alma!
Da minha scisma as brumas illumina,
Esperança, luz divina,
luz triste, luz agonisante
de Lua-minguante!
* * * * *
Toda verde eu te sonho e no verde te vejo,
busco através do verde o delicioso ensejo
de poder partilhar da benção que tu lanças
aos sêres pelo gesto amigável das franças.
E' verde o manto que por sobre o solo arrastas,
verdes são essas tuas cômas bastas,
as tuas longas tranças,
que derramas á flôr das águas mansas
e emmaranhas nas frondes
onde da humana vista a tua fórma escondes.
E' verde o teu olhar, verdes teus olhos lampos,
e rastros teus supponho os campos,
e tudo reverdece ao teu divino assomo;
brotas na podridão da existência, assim como
brota a vegetação na immundicie dos charcos.
São verdes os teus marcos,
verdes as emoções por ti sentidas,
e são verdes as vidas
alentadas no teu exhuberante seio.
E tudo quanto anceio,
e tudo quanto por ti penso,
é de um verdor intenso!
E' verde a tua luz, verde a tua alvorada,
no verde te achas concretizada.
Esperança! tu que és a estrella que nos guia
na torva travessia
da estrada curva da existência,
tem para mim clemência!
Aclara-me, afinal, todo o espinhoso e escuro
caminho do Futuro...
As tuas luzes promissoras lança
no meu sêr, Esperança!
Alguns poemas do livro Estados de Alma (1917), reeditados em 1918 no Livro Poesias (1915-1917), grafia da época
Possa eu, da phrase nos agrestes sons,
em versos minuciosos ou succintos,
expressar-me, dizer dos meus instinctos,
sejam elles, embora, máos ou bons.
Quero me vêr no verso, intimamente,
Em sensações de gôso ou de pezar,
pois, esconder aquilIo que se sente,
é o próprio sentimento condemnar.
Que do meu sonho o branco véo se esgarce
e mostre núa, totalmente núa,
na plena graça da simpleza sua,
minha Emoção, sem peias, sem disfarce.
Quero a arte livre em sua contextura,
que na arfe, embora peccadora, a Idéa,
deve julgada ser como Phrinéa:
—na pureza triumphal da formosura.
Gelar minha alma de paixões accêsa
porque? si desla forma ao Mundo vim;
si adoro filialmeníe a Natureza
e a Natureza é que me fez assim.
Meu ser inferno, tumultuoso, vario,
— máo grado o parvo olhar profanador —
no livro exponho como num mostruario:
sempre a verdade é digna de louvor.
Fiquem no verso, pois, eternamente,
as minhas sensações gravadas, vivas,
nas longas crises, nas alternativas
desta minha alma doente.
Relatando o pezar, relatando o prazer,
través a agitação, través a calma,
a esfrophe deve tão somente ser
o diagnostico da alma.
Aspiração
Gilka Machado
A Pereira da Silva
Eu quizera viver
tal qual os passarinhos:
cantando á beira dos caminhos,
cantando ao Sol, cantando aos luares,
cantando de pezar, cantando de prazer,
sem que ninguém ouvidos desse aos meus cantares.
Eu quizera viver em plenos ares,
numa suspensa, etherea trajectoria,
numa existência quasi incorporea;
viver sem rumo, procurar guarida
á noute, para, em somno, o corpo descansar,
viver em vôos, de corrida,
roçar, apenas, pela Vida.
Eu quizera viver sem leis e sem senhor,
tão sómente sujeita ás leis da Natureza,
tão somente sujeita aos caprichos do Amôr.
Eu quizera viver na selva accêsa.
pelo fulgôr solar,
o convívio feliz das mais aves gosando,
viver em bando,
a voar... a voar...
Eu quizera viver cantando como as aves,
em vez de fazer versos,
sem poderem, assim, os humanos perversos
interpretar
perfidamente o meu cantar.
E eu cantaria, então, a liberdade do ar,
e cantaria o som, a côr, o arôma,
a luz que morre, a luz que assoma,
cantaria, de maneira incomprehendida,
toda a belleza indefinida
que a Natureza expõe e a gosar me convida.
E eu pudera expressar,
em sons lêdos ou graves,
esses prazeres suaves
do tacto;
e eu — então canora artista —
expandiria as emoções da minha vista,
e todo o goso, lubrico e insensato,
do odôr, que embriaga o olfacto;
e eu poderia externar,
em sons alegres ou doridos,
todas as impressões dos meus ouvidos,
toda a delicia do meu paladar.
Eu quizera viver dentro da natureza;
suffoca-me a estreiteza
desta vida social a que me sinto preza..
Deante
de uma paisagem verdejante,
deante do céo, deante do mar,
esta minha tristeza,
por momentos, se finda,
e desejo viver, soffrer a vida ainda,
e fico a meditar:
como os homens são máos e como a Terra é linda!
Certo, não fôra assim tão triste a vida,
si, das aves seguindo o exemplo encantador,
a humanidade, livremente unida,
gosasse a natureza, a liberdade e o amôr.
Eu quizera viver
sem a forma possuir do humano ser;
viver, como os passarinhos,
uma existência toda de carinhos,
de delicias sem par...
Morte, que és hoje todo meu prazer,
fôras, então, meu unico pezar!
