Metamorfose
Maria João Brito de Sousa
Tenho alma de papoila...
mal se toca, mal se agita,
caem-lhe as pétalas todas
e fica morta, despida...
outras vezes, a papoila,
só por força do dever,
transforma-se em rocha dura,
resiste à dor, à tortura,
nada a pode demover!
Mas, rocha bruta ou papoila,
no palco fica a mulher;
Eu, metamorfoseada
em anjo ou alma-penada,
ora papoila, ora fraga,
conforme vos convier...
Touro de Morte
Maria João Brito de Sousa
O soneto Touro de Morte foi dedicado a todos os touros que foram - e, infelizmente, ainda vão sendo - mortos para "divertimento" humano e à Associação ANIMAL, que luta pelos direitos desses e doutros touros, bem como por todos os animais não humanos.
Cego de medo e dor, ele nada vê.
Confuso e humilhado, o bicho é cego...
Roubam-lhe a liberdade, o aconchego
De amar a vida sem saber porquê...
Corre o sangue no dorso e já não é
Da natureza o seu desassossego...
Da vida que viveu com estranho apego
Pressente o culminar... [Olé, olé!]
O público, em histeria colectiva,
Estremece inebriado e grita: -Viva!
Mas é morte que quer e a morte vem...
Ajoelhou o touro e vai morrendo
E eu, que nada fiz mas compreendo,
Ajoelho com ele, morro também...
Olé...
Um Voo de Pardal
Maria João Brito de Sousa
Eu, que tanto o conheço, sei tão mal
As razões de voar do próprio engenho…
Sinto que é muito meu, mas sei-o estranho
E chego a acreditá-lo original…
Por vezes, volitando, é um pardal
Que por mim passa a ver se eu o detenho,
Sabendo que eu, sem asas, não desdenho
Um timorato adejo ocasional…
E logo as mãos me voam no teclado
Por causa de um pardal me ter tentado,
Por obra de tão parca tentação…
É caso pr'a dizer que “haver voado”
Pede alheia vontade… outro “culpado”
Das coisas que não estão na nossa mão…
A Gestação do Poema
Maria João Brito de Sousa
Onde o poema me ferve, o verso é brando;
Suavemente desliza em rota certa
Tal qual fora encontrada a porta aberta
Da prisão que ao tolhê-lo o foi calando
Ninguém lhe tente impor voz de comando
Pois só a ele lhe coube estar alerta
Se partiu, decidido, à descoberta
D`uma hora em que ninguém diz como ou quando
Suavemente partiu… mas foi ficando
E só sei que o criei porque é criando
Que sinto que viver valeu a pena
E que acredito, não acreditando,
Poder ir muito além do que, sonhando,
Se alcança na voragem de um poema…
Soneto Manuscrito
Maria João Brito de Sousa
Debulho-me em palavras… nunca choro
Se não estes sinais de tinta preta
Que traço, quase sempre em linha recta,
Cujo rumo me escapa e nem decoro…
Se pelas gargalhadas me demoro,
De novo outros sinais, traçando a meta,
Se impõem mal o riso me intercepta
E, atrás, surgirão mais, fazendo coro…
Se sinto – e tudo sinto intensamente! –,
São aos milhares, pulando, à minha frente,
Esses pequenos signos do sentir
Que imprimem no papel, profusamente,
As mesmas emoções que tanta gente,
Sem espaço pr`ás viver, deixou fugir…
As Motivações do Puzzle
Maria João Brito de Sousa
Se o sol se não deitasse, a cada dia,
Exactamente à hora em que se põe
O mesmo imenso azul que nos propõe
Metade desse ciclo de harmonia;
Se a noite não nascesse em sintonia
Nem nos trouxesse quanto pressupõe
De sonho, enquanto o tempo a decompõe
Numa abóbada escura e luzidia…
Um jogo de ideais! Por que me interessa
Se o sinto, o vejo e nunca tive pressa
Em chegar ao final desta jornada?
Mas, retomando o puzzle, peça a peça,
Se esta não se encaixar, pegarei nessa!
[mesmo que me não sirva para nada…]
Soneto sobre Tela
Maria João Brito de Sousa
Perscruto estas palavras que burilo
Com olhos de embotado bisturi
Já meio gasto de medir-se aqui,
D`ir-se encontrando nisto e mais naquilo,
Mas nunca farta, reproduzo ao quilo
Exactamente as coisas que senti
Só pr`afirmar-vos que vos não menti,
Nem nunca poderia permiti-lo...
Agora as letras vão cedendo espaço
À cor das pinceladas do meu traço
E o poema, a sorrir, condescendente,
Exibe a cor das tintas que desfaço
Sobre os godés deste soneto escasso
Pr`a tela que se preze... ou se apresente...
