Creio que se o ato de ler oferece a apreensão do mundo,
o de escrever ultrapassa os limites de uma percepção da vida.
Escrever pressupõe um dinamismo próprio do sujeito da escrita, proporcionando-lhe a sua auto-inscrição no interior do mundo.
Na maioria das vezes escrever doi, mas depois do texto escrito
é possível apaziguar um pouco a dor, um pouco...
é possível apaziguar um pouco a dor, um pouco...
Escrever pode ser uma espécie de vingança, um desafio,
um modo de ferir o silêncio imposto,
ou ainda, um gesto de teimosa esperança.
E afirmo sempre que a nossa escrevivência não pode ser lida como histórias para “ninar os da casa grande”
e sim para incomodá-los em seus sonos injustos.
Conceição Evaristo
Amigas
Conceição Evaristo
Amigas,
Trago na palma
das mãos,
não somente a alma,
mas um rubro calo,
viva cicatriz,
do árduo
refazer de mim.
Trago na palma
das mãos
a pedra retirada
do meio do caminho.
E quando o meu pulso dobra
sob o peso da rocha
e os meus dedos murcham
feito a flor macerada
pelos distraídos pés
dos caminhantes,
eu já não
grito mais.
Finjo a não dor.
Tenho a calma
de uma velha mulher
recolhendo seus restantes
pedaços.
E com o cuspo
grosso de sua saliva,
uma mistura agridoce,
a deusa artesã cola, recola,
lima e nina o seu corpo
mil partido. E se refaz inteira
por entre a áspera intempérie
dos dias.
De Mãe
Conceição Evaristo
O cuidado de minha poesia
aprendi foi de mãe,
mulher de pôr reparo nas coisas,
e de assuntar a vida.
A brandura de minha fala
na violência de meus ditos
ganhei de mãe,
mulher prenhe de dizeres,
fecundados na boca do mundo.
Foi de mãe todo o meu tesouro
veio dela todo o meu ganho
mulher sapiência, yabá,
do fogo tirava água
do pranto criava consolo.
Foi de mãe esse meio riso
dado para esconder
alegria inteira
e essa fé desconfiada,
pois, quando se anda descalço
cada dedo olha a estrada.
Foi mãe que me descegou
para os cantos milagreiros da vida
apontando-me o fogo disfarçado
em cinzas e a agulha do
tempo movendo no palheiro.
Foi mãe que me fez sentir
as flores amassadas
debaixo das pedras
os corpos vazios
rente às calçadas
e me ensinou,
insisto, foi ela
a fazer da palavra
artifício
arte e ofício
do meu canto
da minha fala.
A Noite que Não Adormece nos Olhos das Mulheres
Conceição Evaristo
(Em memória de Beatriz Nascimento)
A noite não adormece
nos olhos das mulheres,
a lua fêmea, semelhante nossa,
em vigília atenta vigia
a nossa memória.
A noite não adormece
nos olhos das mulheres,
há mais olhos que sono
onde lágrimas suspensas
virgulam o lapso
de nossas molhadas lembranças.
A noite não adormece
nos olhos das mulheres,
vaginas abertas
retêm e expulsam a vida
donde Ainás, Nzingas, Ngambeles
e outras meninas luas
afastam delas e de nós
os nossos cálices de lágrimas.
A noite não adormecerá
Jamais nos olhos das fêmeas,
pois do nosso sangue-mulher
de nosso líquido lembradiço
em cada gota que jorra
um fio invisível e tônico
pacientemente cose a rede
de nossa milenar resistência.
-Fêmea-Fênix
Conceição Evaristo
(Para Léa Garcia)
Navego-me eu–mulher e não temo,
sei da falsa maciez das águas
e quando o receio
me busca, não temo o medo,
sei que posso me deslizar
nas pedras e me sair ilesa,
com o corpo marcado pelo olor
da lama.
Abraso-me eu-mulher e não temo,
sei do inebriante calor da queima
e quando o temor
me visita, não temo o receio,
sei que posso me lançar ao fogo
e da fogueira me sair inunda,
com o corpo ameigado pelo odor
da chama.
Deserto-me eu-mulher e não temo,
sei do cativante vazio da miragem,
e quando o pavor
em mim aloja, não temo o medo,
sei que posso me fundir ao só,
e em solo ressurgir inteira
com o corpo banhado pelo suor
da faina.
Vivifico-me eu-mulher e teimo,
na vital carícia de meu cio,
na cálida coragem de meu corpo,
no infindo laço da vida,
que jaz em mim
e renasce flor fecunda.
Vivifico-me eu-mulher.
Fêmea. Fênix. Eu fecundo.
Vozes-Mulheres
Conceição Evaristo
A voz de minha bisavó
ecoou criança
nos porões do navio.
Ecoou lamentos
de uma infância perdida.
A voz de minha avó
ecoou obediência
aos brancos-donos de tudo.
A voz de minha mãe
ecoou baixinho revolta
no fundo das cozinhas alheias
debaixo das trouxas
roupagens sujas dos brancos
pelo caminho empoeirado
rumo à favela.
A minha voz ainda
ecoa versos perplexos
com rimas de sangue
e
fome.