Eu quizera viver a voar, a voar
até sentir as azas mollentadas,
voar ao cahir do Sol e ao vir das Alvoradas,
voar mais, ainda mais
pairar bem longe das creaturas,
nas sereníssimas alturas
celestiaes...
Voar mais, ainda mais
(o vôo me seduz!),
voar, até, finalmente,
num dia muito azul e muito ardente,
— alma — pairar do espaço a flux,
— matéria — despenhar-me, de repente,
sobre a terra absorvente,
morta, morta de luz!
Manhan de bonança
Gilka Machado
A Laura da Fonseca e Silva
I
A luz os mares e florestas doura;
abro, á luz, as janellas, par em par,
e, qual si acaso outro Pactolo fôra,
o dia de ouro inunda nosso lar.
Como eu sou rica! a luz me é portadora
de um thezouro trazido em ondas de ar...
Nesta manhan completamente loura,
tenho a alma de alegria a chocalhar!
Sinto-me leve como um seraphim,
e, nesta fragilissima leveza,
acho a casa pequena para mim...
e saio, e a alma me invade um tal fervôr,
que eu quizera estreitar a Natureza
num fórte abraço de enthusiasmo e amôr.
II
Quanta riqueza! — Sob os céos escampos,
rola um rio, rutíla a prata fluente,
e, atapetando de pellucia o ambiente,
ha pubescencias virides de campos.
Sem caras fitas, sem custosos grampos,
ao vento que a balança mollemente,
enfeito a minha cabelleira ardente
de flôres raras e de insectos lampos.
Manhan de pompa, de alegria intensa!
parece até que Deus se fluidifica
em luz, e entra-me o ser, e enche-o de crença.
Perfumes... côres... sons... e a alma, sorpreza,
sem carinho, sem pão, sente-se rica,
no gôso emocional da Natureza!
Helios e Heros
Gilka Machado
Filhos meus — duas forças bem pequenas
que amo, e das quaes sustar quizera o adejo;
pequenas sempre fôra meu desejo
tel-as, aconchegadas e serenas.
Filhos meus — delles vem, delles, apenas,
a humilhação servil em que me vejo;
mas, si o penar a um filho é bemfazejo,
para uma alma de mãe que valem penas?
Eu, que feliz, toda enthusiasmo, d'antes,
via os seres tornarem-se possantes,
vejo-os crescerem com pezar, com zêlos.
Vejo-os crescerem, ensaiarem threnos,
e, no emtanto, quizera-os tão pequenos
que pudesse nas mãos sempre trazel-os.
Tedio
Gilka Machado
A José Oiticica
Principia o verão. Toda a matta tresua.
Quedam-se as aves, a água, as frondes. Calmaria...
Não tem raios, parece uma febrenta lua
o Sol. Brumoso véo o infinito ennuvia.
Creio que grande mal na Natureza actua:
um pleno desalento, um sopôr de agonia.
Muda e immovel, assim, tem a Terra, na sua
attitude, a expressão de quem a Morte espia.
Nem risos de prazer nem ais de angustia: nada.
Dia para o sabôr do Tédio, tão somente.
A atmosphera recorda agua morna e estagnada.
A minha alma, vencida, em meio a tantas maguas,
paira na vastidão tristíssima do ambiente,
como uma enorme náo encalhada nas fraguas.
Ante Uma Paisagem
Gilka Machado
A Levino Fanzeres
Quando não tarda o Sol a despontar,
pelas de hinverno lividas manhans,
a Natureza, ao meu olhar,
parece toda agasalhada em lans.
Manhans serenas e crystalinas
essas, que ficam, horas inteiras,
no afan continuo das rendeiras,
tecendo a renda fluida das neblinas.
Manhans de tédio e de preguiça,
em que até mesmo o Sol custa a acordar,
e o corpo pede leito, e o deseja, e o cobiça;
manhans que não são mais do que noutes de luar.
Manhans de paina, em que a alma se reclina
como sobre um frouxel nivoso e largo,
e em que ha no céo e na campina
o mesmo pronunciado e invencível lethargo.
Andam anjos, por certo, azas, do alto, ruflando,
pelas manhans de brumas,
porque tombam do céo, de quando em quando,
crêspas, ethereas plumas.
O hinverno a Natureza revirgina,
e quando surge o Sol, no inicio do verão,
a Terra tem pudores de menina,
palpitante de amôr á solar sensação.
Faz-se na natureza um lyrico noivado;
flôres de laranjeira e níveos véos nupciaes,
traja a Terra, a esperar que o noivo amado
venha, afinal, lhe dar o beijo de esponsaes.
O verão principia,
porém, nas cousas, inda o hinverno actua;
é dia,
mas no céo que livôr, que sombria
expressão, que macios tons de Lua!
Esta linda manhan, tão velludosa quão
fria, a desabrochar o alvo seio, de leve,
tem o mesmo abandono, a mesma lentidão
de uma camelia a abrir das pétalas a neve.
Toda a paisagem é muito languida e fria,
na neve no arvoredo, ha neve sobre a alfombra,
com azas brancas, a Melancholia
a Natureza ensombra.
Da estrada sobre o longo e amplo espreguiçamento,
á feila fluida da garôa,
o phantasma do Tédio, amarello, nevoento,
anda vagando, atôa...
plena desolação, pleio anniquilamento,
Tédio, sómente o Tédio a êrma estrada povôa.
O meu olhar nesta paisagem sente
qualquer cousa de uncçao, qualquer cousa emolliente...
