Bendita Cegueira
Benedita de Mello
Não vi ciscar a terra o pintainho,
nem vi no lago espreguiçar-se a lua.
Não vi num ramo balouçar-se o ninho,
nem no dorso do mar vi a falua.
Não vi, em frente, o rumo ao meu caminho...
Vi ruidosa e deserta cada rua...
Meu sêr em toda a parte vi sòzinho...
Não vi o mato verde, a pedra nua...
Mas se não vi a graça de uma flor,
Nem plumagem de pássaro cantor,
Bendigo o que não vi, para bem meu...
Não vi o olhar de quem renega...
E a dor de minha mãe ao ver-me cega...
E o rosto de meu pai, quando morreu...
Treva e Luz
Benedicta de Mello
Quem diz que o cego não vê luz, não pensa
que o Pai dá tudo a todos igualmente;
que entre o vidente e o cego, a diferença
é que um vê tudo, e outro tudo sente.
A luz, com seu poder de onipresença,
a maior invenção do Onipotente,
vários efeitos de uma Causa imensa,
está em toda parte, em toda gente.
Não é por não ver luz que há gente cega;
mas por falhas de um órgão que a conquiste;
isto é verdade que jamais se nega.
Concordo que a cegueira é cruz pesada,
mas se alguém nada vê por não ter vista,
quem tem vista, sem luz, já não vê nada.
Benedicta de Mello
Quem diz que o cego não vê luz, não pensa
que o Pai dá tudo a todos igualmente;
que entre o vidente e o cego, a diferença
é que um vê tudo, e outro tudo sente.
A luz, com seu poder de onipresença,
a maior invenção do Onipotente,
vários efeitos de uma Causa imensa,
está em toda parte, em toda gente.
Não é por não ver luz que há gente cega;
mas por falhas de um órgão que a conquiste;
isto é verdade que jamais se nega.
Concordo que a cegueira é cruz pesada,
mas se alguém nada vê por não ter vista,
quem tem vista, sem luz, já não vê nada.
A Benjamin Constant
Benedita de Mello
Eu te agradeço, Benjamim Constant,
eu te agradeço todo o bem de outrora,
que há tantos anos feito, eu sinto agora
e sentirão os cegos do amanhã.
Tôda a Luz do Saber, fulgente aurora,
com que me batizaste a alma pagã.
E os teus esforços que pusemos fora,
a trôco apenas de promessa vã.
Eu te agradeço as expressões sinceras,
que dia e noite vens me repetindo,
certa de que és ainda o que antes eras.
Eu te agradeço o labutar infindo,
pelo qual te entendi e amei deveras.
E, sendo cega, pude ver-te lindo!
A Cidade de Vicência
Benedita de Mello
Minha cidade pobre e pequenina!
Virgem rezando aos pés do Sirigí!
E’ simples como as flores da campina,
bendita sejas, terra onde eu nasci.
Cedo, ao fechar seu cálice — a bonina,
olhas o sol! E o sol, cheio de si,
beija-te a silhueta alva e franzina.
Bendita sejas, terra em que eu sofri.
Amo-te assim, calcada e reprimida,
pelos donos de engenhos explorada,
sem pão, sem vestes, sem amor, sem vida.
E’ minha a tua dor. São meus os ais
que os teus carros de boi deixam na estrada,
levando o sangue dos canaviais.
Meu Quarto de Banho
Benedita de Mello
O meu quarto de banho era um riacho
que atrás do meu casebre se estendia
e ali formava um cristalino tacho
que a natureza cuidadosa enchia.
Ramalhada por teto, areia em baixo.
E paredes de palha luzidia
retirada ao coqueiro, ainda em cacho,
onde insistente um bem-te-vi mentia...
O cabide era o tronco dos ingás.
Sôbre pedras, nas margens embutidas,
que sabonete bom, raspas de juás!
Esse rio em que virgem me banhei,
por entre as tranças de cipó floridas,
foi bem a pia em que me batizei.
A Açafroeira
Benedita de Mello
Na minha roça, de manhã bem cedo,
pequenita, descalça, mal vestida,
saudada pelo alegre passaredo
eu demandava uma árvore florida.
Era uma açafroeira, a preferida.
Galho por galho, eu sacudia a mêdo.
E uma esteira de flor desiludida
se estendia por baixo do arvoredo.
E desfolhava anciosa, a flor singela;
jogava fora pétalas de estrêla,
guardando os tubos, de sangrenta côr.
Bem sei que era infantil, minha atitude...
Mas lembra os que espezinham a virtude
e devoram o corpo sem amor...
Ingrata
Benedita de Mello
Buganvília, minha amada,
onde pássaros cantores
vinham em tarde rosada
cantar cantigas de amores.
