*ILKA VIEIRA (Patronesse do EM)





"O poeta é o ser que mais necessita de renovação. Cansa-se com facilidade do cotidiano, mas através dele  adquire passaportes para as mais profundas paisagens.
O poeta chama de alma a essência que salvaguarda suas emoções, o alicerce que sustenta sua vida e a eternidade que sobrevive à sua morte.
O poeta deixa deslizar a pena através da folha, transparecendo em cenário o renascimento de atitudes da alma."

                                       Ilka Vieira
                                     (1954-2014)























Vencedora
Ilka Vieira

Sobrevivi a labaredas abertas
diante dos meus caminhos.
Ousei abrir passagens incertas,
defendendo-me dos espinhos.

Uni com perfeição
as partes mais quebradas.
E ainda que algemada,
salvei meu coração.
Perdi os anos na selva,
aprendizado duro e cruel.
Mas, poupando-me da relva,
transformei-me num corcel.

Venci fortes inimigos
com palavras de carinho.
Resgatei méritos antigos,
perdidos por desalinho.

A batalha mais complicada
- pela qual fui premiada -
venci nos últimos tempos:
entendi que a vida é curta,
não vale contra mim nenhuma luta
que não seja perdoar para viver.







Minha Cor-de-Rosa
Ilka Vieira

Preciso resgatar a minha Cor-de-Rosa!
Perdi-a no decorrer da vida
Tornei-me nebulosa,
Fazendo-me fortalecida.

Fui trancando o glamour
Abrindo a face valente
Apagando meu abajour,
Fiz-me inevidente.

Deixando a jarra vazia sobre a mesa,
Flores ao relento pediam-me moradia.
Saindo das paixões à francesa,
Perdi a noção de companhia.

Desmarcando parcerias de dança,
Esqueci como dançar...
O silêncio foi marcando o descompasso
Não dancei... não vi o dia raiar.

Hoje, a farda impecável
Faz-se mais feia do que a roupa desbotada.
O dedo indicador ordenável
Impulsiona minha alma delicada.

Agora entendo:
Vão-se as responsabilidades exageradas
De nada vale a vida ou vale quase nada,
Se a minha cor-mulher está tão recolhida
Se a minha cor-de-rosa está descolorida.

Que venha o meu pôr-de-cor,
Renascerei...
Que caiam as pétalas,
Brotarei, sei que brotarei!...























ÚLTIMO ATO
Ilka Vieira

... E o peito embutiu o som em si
A melodia findou chorando em dó
Era tarde, passou a lua, não a vi
Borrei de red o blue, noite em pó.

Tic-tac , pêndulo entre mim e o vão
Paisagens de outono traçando destino
Despi a alma em voto de comunhão
Corpo presente sem tom de figurino.

Já havia cinzas, mas acendi as velas
No passo lento minha estrela apagou
Criei por mim minhas próprias celas
Impossível fugir da morte se ela chegou.

Beijou-me a vida, despediu-se de mim
Como num voo brando soltei a mão
Senti a suave cobertura de jasmim
E no último ato afaguei meu coração.







Passageiros do Meu Coração
Ilka Vieira

Ainda guardo comigo os amores que por mim passaram.
Alguns deixaram flores, outros deixaram dores
mas todos foram passageiros do meu coração.

Uma boa parte deles chamo de achado
outra parte, prefiro denominar como perdido... extraviado
mas todos provaram da minha fartura de sentimentos.

Aqueles que viraram o meu barco,
certamente souberam da minha sobrevivência.
Os que me resgataram, obviamente receberam lição de recomeço.

Regouguei frente a frente com muitos deles
não por ira, mas por tese.

Em circunstâncias raras,
permiti-lhes fazer sangrar
minha solidez, descuidei.

Alimentei os famintos de espírito
aumentei a sede dos apressados
dei corda aos dissimulados
salvei das minhas maldades
os generosos,
fugindo...

Acendi o fogo dos resignados
desregrei os perfeitos
enrijeci os pegajosos
lapidei os brutos... embruteci os polidos
converti em amigos os mais antigos
madurei... deitei à sombra de histórias
cancelei meus projetos amorosos...
... e, por pouco não me sobro.

Já ia me fazer dormir,
mas optei por relembrar.








Contrapartida
Ilka Vieira

Não me digas que já é tarde.
Guardei-me para o teu regresso
Em mim, a força do sol ainda arde,
Não deixo que a brisa sopre, confesso!

Com tempo, fui talhando-me com maestria.
Maturei, retocando princípios e passados;
Cada traço, iluminado pela luz da poesia,
Despiu de dor os sonhos mais delicados.

Equilibrei, nivelando o medo com a bravura,
Ora protegendo-me no calor do teu abraço,
Ora lutando contra minha própria loucura,
Mas recolhendo vestígios em estilhaço.