O céo parece todo de pennas.
Azas de névoa passam, lentamente.
Nas arvores, que estão impassíveis, serenas,
— braços abertos para a amplitude,
— olhos postos na altura,
ha uma esperança frouxa, indecisa, indolente,
de quem, por padecer ha muito doente,
inda duvidas põe na próxima ventura.
E, dentro da manhan dubiamente tristonha,
das arvores a attitude
é a mesma extatica attitude de quem sonha.
E' dia, mas a luz não tem calor nem raios;
«onde a alegria da Natureza?
a paisagem é toda de desmaios
de cores e de névoas de incerteza.
E' dia,
mas a estrada está vasia
e nem uma ave o espaço corta;
o verão principia
e a Terra está como que morta.
E' dia, mas o céo é bruma, lado a lado,
e, persistindo num amoroso disfarce,
o Sol, nas nevoas embuçado,
continúa a occultar-se.
Pelas arvores que ancia!
Como as frondes olham tristes a distancia!
Toda de branco para o noivado,
a paisagem inda espera:
tarda a festa nupcial da primavera
e tarda o Sol — o noivo desejado.
Num derradeiro arranco
de paixão virgem, luminosa, immensa,
a alma da Natureza está suspensa
num sonho branco... branco... branco...
Vibrações do Sol
Gilka Machado
Dias em que fremindo os meus nervos estão,
em que estranho meu ser passivo e scismarento;
dias em que meu corpo é uma palpitação
de azas, da natureza ante o deslumbramento!
Num. dia, assim, como este, os meus tédios se vão,
e ao céo de escampo azul e ao Sol, de ardôr violento,
eu só quero sentir a forte vibração
da vida, num prazer ou mesmo num tormento.
Saem dos lábios meus as expressões em trovas;
quero viver, gosar emoções muito novas,
amo quanto me cerca, amo o bem, amo o mal.
E, numa agitação de anceios incontidos,
nestes dias de Sol, os meus cinco sentidos
são aves ensaiando o vôo para o Ideal.
Volupia
Gilka Machado
Tenho-te, do meu sangue alongada nos veios;
á tua sensação me alheio a todo o ambiente;
os meus versos estão completamente cheios
do teu veneno forte, invencível e fluente.
Por te trazer em mim, adquiri-os, tomei-os,
o teu modo subtil, o teu gesto indolente.
Por te trazer em mim moldei-me aos teus colleios,
minha intima, nervosa e rubida serpente.
Teu veneno lethal torna-me os olhos baços,
e a alma pura que trago e que te repudia,
inutilmente anceia esquivar-me aos teus laços.
Teu veneno lethal torna-me o corpo langue,
numa circulação longa, lenta, macia,
a subir e a descer, no curso do meu sangue.
Symbolos
Gilka Machado
Eu e ti, ante a noute e o amplo desdobramento
do mar fero, a estourar de encontro á rocha nua.,
Um symbolo descubro aqui, neste momento;
esta rocha e este mar... a minha vida e a tua...
O mar vem... o mar vae.... nelle ha o gesto violento
de quem maltrata e, após, se arrepende e recúa...
Como eu comprehendo bem da rocha o sentimento!
são bem eguaes, por certo, a minha magua e a sua!
Symbolisa este quadro a nossa própria vida:
tu és esse mar bravio, inconstante e inclemente,
com carinhos de amante e fúrias de demente;
eu sou a dôr parada, a dor empedernida,
eu sou aquella rocha encravada na areia,
alheia ao mar que a punge, ao mar que a afaga alheia.
Impressões do Som
Gilka Machado
A Laura Austregesilo
Falas... e, por te ouvir, me fico muda e quêda;
a minha alma, porém, começa a atravessar
uma larga, uma longa e sombria alamêda
de laranjaes em flôr se espetalando ao luar.
Falas... pelo silencio ha capulhos de sêda...
toma-me a sensação de um languor singular...
Falas... e tua fala, ora triste, ora lêda,
tem a ascensão subtil do arôma a espiralar.
Falas... ao te escutar, sinto, neste momento,
que tua voz é um branco, é um perfumoso unguento
para a chaga febril do meu grande pezar...
Falas... e, ora, sentindo a tua suave fala,
cuido que um anjo louro, a sorrir, despetala
flôres, sobre meu Sonho afflicto, a agonisar.
* * * * *
Voz de surdinas, voz suggestiva, que assume
a solenne expressão de uma prece longeva.
Voz que, pela mudez desta noute sem lume,
tem gestos monacaes; voz que abençôa a Treva.
Voz de surdinas, voz que na calma se eleva,
cariciante, subtil; voz que o senso presume
a manifestação exterior de uma leva
de flôres, a harmonia etherea do perfume.
Recorda-me esta voz, de tão meiga, tão mansa,
a canção maternal que me embalava em creança,
e me sinto infantil, ora, quêda, a escutal-a.
Esta voz mais parece uma voz subjectiva,
esta voz tão somente o Silencio a deriva,
esta voz, com certeza, é do Silencio a fala.
* * * * *
A’languorosa luz que cae da Lua-cheia,
como que a despertar, se vae espreguiçando
na pellucia da noute, um rumor lento e brando,
que se torce, se estorce, alonga, serpenteia...
E é tão suave esta voz que a Natureza enleia,
e os sentidos me toma, e m'os vae mollentando;
creio mesmo fitar de sereias um bando,
pois nesta melodia ha ondeios de sereia.