Foi junto ao muro plantada.
Guardei-a dos malfeitores.
Por ser assim, bem cuidada,
dava-me todas as flôres...
E um dia fiquei tão triste,
Por ver que em tudo o que existe,
sempre existe a ingratidão!
Pela parede subiu,
e do outro lado floriu,
distante da minha mão.
Minha Escola
Benedita de Mello
Minha escola! Existia só aquela
no tempo em que estudei. Jovem. Tranqüila.
— Por sabê-la dos cegos — a pupila,
dia por dia se me fêz mais bela.
Podem ir vê-la, porém nunca ouví-la;
torce a verdade, é fina e tagarela,
com falar afetado, ela é singela.
Como eu a soube amar e sei senti-la!
Pintaram-lhe de rosa a alta figura.
Sofre, porém, de mal que não tem cura...
E’ velha já, cem anos faz agora.
Quanta alegria e garbo na fachada!
E lá por dentro, quanta dor guardada!
— Muita gente há feliz assim, por fora.
Meus Versos
Benedita de Mello
Estes meus versos não terão beleza.
São versos pobres e descoloridos;
mortiça chama, sôbre a campa acesa,
resto de instantes sem amor vividos.
Lembram grilhões a que tenho a alma prêsa;
morrão de cinza de meus tempos idos;
foram cantados a embalar tristeza,
não foram feitos para serem lidos.
São versos nossos, meus e teus sòmente.
Verdade nossa, muito nossa e crua.
Não pode ouvi-la, quem amor não sente.
História amarga que não foi contada,
e encerra apenas a minha vida e a tua.
Tu, menos eu, mais eu, sem ti. Mais nada.
Quando
Benedita de Mello
Quando as tardes sentires mais bonitas...
E vires nas manhãs, luzes estranhas...
E os domínios das fôrças infinitas...
te atraírem acima das montanhas...
Quando esqueceres íntimas desditas...
Quando ficares a sonhar façanhas
ou tiveres idéias esquisitas...
Quando perderes e pensar que ganhas...
Quando mentires te fizerem crer,
e tanto em ti teu eu se vá mudando,
que até mais um sentido logres ter...
Quando adorares quem te vai matando...
Quando teu já não for o teu querer,
não há dúvida alguma, — estás AMANDO!...
Impossível
Benedita de Mello
Vive sempre a fugir-me o que procuro,
numa volúpia incrível de ir-se embora;
passa-me n’alma, vôa, pousa fora,
cai-me das mãos se o tenho mais seguro.
Se o alcanço, não o vejo, é muito escuro;
ansiosa espero o refulgir da aurora,
para perdê-lo assim que o dia aflora.
E outra vêz a segui-lo me aventuro.
Impossível! Efêmero estandarte!
queira o homem , não queira, o mundo é vosso.
Estais em tudo, como em qualquer parte.
Empregando em buscar-vos todo o empenho,
quando quero é uma coisa que não posso,
quando posso é uma coisa que não tenho.
ETERNIDADE
Benedita de Mello
Quando eu morrer quero-te junto à mim...
Pelo muito que outrora nos quisemos,
tu me darás um ramo de jasmin,
da casa em que moramos e em que sofremos.
E depois?... E depois?... Não nos veremos?...
Sim, meu amor, não será êsse o fim.
Lá na outra vida nos encontraremos...
Foi Deus que disse, tem de ser assim...
Eu amar-te-ei melhor na eternidade...
Lá onde a treva da infelicidade,
é um dia azul na massa azul do povo...
E de mãos dadas pela pátria etérea,
amar-nos-emos longe da matéria
nós que morremos para amar de novo.
O Mês de Junho
Benedita de Mello
O mês de junho chega. Pelos ares,
brilha um foguete, outro ao subir apita...
Perto se ouve um estouro. Além crepita
uma fogueira convidando os pares.
É proibida a bomba! — um velho grita.
Danças, balões, folguedos e cantares...
Viva São João!... A noite está bonita...
O povo vê no céu lindos altares...
Um buscapé travesso queima e assusta,
certa menina rica... Não há rogos
Isso, pancada ao Zé Pretinho custa.
Passa-se o mês... No entanto o mal nos fica...
Fica impune, depois, quem vende os fogos...
Fica impune também quem os fabrica...
Volta
Benedita de Mello
Voltando à minha terra, nas ramadas,
já não ouvi cantar de passarinho...
Uns ouvi em gaiolas penduradas,
cantando prêsos, sem amor, sem ninho...
O Sirigi, com águas emprestadas,
corre tristonho por ali sòzinho...
Passam crianças fracas no caminho...
Foram-se as serenatas e as toadas...
E amo ainda essa terra. Eu sei querer
muito mais nos momentos de sofrer
do que nas horas de satisfação...
