MALU VIEIRA (Brasil)




Contradição de Mulher
Malu Vieira

Eu sou o coração partido
mulher, alma dilacerada
que chora na praça de Mayo,
que junta trapos favelados
e que reconhece guloseimas
no meio das grandes festas.
Eu sou o ventre das escravas
que cantam, sem saber
as coisas agora bonitas,
rasteiras,
transformadas por Cecília,
vercejadas por Cora,
quase bem-ditas por Adélia.
Eu sou canção e eternidade,
a dona de casa, trancada,
aquela atriz drogada,
mulher da rua violada,
onde por cada lamento
reclama por uma só paz.
Sou doméstica,
operária,
com risos, emoções e ais.
Sou a intelectual
aquela que cede ao coração
que se faz fiel e safada
vivendo luz e solidão.


Medida
Malu Vieira
  
Não sou um problema 
para ser resolvido 
através de fórmulas 
indecifráveis. 
Não tenho a frase certa; 
na medida do possível, 
não faço o que posso 
só para ver o que acontece. 
Não teço palavras 
para criar armadilhas 
onde desavisados 
possam cair. 

Sou um rio perigoso 
que segue adiante, 
mata adentro 
com a suavidade 
de quem sabe ousar. 

Sou o tempo inadvertido 
que não se mostra 
nos traços da pele, 
posto ser mais sentido 
nas suas profundezas. 

Sou a palavra que sangra 
e sabe o momento 
de se colocar 
entre uma dor e outra 
para alcançar 
aquilo que você é, 
através do brilho dos olhos meus. 


Provocação
Malu Vieira

Catei teu cheiro 
nas paredes
nas prateleiras
dos mercados
e também pela casa
abusei no tom
de rosa
pus jasmim no cabelo
soltei as asas
arrepiei teus pelos.

Catei o som 
do risco
que a tua voz
provoca
tão arisco
meu receio
de enfiar os pés
pelas mãos
onde você
só queria
fazer filme
e recreio.


Ao Norte do Corpo
Malu Vieira

Ao norte do corpo 
o vento me apanha
solto as asas
mas o voo é rasante
me estatelo
na beira da calçada
e sou içada
por um braço que se fez de forte
um dia.

Ao sul do corpo 
atravesso temporais
e tento me livrar
de alguns lances de escada
mas qual!,
nas esquinas da vida
meu norte
vira sudoeste
e sigo empurrada
em direção ao nada.


João
Malu Vives

Era assim que se chamava: João
Porém tinha outra preferência
Maria
Era o que seu coração
Pedia

Era assim que se portava: Maria
Mas ele bem sabia
Que por cima do seu panteão
Existia um bordado estranho
Que ele não lia
Mas que existia.

Assim ele era: João
E ao cair da noite, Maria
Só não se apaixonava
Ah, isso não
Pois assim não sobrevivia

Tinha lá sua danação
E seu pranto exalava um cheiro
De cravo com madeira
Mais do que sua perdição
Esse era o seu jeito
De lidar com o mundo
E bem lá no fundo
Deixar que fosse só brincadeira.


Tardes 
Malu Vieira

Você me anuncia 
nas pratarias da casa
na poeira dos ventos
oferece o melhor lugar
eu me sento
mas abro as asas
quando se trata de amar.

As novidades que vejo 
são tranqüilas
então me espalho
nos teus atos falhos
para dar a volta
no entorno de uma lagoa
bonita, alegre, florida
pego uma margarida
e te ofereço, tarde boa.


Transformação do Amor
Malu Vieira

O amor!
Ah, o amor...
Espera lindo 
na porta de entrada
rescendendo à primavera
traz botões de rosa
coloridos
e um colar
imitando diamantes
nas mãos;
no rosto,  um sorriso;
e todo o resto,
por mais errado
que possa estar,
parece motivos
para gargalhadas.

O amor!
Ah, o amor...
Toma de supetão 
toda a casa;
perfuma meu corpo
e quando acha
a porta de saída,
esqueceu há muito
as boas maneiras;
na boca traz palavras
que ofendem
acerta mágoas no peito
e deixa na mente
resquícios de frustração
mal apagadas
que velam fortuitamente
rancor e raiva.

Só depois de passar 
esse tsunami de varredura
é que o verdadeiro
amor renasce
entre escombros
nas encostas
recém descobertas
por um novo amor.

Ah, o amor!


Tempo, Tempo, Tempo
Malu Vieira

O tempo não se distrai; 
ele consome;
vira estribilho de novela,
ganha novas caras
e sai pintando farpas
que jogamos por aí.

O tempo se dilui 
pelas minhas mãos
e se torna demorado
nas horas pachorrentas
de rede na varanda...
mas ele se contrai
e pontiagudo,
parece não querer
ter fim.
Chega para marcar 
sua aflição de passar
por mim.


Sorriso
Malu Vieira

Teus olhos riem
Um riso franco e aberto
Quando batem nos meus.

Teus olhos criança
Dardejam esperança
Para os já cansados olhares

Que lanço acima 
Esperando afiada
O retorno cristalino

Derretidos na prata da lua
Em noites minguantes
Em que sonhei ser tua.