Cada nota que, no ar, mollemente, fluctua,
é um seio nu, é um ventre nu, é a fôrma nua
das mulheres sensuaes de bambas carnes turvas.
E, toda languidez, espasmos, elasterios,
esta musica põe nos silêncios ethereos
uma continuidade intermina de curvas...
* * * * *
Sobem, na longa esguiez dos galhos resequidos,
estes sons para os quaes meu pensamento externo.
Sinto neve cahir, ouço longos gemidos
de arvores expressando o seu pezar interno.
Perto, um piano a vibrar, tão lugubre quão terno...
que alvas, tremulas mãos arrancam taes ruidos
que, glabros, sêccos como as fôlhas pelo hinverno,
vêm cahir, subtilmente, agora, em meus ouvidos?
E' uma noute estival esta que anda lá fóra,
mas eu tenho a visão triste do outomno, emquanto
o piano scisma, o piano geme, o piano chora...
Ha uma queixa que sobe a paragens ignotas...
tremulam no silencio alvas gottas de pranto...
plange o piano, pingando as derradeiras notas...
* * * * *
A minha irman Magdalena
Na calma circumdante uma voz se desata...
cantas e, por te ouvir, a sonhar principio:
acho-me com certeza ante alguma cascata;
o ambiente é mysterioso, é segredante e frio.
Borrifa-me a epiderme um halito de prata...
Em deslizes fluviaes, de suave murmurio,
tua voz me conduz á espessura da matta,
onde da agreste flôr vaga o cheiro macio.
O som cresce, se alarga e como que descansa...
já não é mais um rio a tua voz, é mansa,
lisa lagôa, ao luar dormindo um somno brando.
E, quando na garganta a ultima nota estancas,
os echos pairam, como azas longas e brancas
de cysnes, por todo o ar, lentos, se espreguiçando...
Emotividade da Cor
Gilka Machado
A Dolores Marquez Caplonch
e a
Miguel Caplonch
Sete côres — sete notas erradias,
sete notas da musica do olhar,
sete notas de ethereas melodias,
de sons encantadores
que se compõem entre si,
formando outras tantas côres,
do cinzento que scisma ao jalde que sorri.
Ha momentos
em que a côr nos modifica os sentimentos,
ora fazendo bem, ora fazendo mal;
em tons calmos ou violentos,
a côr é sempre communicativa,
amortece, reaviva,
tal a sua expressão emocional.
Lanças olhares investigadores
para a mancha dos poentes:
ha côres que são echos de outras côres.
côres sem vibração, côres esfallecentes.
melodias que o olhar sómente escuta,
na quietude absoluta,
ao Sól se pôr...
Quem ha que inda não tenha percebido
o subjectivo ruido
da harmonia da côr?
A alvorada é um «crescendo»,
a tarde é um «smorzando»;
as côres nascem quando a luz vae despontando,
as côres morrem quando a luz vae se escondendo.
Sempre que fito os arrebóes, lá no ar,
uma idéa em meu sonho se insinua:
andam perfumes, no infinito, a errar...
— rubro intenso, azul suave, roseo brando,
amarello atordoante,
alaranjado doce,
verde indeciso, rôxo leve...
oh! si possível aspiral-os fosse!
quanto perfume deve,
neste instante,
o espaço saturar!
quantos perfumes trescalando,
mas tão distante, tão distante,
que só os posso vêr, não os posso aspirar!...
— A côr é o aroma em corpo e embriaga pelo olhar.
Côr é soluço, côr é gargalhada,
côr é lamento, é suspiro,
e grito de alma desesperada!
Muitas vezes a côr ao som prefiro
porque ella vibra sem rumôr,
porque a minha emoção é egual á sua:
— parada, estatelada,
dizendo tudo, sem que diga nada,
no prazer ou na dôr.
Olhar a côr
é ouvil-a,
numa expressão tranquilla,
falar de todas as sensações
caladas, dos corações;
no emtanto, a côr tem brados,
mas brados estrangulados,
maguas contidas,
mudo querer,
ancia, fervor, emotividade
de desconhecidas
vidas,
que se ficaram na vontade,
que não conseguiram sêr...
Côres são vagas, suggestivas toadas.
Côres são emoções paralysadas...
* * * * *
Branco — espasmo... anemia...
O branco é uma visual anesthesia.
No branco
ha tal candor
que, quando nelle o olhar estanco,
julgo-o a infância, a innocencia, a pureza da Côr.
Negro somno das Côres fatigadas...
(penso ao transpor, ás cegas, as estradas),
Negro é pezar, é purificação
espiritual;
flôres que se abrem só na noute escura
são
de brancura
virginal.
Negro... e a noute perscruto,
e me fico a sonhar, e me fico a suppôr:
o negro é a Côr de luto,
o negro é a dôr
da Côr.
* * * * *
Cinzento — meu pensar em que busco e repillo
a Vida; meu interno e interminável poente;
meu céo de bruma, céo parado, céo tranquillo,
onde encoberto vaga o sol da minha mente.
Cinzento -- indecisão, nascimento, agonia,
embryão do meu prazer, embryão da minha dôr!
vibram dentro de ti, em chromal harmonia,
a brancura e o trevor.