Sêres e coisas nossas, se os amamos,
seja com erro ou não os aceitamos,
amando-os afinal como êles são.
As Boninas
Benedita de Mello
As boninas! Por tôda parte as vejo...
Quasi rentes ao chão, são como esteiras
com que Deus cobre as terras brasileiras
quando há do sol nenhum lampejo.
Tímidas, castas, fecham-se ao bafejo
do astro nascente nas manhãs fagueiras;
humildes, são o inverso das palmeiras;
nem dos pássaros, sentem o adejo.
Florinhas débeis e raiz segura,
A bonina perfuma a noite escura...
Dispensa a luz nem mesmo é cultivada.
Criaturas de Deus! Sêde boninas!
Simples, mimosas, brandas, pequeninas,
dando-se a todos sem pedir-lhes nada...
Os Poetas
Benedita de Mello
Os poetas são quase imateriais;
um painel de crepúsculo, de aurora;
pousam-nos n’alma, cantam, vão-se embora,
sem que nós os vejamos nunca mais.
Eles são nossos filhos, nossos pais;
choram por todos e ninguém os chora;
são sempre do presente, são de agora;
quando sucumbem ficam imortais.
O seu pranto constrói nossa alegria;
tiram da própria dor nossa poesia;
contentes e infelizes vão passando.
Iguais no nascimento, iguais na morte,
são donos de igual vida e de igual sorte;
fogem do amor para morrer amando.
O Cão
Benedita de Mello
Meu lindo cão... Vejo-o sem forma e cor.
Certo, assim não me vê nem imagina
sua alma nobre, ao homem superior
na afeição, no dever, na disciplina.
Segue-me como o crente segue o andor.
Se ante a mim não se ajoelha, o pleito inclina...
Porque é no peito que reside o amor,
porque é o amor que a ser humilde o ensina.
Assim procede e assim é diferente,
do resto dos mortais... de tanta gente
que, até no altar de sua devoção,
aparência de pomba, alma de cobra,
se dobra os joelhos, a cabeça dobra,
inflexível conserva o coração.
Trovas
Benedita de Mello
I
Tens um segrêdo profundo,
que é teu triunfo entre as gentes...
Tu mentes a todo o mundo...
Só tu sabes que tu mentes...
II
Tu traíste o meu amor...
Mataste a felicidade...
Agora precisas ver-me,
para matar a Saudade...
III
Tu me pedes que te esqueça,
E eu não te deixo esquecido.
Como te posso esquecer,
Se de ti vem o pedido?...
IV
Só hoje sei ter amado
Dois homens ardentemente:
— Tu, como eras no Passado
e tu, como és no Presente...
V
Dizem que quando o amor morre
sepulta-se atrás de um beijo...
O amor só tem vida longa,
quando resiste ao Desejo...
VI
Não me adianta nem me atrasa
chorar a tua partida...
Saíste da minha casa,
Foi uma surpresa muito agradável ter encontrado esse blog, enquanto procurava alguma coisa sobre Benedita de Mello. Lí um poema dela,em um livro fininho, quando criança e nunca esqueci. Mas, até hoje, aos 67 anos não tinha encontrado nenhuma informação sobre sua obra. Guardo até hoje, uma frase de um dos poemas:" Na arca da noite que tenho por sina, num grande soluço teu rosto ficou"
ResponderExcluirSoneto de Benedita de Mello que levou-me a emoção da perda recente:
ResponderExcluirA memória de Celeste "minha mãe", dedico esta leitura pelo amor que nos chegou com tanto atraso.
ETERNIDADE
Benedita de Mello
Quando eu morrer quero-te junto à mim...
Pelo muito que outrora nos quisemos,
tu me darás um ramo de jasmim,
da casa em que moramos e em que sofremos.
E depois?... E depois?... Não nos veremos?...
Sim, meu amor, não será esse o fim.
Lá na outra vida nos encontraremos...
Foi Deus que disse, tem de ser assim...
Eu amar-te-ei melhor na eternidade...
Lá onde a treva da infelicidade,
é um dia azul na massa azul do povo...
E de mãos dadas pela pátria etérea,
amar-nos-emos longe da matéria
nós que morremos para amar de novo.
Obrigada, célebre Benedita de Mello!
Soraya Rangel
COMENTÁRIO ORIGINALMENTE PUBLICADO EM 13-02-2014
ResponderExcluirFoi com surpresa e satisfação que encontrei esse blog quando procurava poesia de Benedita de Mello. Li seus versos há mais de 50 anos, quando estava cursando o ginasial, nunca me esqueci; sei alguns de cor. Seu blog está lindo! Parabéns! em * BENEDITA DE MELLO (Brasil)
Anônimo
em 13/02/14