A Ilha
Maria João Brito de Sousa
Serei sempre uma ilha de paixões
Rodeada de mundo a toda a volta...
Deserta por decreto da revolta
Que me encheu de lagoas e vulcões...
Em mim os animais são aos milhões!
Procriam sobre mim à rédea solta
Pois, sobre a estranha lava que me solda,
Lavrei um verde manto de ilusões...
E neste Paraíso em que me dou,
Germinam embondeiros, brancos lírios,
Sou Arca de Noé de âncora presa!
Talvez alguém duvide do que sou,
Talvez seja mais um dos meus delírios,
Talvez seja uma forma de defesa...
Amores que Nunca Mudam
Maria João Brito de Sousa
Serei sempre obstinada em meus afectos!
Aquilo em que acredito, nunca muda
E não há teoria que me iluda
No tocante aos amores que são concretos
Eu amo esta família construída
Sobre alicerces de aço bem temperado
Pois se algum deles partir será chorado
E eu… cada vez mais pobre nesta vida
São animais, bem sei… são cães, são gatos,
São pombos que deixaram de voar,
São pedaços de mim que a mim voltaram,
Mas nunca foram meros artefactos
Ou “peças” que eu pudesse descartar
Quando as conveniências mo ditaram…
A Justificação de Uma Flor
Maria João Brito de Sousa
Das pétalas me irrompe uma só pressa;
Estender-me, transparente, intacta e pura,
Entre outras flores que a morte não segura
Antes que a Primavera se despeça…
Não sei se é pertinente, ou vos interessa,
Que fale de quem sou, nesta loucura
Em mim, tornada “eterna enquanto dura”,
Mas que, em murchando, em mim se reconheça…
Interesse, ou não, só nela me defino!
Sou ponte a florescer sobre um destino
Que pode, ou não, ser meu… pouco me importa!
Persigo-me a mim mesma em desatino
E só sei serenar se me imagino
Comemorando a flor, depois de morta…
Nasce, Poesia!
Maria João Brito de Sousa
Porque o que sou
me não cabe nas mãos fechadas,
escorrem-me,
por entre os dedos,
estas sobras
do que recuso transformar
em gesto de troca,
artigo de compra e venda,
alimento, embriaguez, culto, ritual
e que és tu, Poesia...
divinizam-te, alguns,
o corpo que não tens
no altar que insistes em não ser,
mas sei-te no cerne de todas as coisas,
escorrendo, inevitavelmente,
de todos os poros, por todas as frestas,
limpa, lúcida, viva, inexplicada…
cantas, ainda,
onde a esperança morreu,
ressoas no vácuo, apesar de inaudível,
desdobras-te
em invisibilidades e vislumbres,
acendes-te, sublime,
no temor de cada escuridão…
Inútil – ou não… -, nasce, Poesia!
(Des)Armados
Maria João Brito de Sousa
Armados da certeza que não morre,
Seremos sempre os filhos da verdade
E, sobre esta injustiça que nos cobre,
Semearemos cravos de vontade!
Armados, desarmados… como seja
Próprio ao desenrolar deste momento,
Anularemos jugo, insulto, inveja,
Daqueles que nos roubaram o sustento!
Cairão sob as armas que não temos
Quantos acreditarem que os tememos
E uns tantos que se vendem ao poder
Porque amanhã decerto venceremos
E (des)armados vamos porque cremos
Que quem de amor se armou, tem de vencer!
Minha Terra
Maria João Brito de Sousa
Quem te estendeu, minha terra,
Sobre algas, areia e mar
Como quem chega e descerra
Reposteiros de luar?
Quem te polvilhou desse ouro
Das searas nas planuras
Como se fosses tesouro
Que tombasse das alturas?
Quem te desenhou assim,
De um traço firme e seguro,
Florida como um jardim
Sob um céu de azul tão puro?
Nas praias, rios e montanhas
Que, mesmo pequena, abraças,
Sorriste à graça tamanha
De abraçar todas as raças
Quem te estendeu, terra minha,
Sobre algas, mar e areia,
Tanto trigo e tanta vinha
Nos braços de cada aldeia?
Quem de ouro te polvilhou
As planuras do regaço
Quando o sol te iluminou
Desde as lonjuras do espaço?
Nas aldeias, nas cidades
Que de ti foram nascendo
Desabrocham as vontades
Cansadas de ir-se escondendo
E, quando a fome chegar
Quando os seus braços se erguerem,
Quando a voz se lhes soltar
Para exigir quanto querem
Da minha terra dourada,
Toda rios, toda montanhas,
Virão vozes revoltadas
De gentes brancas, castanhas,
De gentes de tantas cores
Como as flores da minha terra
De novo empunhando as flores
Como os soldados na guerra!