Nesse teu todo, ó côr scismatica e sombria,
sempre que afundo o olhar calmo, investigador...
supponho descobrir a cinza, a ruinaria
do meu primeiro amôr.
Abysmas-te em meu ser, meu ser em ti se abysma,
quando morre a Illusão, quando o Dia se escombra,
ó côr que na minha alma és a sombra da Scisma,
côr que na Natureza és a scisma da Sombra!
* * * * *
O rôxo entre o pezar e a alegria balança.
Rôxo — tristeza mansa,
tristeza em côr, côr da tristeza
da cella em que minha alma vive prêsa.
Rôxo — alegria do triste,
sorriso aberto para a Dôr,
pranto que eu vivo a rir desde que me surgiste.
Rôxo — alameda em flor,
de claridades turvas,
em cujas curvas
longas, fugidias,
vão se sumindo as illusões e os dias.
* * * * *
Roseo — Côr a sorrir,
sorriso da creatura
ante a loura visão de um sonhado Porvir.
Roseo — indecisa tonalidade
que não é illusão nem realidade.
Côr
de carne inda em flôr
carne mal accordada,
carne que se prepara, que se apura
para em ancias fremir...
Carne diluida em côr...
Roseo — côr da Alvorada,
roseo — alvorada do Amôr.
* * * * *
Qualquer cousa talvez de velhice ou de somno,
talvez de hypocondria...
um cantochão... um triste entono
de folhas a rolarem, pelo outomno...
um total abandono,
uma apparente calma
em que fico a mirar, no interior da minha alma,
de illusões se despindo o meu sonho mais bello...
esfolhada... hinvernia...
amarello... amarello...
* * * * *
Rubro — loucura em côr, côr da loucura.
Rubro— carne inflammada em estos de paixão.
Rubro — o incêndio interior que o corpo me tortura,
a constante tontura
que me puzeste na imaginação;
a côr través a qual te vejo,
num voluptuoso ensejo...
a exteriorisação do meu desejo.
* * * * *
No alaranjado a minha vista sente
uma alegria doente,
uma alegria de alma bôa,
que ri muito, apezar da doença que a magôa,
uma alegria triste,
que consiste
em rir, para alegrar
o alheio olhar.
Alaranjado
(repara bem, verás:) é o sorriso forçado,
é o meu sorriso cheio de pezar,
é o meu sorriso misturado
com lagrimas, si estou de ti perto, ao teu lado,
e a distancia entre nós vejo se desdobrar.
* * * * *
O verde as emoções me revigora,
o verde tem o dom
de me tornar louçan, a qualquer hora,
em qualquer parte, em qualquer tom.
Num ímpeto de vaga ou num surto de frança,
o verde é sempre uma esperança
que para o céo se lança.
Verde é o olhar com que te espio,
e o olhar com que tu me espias
(e os nossos olhos são noutes negras, sombrias.
Verde é o leito, é o macio
berço desta lembrança
em que tua visão, dentro em meu ser, descansa.
Verdes — as vagas que, a cada instante,
vêm e vão,
do meu coração amante
ao teu amante coração.
Verde é ancia incontida
de mar que quer subir, quer o céo alcançar;
verde é alegria distribuída.
em côr, a gargalhar;
verde é vigor, verde é vida
a irromper, a fugir da Morte, a frondejar,
nos estagnos, nas dôres e nas covas,
em esperanças, em plantas novas,
buscando a luz, as amplitudes, o ar.
* * * * *
De azul, de suave azul coloriram-se as rotas
do céo; azul é sempre expressão de bondade.
Ha na visão do azul um carinho de oressa
e uma promessa
de felicidade.
O azul nos suggestiona, nos persuade;
mesmo quando tenhamos a alma oppressa,
qual de nós a sonhar não recomeça
ante um tranquillo céo de azulea claridade?
Sempre, em rumo do azul,
a alma errante dos poetas segue, exul.
Azul é perfeição, é sonho, é ideal;
azul é o brilho do mais límpido crystal;
azul é o jorro da água mais pura,
mais torturada, mais batida.
No azul se fez um pouzo destinado
ás almas que se vão da vida, sem peccado.
Azul diviso esta tortura,
este desejo de subida
que sinto pelas
distancias ermas da azul altura.
Azul bemdito, de bellezas tantas!
— azul nas flôres mais delicadas,
— azul nos olhos mysticos das santas,
— azul nos olhos magicos das fadas,
— azul nos olhos vagos das estrellas.
Sonhemos sob o azul que tudo nos permitte,
o azul que nos promette e nunca nos dissuade.
Bem-haja o azul da Immensidade,
esse azul sem limite,
esse azul-liberdade!
Particularidades...
Gilka Machado
Muitas vezes, a sós, eu me analyso e estudo,
os meus gostos crimino e busco, em vão, torcel-os;
é incrivel a paixão que me absorve por tudo
quanto é sedoso, suave ao tacto: a côma... os pellos...
Amo as noutes de luar porque são de velludo,
delicio-me quando, acaso, sinto, pelos
meus frágeis membros, sobre o meu corpo desnudo;
em caricias subtis, rolarem-me os cabellos.
Pela fria estação, que aos mais seres erriça,
andam-me pelo corpo espasmos repetidos,
ás luvas de camurça, ás bôas, á pelliça...
O meu tacto se estende a todos os sentidos;
sou toda languidez, somnolencia, preguiça,
si me quedo a fitar tapêtes estendidos.