A voz de minha filha
recorre todas as nossas vozes
recolhe em si
as vozes mudas caladas
engasgadas nas gargantas.
A voz de minha filha
recolhe em si
a fala e o ato.
O ontem – o hoje – o agora.
Na voz de minha filha
se fará ouvir a ressonância
O eco da vida-liberdade.
Do Feto que em Mim Brota
Conceição Evaristo
Do meu corpo
o feto ossificado
há de brotar um dia.
Ele apenas se escondeu
nos vãos de minhas
sofridas entranhas,
enquanto eu de soslaio
assunto a brutalidade
do tempo.
Do meu olhar
a flor petrificada
em meu íntimo solo
contempla a distração de muitos
e balbucia uma estranha fala,
mas, eu sei qualquer dizer,
pois, quem convive
com os forçados à morte,
decifra todos os sinais
e sabe quando o silêncio,
julgado eterno,
está para ser rompido.
Da Menina, a Pipa
Conceição Evaristo
Da menina a pipa
e a bola da vez
e quando a sua íntima
pele, macia seda, brincava
no céu descoberto da rua
um barbante áspero,
másculo cerol, cruel
rompeu a tênue linha
da pipa-borboleta da menina.
E quando o papel
seda esgarçada
da menina
estilhaçou-se entre
as pedras da calçada
a menina rolou
entre a dor
e o abandono.
E depois, sempre dilacerada,
a menina expulsou de si
uma boneca ensangüentada
que afundou num banheiro
público qualquer.
M e M
Conceição Evaristo
Nos olhos o fogo e o afago
denunciam desejos,
labaredas cozinham
pacientemente a espera.
A mulher quedou-se
e na quietude
encontrou a sua nova veste
que suavemente se desfaz
em corpos iguais
que se roçam.
Maria e Maria,
espelho único,
onde a outra face
é ela e ela.
Frutífera
Conceição Evaristo
- Da solidão do fruto -
De meu corpo ofereço
as minhas frutescências,
casca, polpa, semente.
E vazada de mim mesma
com desmesurada gula
apalpo-me em oferta
a fruta que sou.
Mastigo-me
e encontro o coração
de meu próprio fruto,
caroço aliciado,
a entupir os vazios
de meus entrededos.
- Da partilha do fruto -
De meu corpo ofereço
as minhas frutescências,
e ao leve desejo-roçar
de quem me acolhe,
entrego-me aos suados,
suaves e úmidos gestos
de indistintas mãos e
de indistintos punhos,
pois na maturação da fruta,
em sua casca quase-quase
rompida,
boca proibida não há.
Da Calma e do Silêncio
Conceição Evaristo
Quando eu morder
a palavra,
por favor,
não me apressem,
quero mascar,
rasgar entre os dentes,
a pele, os ossos, o tutano
do verbo,
para assim versejar
o âmago das coisas.
Quando meu olhar
se perder no nada,
por favor,
não me despertem,
quero reter,
no adentro da íris,
a menor sombra,
do ínfimo movimento.
Quando meus pés
abrandarem na marcha,
por favor,
não me forcem.
Caminhar para quê?
Deixem-me quedar,
deixem-me quieta,
na aparente inércia.
Nem todo viandante
anda estradas,
há mundos submersos,
que só o silêncio
da poesia penetra.
Conceição Evaristo in Poemas para recordação e outros movimentos, Belo Horizonte, Nandyala, 2009
A NOITE QUE NÃO ADORMECE NOS OLHOS DAS MULHER: grandes são as suas palavras, poetisa Conceição Evaristo!
ResponderExcluirSinto nos seus versos um passaporte corajoso com destino a luta infindável!
Não mude, Conceição, não mude jamais, pois precisamos de você!
Abraços,
Èmily Bourdon
Que bonita sala, poetisa! Tudo nela inspira alegria e muita esperança!
ResponderExcluir"Deserto-me eu-mulher e não temo,
sei do cativante vazio da miragem,
e quando o pavor
em mim aloja, não temo o medo,
sei que posso me fundir ao só,
e em solo ressurgir inteira
com o corpo banhado pelo suor
da faina."
Mediante a tal coragem, nada resta-me comentar, apenas aprender!
Obrigada, poetisa, suas energias chegaram a mim.
Abraço bem forte de Raquel Nonatto
"Quando eu morder a palavra, por favor, não me apressem, quero mascar..."
ResponderExcluirÉ impressionante o que o verdadeiro poeta faz com os vocábulos. Ele os veste de significâncias mil, cobre-lhes do brilho de jóias raras e ainda lhes acrescenta um perfume que jamais será confundido. Parabéns,Conceição Evaristo! Você e eu vou ficar aqui aplaudindo.
Abraços com carinho. Cleide
Olá, gostaria muito de ter uma ideia sobre o primeiro poema "Amigas", no meu entender se refere dos trabalhos forçados que a autora sofreu no passado, o que não entendi é o titulo. Porque não foi mencionado diretamente a amiga. Gostaria que quem entendeu ou tem outra interpretação me ajudasse. Para um trabalho escolar. Desde já abraço e boa continuação
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