Ó minha terra-promessa
Da pressa que trago em mim,
Não há poder que me impeça
De cantar-te até ao fim!
Metáfora – O Manifesto
Maria João Brito de Sousa
Eu digo-te
que o sol floresce limpo
sobre o estrume das aparências
e que as palavras são casas nas cidades da voz
digo-te
que as ruas são mãos a repousar,
que as coisas de pedra são canções
e que as canções são luas, de tão brancas…
dir-te-ei,
vez por outra,
que as plantas são mulheres e homens
cansados da colheita improvável,
que os dias – todos eles –
são movimento,
que as noites são o esconderijo
dos sonhos à espera de acordar
e que os muros são pontes entre agora e depois
falar-te-ei de passos sem distância,
de espaços sem medida,
de memórias sem tempo
e de gente sem medo de morrer,
mas jamais me ouvirás falar da renúncia
enquanto o murmúrio me for permitido
na cidade da voz libertada
Também a metáfora se come, se bebe
e não sabe render-se enquanto viva.
Nas Teias que O Luar Tece
Maria João Brito de Sousa
Nas teias que o luar tece
À noite, sobre os pinhais,
Vez por outra me acontece
Ver longe e ver muito mais
Mas, de quanto me aparece,
Nunca vi – nunca, jamais! –,
Nas teias que o luar tece,
Coisas que fossem banais…
Vi segredos não mostrados,
Formulários por escrever
Atrás de mil cadeados
Que ninguém vai conceber
Em espaços desencontrados
De enigmas por resolver,
Tão vagamente esboçados
Que eu mal podia entender
Por que me foram mostrados,
Se não pedi para os ver…
Vi, nessas teias benditas
Que o luar teceu pr`a mim,
As mil coisas nunca escritas
Por mãos que fossem assim…
Vi verdades, nessas teias
Que a lua ali quis deixar
Mas, depois de as ver, deixei-as
Pr`a quem as soubesse achar…
Vi letras de prata pura
Dançando sobre os pinheiros
Na mesma tenra candura
Dos seus rebentos primeiros…
Vi a vida que começa,
Vi o começo da vida!
Fixei-a, peça por peça,
Sem me apressar na partida
E, como alguém que tropeça
Em vontade empedernida,
Vi tudo a nascer, sem pressa,
Ou foi-me a vista traída,
Tal qual fosse apenas essa
A razão de eu estar perdida,
Sem certeza, nem promessa,
De encontrar uma saída…
Nas teias que a noite tece
Ao luar, sobre os pinhais,
Vez por outra me apetece
Ver e ouvir muito mais…
Mas, a quanto me aparece,
Nunca pus, nem fiz, jamais,
Como a tantos acontece,
Meras perguntas banais…
Quatro Sonetilhos a Catarina Eufémia
Maria João Brito de Sousa
I
A ceifeira, nos trigais,
Traz nas mãos sonhos negados
E os dedos bem calejados
De quem já ceifou demais…
Flancos doendo, agachados,
Entre mil gestos iguais
Evoca uns pontos errados
Destas questões laborais…
Essa ceifeira não chora,
Mas começa a acreditar
Que pode bem estar na hora
De que quem assim a explora
Também se deva agachar
Tal como ela o faz agora…
II
Já não sonha, as dores são tantas
Que só pode trabalhar
Se as abafa nas mil mantas
Que inventa pr`ás disfarçar…
Faltam horas, umas quantas,
Pr`á ordem de “despegar”
E as ceifeiras, como as plantas,
Podem, às tantas, murchar…
Vai longa a jorna, ceifeira!
Já esgotada da labuta,
Tão no auge da canseira
Depois de uma tarde inteira,
Pensa enfim: - Antes a luta
Que viver desta maneira!
III
Reúne os seus companheiros
Da labuta dos trigais,
Fala dos dias inteiros
Sol a sol, sem poder mais,
Lembra a escassez dos dinheiros,
Diz que os patrões, sendo iguais,
Os tratam como aos carneiros
Que abundam nos seus currais…
É dessa reunião,
Que lhes nasce, firmemente,
Uma justa decisão
De exigirem mais do pão
Que é devido a toda a gente
Mas só não falta ao patrão…
IV
Vão em grupo e vão em paz
Falar da fome que sentem
Pois pela fome se faz
Quanto os fartos não consentem…
Encontram o capataz,
Dizem ter fome… e não mentem,
Só o não sabem capaz
De matar os que o enfrentem…
Soa um disparo… a ceifeira
Cai por terra; - O que se passa?
Catarina, à dianteira,
Jaz morta sobre uma leira
Por ter negado a mordaça
De humilhar-se a vida inteira!