* * * *
Tudo quanto é macio os meus ímpetos dôma,
e flexuosa me torna e me torna felina.
Amo do pecegueiro a pubescente pôma,
porque afagos de vello offerece e propina.
O intrínseco sabôr lhe ignoro; si ella assoma,
no rubôr da sazão, sonho-a doce, divina!
goso-a pela maciez cariciante, de côma,
e o meu senso em mantel-a incólume se obstina.
Toco-a, palpo-a, acarinho o seu carnal contôrno,
saborêo-a num beijo, evitando um resabio,
como num lento olhar te osculo o lábio morno.
E que prazer o meu! que prazer insensato!
— pela vista comer-te o pêcego do labio,
e o pêcego comer apenas pelo tacto.
Alguns poemas inclusos no livro Meu Rosto, 1947, grafia da época
Reflexões
Gilka Machado
Ouve, minha alma, e pensa muito, pensa...
nossa pobre existência já se evade,
cheia de tédio, cheia de descrença,
sem que leve sequer uma saudade.
Olham-me com a friez da indiferença
esses por quem, repleta de piedade,
trocaste outrora uma ventura imensa
pelo atroz desespero que me invade.
Regressa ao teu Amor, goza um momento,
que o momento de amor que a vida goza
mais do que a eternidade é longo e lento.
Ante o pequeno bem de almas tão frias,
porque te não sustaste, alma piedosa,
com remorso do mal que nos fazias?!...
** * * *
Eu sinto que nasci para o pecado,
si é pecado na terra amar o Amôr;
anseios me atravessam lado a lado,
numa ternura que não posso expôr.
Filha de um louco amor desventurado,
trago nas veias lírico fervôr,
e, si meus dias à abstinência hei dado,
amei como ninguém pode supôr.
Fiz do silêncio meu constante brado,
e ao que quero costumo sempre opôr
o que devo, no rumo que hei traçado.
Será maior meu gozou ou minha dôr,
ante a alegria de não ter pecado
e a mágua da renúncia deste amôr?!...
* * * * *
Amei o Amor, ansiei o Amor, sonhei-o
uma vez, outra vez (sonhos insanos)! . . .
e desespero haja maior não creio
que o da esperança dos primeiros anos.
Guardo nas mãos, nos lábios, guardo em meio
do meu silêncio, aquém de olhos profanos,
carícias virgens, para quem não veio
e não virá saber dos meus arcanos.
Desilusão tristíssima de cada
momento, infausta e imerecida sorte,
de ansiar o Amôr e nunca ser amada!
Meu beijo intenso e meu abraço forte,
com que pesar penetrareis o Nada,
levando tanta vida para a morte!. . .
Retardatário
Gilka Machado
Sonhei-te tantos anos! Tantos anos!
eras o meu ideal de amôr e de arte,
buscava-te a toda hora e em toda parte
nessa ânsia inexplicável dos insanos.
Por fim, vencida pelos desenganos,
como quem nada espera que lhe farte
a alma faminta, exausta de sonhar-te,
abandonei-me do destino aos danos!
Surges-me agora, em meio da jornada
da vida: vens do Inferno ou vens da altura?
— não sei, mas de ti fujo, apavorada!
E, em lágrimas, minha alma conjetura:
uma felicidade retardada
quase sempre se torna desventura.
Ausência
Gilka Machado
A ausência tua é uma presença estranha,
a ausência tua a solidão me alinda,
o silêncio parece-me que é, ainda,
a tua voz que, em sono, me acompanha.
A ausência tua tona-se tamanha
que se me faz uma presença infinda,
pois , na tristeza que meus nervos ganha
sinto, de instante a instante a tua vinda.
De ti todo meu ser está tão cheio
que me amo, que me afago, que me enleio,
numa indizível ilusão sensória.
E abro à tua saudade braços de ânsia,
desafiando o infinito da distância
com teus beijos mordendo-me a memória.
Alguns poemas inclusos no livro Velha Poesia, 1965, grafia da época
Chuva de Cinzas
Gilka Machado
Chuva de cinzas... Cai a tarde lá por fora
na estática mudez da Terra triste e viúva;
e, da tarde ao cair, sinto, minha alma, agora,
embuça-se na cisma e no torpor se enluva.
Hora crepuscular, hora de névoas, hora
em que de bem ignoto o humano ser enviúva;
e, enquanto em cinza todo o espaço se colora,
o tédio, em nós, é como uma cinérea chuva.
Hora crepuscular —- concepção e agonia,
hora em que tudo sente uma incerteza imensa,
sem saber se desponta ou se fenece o dia;
hora em que a alma, a pensar na inconstância da sorte,
fica dentro de nós oscilando, suspensa
entre o ser e o não ser, entre a existência e a morte.
Esboço
Gilka Machado
Teus lábios inquietos
pelo meu corpo
acendiam astros...
e no corpo da mata
os pirilampos,
de quando em quando,
insinuavam
fosforescentes carícias...
e o corpo do silêncio estremecia,
chocalhava,
com os guizos
do cri-cri osculante
dos grilos que imitavam
a música de tua bôca...
e no corpo da noite
as estrelas cantavam
com a voz trêmula e rútila
de teus beijos...
Fecundação
Gilka Machado
Teus olhos me olham
longamente,
profundamente,
imperiosamente...
de dentro dêles teu amor me espia.