Suavizei minha pele com água do lago.
Perfumei-a com essência do puro jasmim.
Lembrando as nuanças do teu afago,
Compus melodia para o nosso festim.

Selei meu ciúme emprestando tua paisagem;
Sem céu, sem mar, preparei a terra,
Há de chover, brotar, não é visagem,
Algumas nuvens já dançam lá na serra.

Eis-me aqui inteira após tantos anos;
Refeita, serena, renascida, enfim.
Meu olhar acena para o teu sem danos...
Mas tu, o que guardaste pra mim?






Alma Viva
Ilka Vieira

Quero da vida o encontro com a magia da arte
Colher dela a sabedoria insigne do silêncio
Sair ilibada em passeio poético por toda parte
Soprando pétalas do meu coração "florêncio"

Quero da vida vagar lúcida sentindo-me louca
Chamando quem não conheço à luz da natureza
Na troca de prosa sem pressa ou de pressa pouca
Compartilhar a ópera silvestre em sua grandeza

Quero da vida envelhecer jovem sem esmolar cuidados
Repintar sonho desfeito, rir de sonho errante
Descalçar meus pés e deixá-los seguir descasados
Na brincadeira entre passado e impulsos doravante

Quero da vida rejuvenescer velha à brisa do mar
Tornar-me onda, passarada, barco à deriva...
Poeta triste, morto e ressuscitado para amar
Ilha habitada, corpo aquecido, Alma Viva !








Confissão
Ilka Vieira

Chega próximo, ouve o choro dos meus segredos...
Circulam em torno d'alma cansados de se guardar...
Protegendo-me da lama, escondem-se nos rochedos,
Vestem-se de virtudes, cobrem meu descaminhar...

Vem, encosta tua face leiga no meu peito,
Deixa que me revele com muita coragem...
Perdi as rédeas, não tem mais jeito,
Exponho hoje minha armazenagem...

Eu sei, vais sofrer ouvindo meus segredos,
Erros cometidos no decorrer do abandono...
Enquanto a primavera cobria teus arvoredos,
Eu os despia, acelerando teu outono...

Já que vieste sondar minhas rotinas,
Não sei se te peço ou se te devo perdão...
Se minha sentença és tu quem a assinas,
Leva de brinde minha ousada confissão!









Desfecho
Ilka Vieira

No árduo momento da partida
Reguei flores esparzindo aromas
Porta aberta, minh’alma sem saída
Olhar perdido buscando sintomas.

Incôndita, arrastei o peso do fracasso
Fiel ao sigilo da mente na escuta
Ainda suplicaria um último abraço
Se assim fosse revista a minha luta.

Tropecei no tapete já desbotado
Procurando cheiros do prazer
Mas nem ele se fizera meu aliado
Tudo incentivava o meu fenecer.

Fechei cortinas trancando a vida
Saindo da casa senti um vazio
Voltei pra cama arrependida
Fruta rejeitada pelo teu fastio.






Paisagem de Amor
Ilka Vieira

Não há como empalidecer...
São cores pintadas pelas retinas
Pincéis bailantes do amanhecer
Traçando sonhos sem neblinas

Não há como desperceber...
São belezas expressivas a convidar
Advindas da vida sem merecer...
Ledices que a alma sabe desnudar

Não há como fugir...
São flores meninas criando raízes
Perianto ansioso a se definir
Cenário de magia sem deslizes

Não há como afogar...
São águas sem profundidade
Repouso de pássaros em seu banhar
Espelho de lua na flor da idade

Não há como morrer...
São sinais de vida que adiam a morte
Serenidade dos EUS querendo viver
Renascimento do amor encontrando seu norte.








Descaminho
Ilka Vieira

As chuvas hão de lavar os teus ressentimentos
A noite extensiva recolherá a fartura de queixas
Caminhante, escutarás a voz dos meus lamentos
Pensarás nos sonhos que partindo me deixas

Admito, errei descaminhando o corpo da alma
E ele, tão fraco e vaidoso, roubou dela o ego
Na carícia animal, vi que o amor não espalma
Perdoa, meu amor, este âmago tão cego!

A chance que te peço é o reaprendizado
Já vi, não se mata sede com água salgada
Varro meu futuro se te tornares meu passado
Enfim, saberei distinguir o beco da estrada

Não esperes que a manhã decida por ti
A razão é tão clara, mas inimiga da sorte
Meu dossiê desprezível, o excluí daqui
Refaz comigo a vida que desvia da morte.




Recriando-se Mulher
Ilka Vieira

De si, foi tirando sem comedir
Peças que compunham seu tormento:
Parte delas, deixando descolorir...
Outras, esquecidas ao relento.

A alegria não brotava nenhum sorriso
A segurança dependia de respostas
Sonhos rabiscando todo o paraíso
Que um dia a feriu pelas costas.

Quando o sinal chega tarde demais
Faz-se escuro quando ainda é dia
Não há janela que esconda os varais
Sustentando tantas peças em agonia.