Já vai sendo um estranho hábito meu, este que me prende as mãos e me não deixa escrever sempre que uma coisa me é muito grata... é para mim uma enorme honra ver poemas meus publicados neste magnífico espaço de poesia e intemporalidade que é o Expressão Mulher.
ResponderExcluirDeixo o maior dos meus abraços!
Maria João Brito de Sousa
Quando fui convidado para dar o chute inicial da sublime " EXPRESSÃO MULHER ", com magistral passe lusófono de Fernando Pessoa, nem imaginava o quão grandiosa seria essa tarefa, porque, afinal, estamos diante das maiores representantes femininas da literatura e da imagem plástica atual, e reverenciá-las era o mínimo que eu poderia fazer. Portanto, reiterando o meu carinho, estima e admiração por vocês " MULHERES " que aqui desfilam emoções e criatividade, deixo o meu desejo de que todas, sem exceção, continuem essa onírica caminhada rumo ao belo, que é manifestar o conteúdo que reveste a luminosa alma de cada uma de vocês. Parabéns - sempre. Um beijo nos seus belíssimos corações - Luiz Poeta ( Luiz Gilberto de Barros ) - poeta, irmão de alma e Presidente da Academia Pan-Americana de Letras e Artes
ResponderExcluir
ResponderExcluire vivam as Mulheres com Maiuscula...
à tua beleza seja de que parâmetros
e ao saber ser...
sabes que não tenho jeito pra estas coisa...
feliz fim de semana~_ e parabens também
Finalmente, uma das maiores Poetisas vivas deste país, que tão pouco divulgada tem sido, captou a atenção deste espaço tão importante.
ResponderExcluirComo pessoa admirável, como Mulher de uma sensibilidade e talento invejáveis, era já tempo de receber tão merecida atenção.
Para se falar de Mulheres de coragem na poesia como na vida, é incontornável o nome de Maria João Brito Sousa, a quem endereço o meu mais carinhoso e sincero aplauso, devidamente emoldurado com um respeitoso abraço de admiração!
Carlos Fragata
Fico muito honrada por ter o enorme privilégio da amizade da Maria João, por quem tenho uma enorme admiração como uma das maiores poetisas que conheço, como pela pessoa admirável e amiga que é.
ResponderExcluirParabéns para a João por ter um lugar de destaque neste espaço e que é muito merecido pelo talento que ela tem bem comprovado pela qualidade dos seus poemas.
Parabéns Maria João!
Beijinhos
Maria Dulce Saldanha
Sem dúvida, uma poetisa brilhante cujos poemas, sobretudo sonetos, são duma qualidade inexcedível. Poetisa que muito admiro pelo seu talento, por ser quem é, pelo prazer que me dá, ler a sua poesia, e que,merecidamente, foi reconhecida por este importante espaço.
ResponderExcluirPara a Maria João Brito e Sousa, o meu carinho e a alegria de a ver subir mais este degrau, que há muito deveria ter sido ultrapassado. Tenho esperança que isso irá acontecer e passará a ser considerada pelo real valor que tem como Poetisa.
Cremilde Vieira da Cruz
Manifesto-me de novo impressionado pela qualidade da poesia agora divulgada neste actualização. Na realidade, quantos como eu, que anseiam ver publicada na net poética actual poesia que nos encante e encha alma, virão aqui beber a esta fonte promissora.
ResponderExcluirE assim, cumpre-me voltar a felicitar Regina Coeli e Ilka Vieira, as poetas que souberam meter mãos à obra e fazer deste blog um local de real serviço à causa da poesia e, por via dela, da cultura em geral em língua portuguesa, para nosso orgulho; a terceira mais falada em todo o mundo.
Eugénio de Sá
Fiquei muito muito feliz, ao ver o reconhecimento merecido a Maria João Brito de Sousa, de quem tenho o previlégio de ser amiga, e cujos poemas são maravilhosos, plenos de arte e sentimento. Um reconhecimento que em minha opinião já deveria ter ocorrido há muito mais tempo.
ResponderExcluirMaria João, um grande beijinho com muito muito carinho e que sejas reconhecida sempre mais e mais, porque o teu real talento e valor têm que ser ainda mais divulgados e sempre, GRANDE POETISA.
Helena Fragoso
É com imenso prazer que vejo divulgada a poesia da Maria João neste importante
ResponderExcluirespaço.
Considero-a uma das grandes poetisas portuguesas.
Admiro a sua obra poética e muito em especial a excelência dos seus sonetos.
Parabéns, Maria João
Um grande beijinho
Landa
Poeta Maria João, está sendo um grande prazer conhecer sua sala no EM e dentro dela sentir o perfume da sua poesia tão expressiva. Parabéns e um carinhoso abraço da Raquel Nonatto
ResponderExcluir