Teus olhos me olham numa tortura
de alma que quer ser corpo,
de criação que anseia ser criatura.
Tua mão contém a minha
de momento a momento:
é uma ave aflita
meu pensamento
na tua mão.
Nada me dizes,
porém entra-me a carne a persuasão
de que teus dedos criam raízes
na minha mão.
Teu olhar abre os braços,
de longe, à forma inquieta de meu ser,
abre os braços e enlaça-me tôda a alma.
Tem teu mórbido olhar
penetrações supremas
e sinto, por senti-lo, tal prazer,
há nos meus poros tal palpitação,
que me vem a ilusão
de que se vai abrir
todo meu corpo
em poemas.
Baú de Guardados
Gilka Machado
Pelos caminhos da vida
fechei os olhos às coisas feias,
porém as belas tranquei-as
no meu baú de guardados.
Por certo ninguém pressente,
vendo sempre vazios meus braços,
o que conduzem meus passos
neste baú de guardados.
E vou resgatando em penas
ai! como venho pagando em choros,
os pequeninos tesouros
do meu baú de guardados!
Ironia do Mar
Gilka Machado
Soam gritos de dor!... e o detono de uma onda
sinistramente vai repercutindo pelos
longes do ar. De onde veio a voz o ouvido sonda,
no anseio de atender os aflitos apelos.
E o truculento mar sinistramente estronda,
ruge, regouga, rola, espuma em rodopelos;
talvez porque nesta hora algum tesouro esconda,
cada vez mais feroz se arrepia de zelos.
Para a prêsa reter muralhas de esmeralda
ergue e num riso atroz de satisfeito gôzo
veste-a de rendas mil, de flores a engrinalda.
Move o crânio disforme, as longas cãs balança,
e, alçando a larga mão, num gesto vitorioso,
mostra cìnicamente um cadáver de criança.
Incenso
Gilka Machado
A Olavo Bilac
Quando dentro de um templo, a corola de prata
do turíbulo oscila e tôdo o ambiente incensa,
fica pairando no ar, intangível e densa,
uma escada espiral que aos poucos se desata.
Emquanto bamboleia essa escada e suspensa
paira, uma ânsia de céus o meu ser arrebata
e por ela a subir numa fuga insensata,
vai minha alma ganhando o rumo azul da crença.
O turíbulo é uma ave a esvoaçar, quando em quando...
arde o incenso... um rumor ondula, no ar se espalma...
sinto no meu asas brancas roçando...
E, sempre que de um templo o largo humbral transponho,
logo o incenso me enleva e transporta minha alma
à presença de Deus na atmosfera do sonho.
Recital
Gilka Machado
Falas e, por te ouvir, me fico muda e quêda;
a minha alma, porém, começa a atravessar
uma larga, uma longa e sombria alamêda
de laranjais em flor se espetalando ao luar.
Falas... pelo silêncio há capulhos de sêda;
toma-me a sensação de um languor singular.
falas e tua fala, ora triste, ora lêda,
tem a ascenção sutil do aroma a espiralar.
Falas... ao te escutar sinto, neste momento,
que tua voz é um branco, é um perfumoso unguento
para a chaga febril do meu grande pesar.
Falas e, ora, sentindo a tua doce fala,
cuido que um anjo louro, a sorrir despetala
flores sôbre meu sonho aflito, a agonizar.
Ânsia Múltipla
Gilka Machado
Beija-me Amor,
beija-me sempre e mais e muito mais
em minha bôca esperam outras bôcas,
insaciadas e loucas,
os beijos deliciosos que me dás!
Beija-me ainda,
ainda mais,
em mim sempre acharás
à tua vinda
ternuras virginais!
Beija-me mais, põe o mais cálido calor
nos beijos que me deres,
pois vive em mim a alma de todas as mulheres
que morreram sem amor!
O Retrato Fiel
Gilka Machado
Não creias nos meus retratos,
nenhum dêles me revela,
ai, não me julgues assim!
Minha cara verdadeira
fugiu às penas do corpo,
ficou isenta da vida.
Toda minha faceirice
e minha vaidade tôda
estão na sonora face;
naquela que não foi vista
e que paira, levitando,
em meio a um mundo de cegos.
Os meus retratos são vários
e nêles não terás nunca
o meu rosto de poesia.
Não olhes os meus retratos,
nem me suponhas em mim.
Saudade
Gilka Machado
De quem é esta saudade
que meus silêncios invade,
que de tão longe me vem?
De quem é esta saudade,
de quem?
Aquelas mãos só carícias,
aquêles olhos de apêlo,
aquêles lábios-desejo...
E estes dedos engelhados,
e êste olhar de vã procura,
e esta bôca sem um beijo...
De quem é esta saudade
que sinto quando me vejo?
Alguns poemas/trovas inclusos no livro Poesias Completas, 1978, grafia da época
Troversando
Gilka Machado
Do sucesso na subida
nunca te orgulhes demais
muito deifícil na vida
é conservar o cartaz.
Eu não explico a ninguém
pois ainda não compreendi
porque te chamo meu bem
se sofro tanto por ti.
Há sempre felicidade
na lembrança de um carinho
quem conserva uma saudade
nunca mais fica sozinho.
A minha mente deplora
o pranto com que me inundo...
é por meus olhos que chora
toda a tristeza do mundo.
Ai mamãe não há conforto
Sem a tua companhia!