Sobrando-lhe a tristeza de nada sobrar
Apegou-se à meta do “bem-se-quer”
Ergueu-se na força de se recriar
Fez-se gigante... INATINGÍVEL MULHER!




Viagem pela PAZ
Ilka Vieira

Vieste comigo, minha linda criança
Nesta viagem de amor e fé
Contemplando o que a paz alcança
Entre o céu, a terra e a maré

Ouça a voz da harmonia descrevendo
Este passeio que nos parece tão distante
Próximo da alma que não o está vendo
Porque olha em torno de si, circulante

Sinta a pureza da brisa despoluída
Conservada pelo zelo de quem a conhece
Isto é lição da rica qualidade de vida
A natureza produz para quem a merece

Toque a calmaria das águas com ternura
Ela lhe responderá ao carinho com frescor
O homem pode tornar isto mais que aventura
Doando.-se a vida como seu regador

Observe, minha linda criança
Lá na linha obscura do horizonte
É o futuro, vá, afaga a tua herança
Não deixe que o hoje a desaponte.



Solidão em Bando
Ilka Vieira

A criança negra não entrou na roda
Fitou brancas crianças na roda-viva
Brincou com as próprias mãos algemadas
Sorriu da alegria alheia sem expectativa
Criança briga e brigaram em branco
Partiu-se a ciranda discriminativa
Negra criança viu tudo do banco
Viu solidão em bando desfazer comitiva.



Quem Sou
Ilka Vieira

Sempre me vês com a face sorridente
Aspirando ou plantando flores belas
Não sabes que nesta alegria torrente
Plantei e não colhi muitas delas.

Quando me encontras  adornada
Com olhares de quem vai se dar
Não sabes que sou indomada
Virei fera no meu derivar.

Quando me sentires escondida
Guardada no meu eu profundo
Entendas minh’alma recolhida
Ela chora as dores do mundo.

Quando me pegares sonhando
Banhada pela minha poesia
Só sintas o que estou criando
Não acordes a minha magia.

Quando me vires quase nua
Descortinando o nosso leito
Faze de mim apenas a lua
Despindo o coração do peito

Se descobrires o meu lado criança
Brinca comigo nos contos de fadas
Compartilha comigo a esperança
De ainda ser um dia muito amada. 




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ILKA VIEIRA nasceu na cidade do  Rio de Janeiro/RJ em 15 de junho de 1954, graduou-se em Administração de Empresas, trabalhando por 31 anos na área hospitalar de uma mesma empresa, onde se aposentou.

Na área literária, mostra o seu indiscutível talento já a partir dos títulos que dá aos seus escritos, intensos na verve de abordagem, altamente criativos no gestual das palavras. Fala da dor e do amor cantados por tantos poetas, porém o faz com personalíssimas cores, trabalhando os textos com acuidade, bom gosto e requinte, como seus olhos veem o mundo e sua alma borda os sentimentos.

Apaixonada pela obra poética de Fernando Pessoa, ela diz:

Ah, Fernando quando um dia eu e for,
Em testamento já declaro meu desejo:
Que sejam os olhos meus a se pôr
Nas páginas pessoanas onde hoje versejo!

De uma família numerosa, pais e suas seis irmãs, venera a convicção vinda da infância de que "... o que aproxima a família é a voz do coração."

Esta é ILKA VIEIRA, Patronesse do Blogue Expressão Mulher-EM: ser humano, poeta e mulher muito além das palavras.
Faleceu na cidade do Rio de Janeiro/RJ em 19 de setembro de 2014.



Rio de Janeiro/RJ, 19 de setembro de 2015.







2 comentários:

  1. Quanto se pode conhecer da nossa Ilka Vieira na riqueza de seus versos! A criança que procura em si mesma para ajudá-la a sorrir, a garra no persistir, a austeridade consigo mesma, o desejo imenso de amar e ser amada, de expor seus segredos a quem se dispusesse a ouvi-la e, quem sabe desnudar-se inteira para fugir das mágoas. Seus versos retratam uma incansável busca de seu eu mais profundo,de desejos reprimidos e sonhos que desejava abraçar. Ilka, de onde estiver, receba meu carinho e minha admiração.

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  2. Ilka, amiga e poeta querida, mesmo nesta sua ausência aparente, sei da sua presença, por isso falo com você ao vivo e em cores. O seu legado é de tamanha riqueza e beleza que as palavras perdem a força para expressar o efeito que tem em nossas almas. Só posso mesmo me curvar diante de você e agradecer. Agradecer a sua sensibilidade, agradecer a imensidão do seu amor, agradecer a sua vida em minha vida. Obrigada, muito obrigada!
    Graças a Deus que temos a nossa querida e eterna amiga, Regina, que faz deste blog um espaço cultural completo, com muito requinte e sensibilidade.
    Meninas, recebam o meu abraço cheinho de amor, de respeito e de admiração!

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