Onde jaz teu corpo morto
jaz toda minha alegria.
Ama tua formosura
e dela cuida com calma;
o homem em ti procura
tudo, mulher, menos alma.
Reflexões
Gilka Machado
Meu espírito sempre insatisfeito,
inútil teu esforço de pureza;
hoje, que obténs das multidões o pleito,
do que nunca é maior tua tristeza.
Diante do sonho por tuas mãos desfeito,
notas, cheio de máxima surpresa,
que, na ânsia de ser grande, ser perfeito,
mentiste a Deus, mentiste à natureza.
A ti mesma mentiste, e, merencória,
e humilde, alma, contemplas essas flores
que se vem de esfolhar por tua glória.
Sofres, os olhos te transbordam de água...
— doem mais do que injúrias os louvores
por um bem que se fez cheia de mágua.
Juízo Final
Gilka Machado
Aqui me tens horrivelmente nua,
liberta e levitante,
sem atitudes, sem mentiras, sem disfarces,
ante o infinito da bondade tua.
Perdoa-me Senhor
o sonho de outro mundo
(meu pobre mundo tão efêmero e inferior)
desdenhosa do teu perfeito e eterno!
Perdoa-me Senhor
por meus excessos
de timidez e de audácia,
de ódio e de paixão,
de acolhimento e de repúdio!
Perdoa-me Senhor
pelos ímpetos que não refreei,
pelas lágrimas que provoquei,
pelas chagas que não curei,
pela fome que não matei,
pelas faltas que condenei,
pelas ideias que transviei.
Perdoa-me Senhor
por ter amado tanto o amor
com toda a sua falsidade,
com todo o seu infernal encanto
que ainda perdura
nesta saudade!
Perdoa-me Senhor
pelo que sou sem que o tivesse desejado,
pelo que desejei e não fui nunca,
pelo que já não mais poderei ser!...
Perdoa-me Senhor
os pecados conscientes
que te trago de cor!
Perdoa-me Senhor
porque não te perdôo
o não me haveres feito
um ser perfeito,
uma criatura melhor!
O Mundo Necessita de Poesia
Gilka Machado
O mundo necessita de poesia,
cantemos, poetas, para a humanidade;
que nossa voz suba aos arranha-céus,
e desça aos subterrâneos,
acompanhando ricos e pobres
nos atropelos
das carreiras
de ambição
e na luta pelo pão.
Lavemo-nos das máscaras histriônicas,
tenhamos a coragem
de propalar a existência eterna
do sentimento;
ponhamos termo
a esses malabarismos
de palhaços
falsos
da modernidade,
permanecendo diferentes,
diante da multidão
insensibilizada,
enferma.
A humanidade quer rir de tudo,
porém é alvar sua gargalhada.
Foge das tristezas,
mas paira ausente
em meio aos prazeres,
desligada em toda parte,
perdida em si mesma.
O homem anda esquecido do caminho da fé
que a poesia sempre lhe ensinou.
O homem está inquieto
porque lhe falta a posse das distâncias
que só a poesia proporciona.
O homem se sente miserável
porque a poesia já não lhe enche a alma
daquele ouro inexgotável
do sonho.
O mundo necessita de poesia,
(não importem assuadas)
cantemos alto, poetas, cantemos!
que seja nossa voz
um sino de cristal,
um sino-guia de perdidos rumos,
vibrando no nevoeiro de inconsciência
do momento angustioso!
Nosso destino, poetas, é o destino
das cigarras e dos pássaros:
— cantar diante da vida,
Cantar
para animar
o labor do Universo,
cantar para acordar,
ideias e emoções;
porque no nosso canto
há um trigo louro,
um pão estranho que impulsiona
o braço humano,
e os cérebros orienta,
uma hóstia
em que os espíritos encontram,
na comunhão da beleza,
a sublimação da existência.
O mundo necessita de poesia,
cantemos alto, poetas, cantemos!
Para ler mais GILKA MACHADO, clique em:
http://expressaomulher-em.blogspot.com/2015/09/belas-artes-em-familia-gilka-machado.html
(Segmento intitulado "ENVOLVÊNCIAS / "BELAS ARTES EM FAMÍLIA - GILKA MACHADO, RODOLPHO MACHADO, EROS VOLÚSIA E AMAURY MENEZES")
Obrigada, Regina e Ilka, por me apresentarem Gilka Machado!
ResponderExcluirNão conhecia e li aqui definições geniais.
Abraço meu!
Obrigada, Ilka e Regina, por darem a Gilka Machado depois de 32 anos, o trono que ela sempre mereceu e que infelizmente caiu no esquecimento de muitos, inclusive de alguns dos seus próprios leitores. Gilka ensinou-me a ter coragem em ser transparente, em apresentar-me à vida sem máscaras...
ResponderExcluirLeitores do EXPRESSÃO MULHER, por favor, não deixem de ler e divulgar Gilka Machado, há em cada verso desta grande mulher, uma constelação que pode iluminar a força feminina!
Abraços,
Èmily Bourdon
Oh EETERNA Gilka Machado, cada mulher não tem como negar a si mesma que se sente dentro dos seus versos.
ResponderExcluirEu, particularmente me vesti de muitos deles.
"Eu sinto que nasci para o pecado,
se é pecado na terra amar o Amor;
anseios me atravessam lado a lado,
numa ternura que não posso expôr."
Deixaste saudade de ser o que foste!