Traços
Malu Vieira

Tento ver sua imagem
Fora das telas
Num traço azul
Colorido no seu riso
Levemente Renoir
Não dá para sair
Com pressa
Meus olhos enxergam
A diferença
De um Monet
Para seu olhar cristalino;
Papoulas revoltas
Descritas num Van Gogh
Encontram a serenidade
Do abraço
A força para os arbítrios
Do dia
Nas cores bailantes
De um Cézanne.


Grandes Começos
Malu Vieira

Faz algum tempo 
nossa linguagem mudou 
movida pelas fantasias 
e pelas expectativas 
construídas ao longo da convivência 
- ainda curta, digamos. 

Deixamos juntar louça na pia, 
a cama ficou desarrumada, 
esquecemos de limpar 
a  poeira que se acumulou 
nos cantos da casa 
- até no computador. 

Algumas lembranças se quebraram 
ou ficaram esquecidas 
na areia dos sentimentos 
até a maré retornar 
no período de uma lua vultosa 
que resolva ao acaso 
trazer-nos de volta 
o cheiro das bebidas 
- compartilhadas com o riso e a festa 
dos grandes começos. 

Agachamos na estrada 
sentindo o cansaço das tentativas 
esboçando discursos corrosivos 
aludindo a batalhas sangrentas 
travadas num passado vitorioso 
- uma ode ao nosso umbigo. 

Então, esperamos impacientes 
quando a próxima palavra 
será usada como lâmina 
abrindo novas feridas; 
esquecendo o uso da ternura, 
seguimos com uma sensação 
incômoda e persistente 
que nos abandona de nós 
- até esquecermos o que fomos um dia. 

Porém, mulheres fiam o tempo 
e nesses traços feitos de linha especial 
onde está embolada a nossa vida, 
juntamos os retalhos 
e com eles alinhavamos 
nova colcha 
- que irá nos aquecer 
das geleiras de nós. 


Arrumado
Malu Vieira

Desfeito o trato
arrumo no prato
o alimento
me ponho à espreita;
a fome que aparece
é aquela panorâmica
do abraço, do olhar,
da cumplicidade
integralmente aceita.

É difícil estalar os dedos
tirar a venda
e se ver só
nenhum espelho
para mostrar a fantasia
nenhum ombro
para acolher a melancolia
e oferecer um bálsamo
para a dor.

Refeita para novos contratos
abro o desfecho
com seus possíveis
encontros e estréias
porém, envolvida
pelos laços do amor,
dessa vez
não quero mais me perder.


Maquiagem
Malu Vieira

Revejo o melhor ângulo,
o espelho escolhe pra mim;
espalho a base,
escondo as imperfeições,
mostro os olhos que não quero
através do rimel
e a partir das sombras
insinuo uma iluminação
que combina com o blush.
Pra finalizar,
um batom
que revelará uma boca
ansiosa para dizer a que veio
mas segue calada
deixando apenas à mostra
uma parcela de si
chamada sedução.


Comodismo
Malu Vieira

Me fiz outra
e essa, assim sendo,
brincou comigo;
fez a minha voz
como a sua
e me corroeu
para que eu pudesse
mostrá-la aos outros.
Depois de mostrá-la
decidi soterrar o que sou;
achei por bem
encarar a vida levianamente
e não quis mais decidir
sobre minhas escolhas.
Estava quase desistindo
quando meu peito começou a explodir:
a vida não vivida se inquietou
e não quis mais repousar
nos braços medíocres
do comodismo satisfatório.
Então, fui percebendo
que ninguém viverá
os meus prazeres
nem as minhas dores.
E cá estou.
Apresento-lhes
uma nova modalidade de mulher:
um furacão
que não deixa nada no lugar,
porém é assim
que sei desfrutar
da minha feliz liberdade
de escolher a mim mesma.


Palco
Malu Vieira

Ensaio a dança perfeita,
decoro o script,
refaço as falas
com as entonações corretas
e enfeito o meu palco
para que acreditem
naquilo que quero.
Na verdade, levei muito tempo
imaginando, desenhando, recortando
e adequando as máscaras.
Previ algumas reações
e salpiquei-as de respostas irônicas
com frases prontas.
Espalhei pétalas no chão
para pisar macio...
Mas você chegou
E não consegui segurar
as cortinas do palco;
as máscaras se tornaram
inadequadas ...
Foi quando resolvi descer
para a platéia e me envolver de amor...




























Um comentário:

  1. Malu Vieira, Malu-Mulher, Malu poeta...
    Só a mulher para entender bem desses teus versos:
    "É difícil estalar os dedos
    tirar a venda
    e se ver só
    nenhum espelho
    para mostrar a fantasia
    nenhum ombro
    para acolher a melancolia
    e oferecer um bálsamo
    para a dor."

    Pois é, poeta, depois de tudo o sol surge, sempre surge mais forte e o ombro, ah o ombro, é preciso olhar no fundo dos olhares e ver quem se dispõe a doar o ombro que precisamos, sem pressa, sem interesses, sem cobranças...
    Um abraço de ombro forte da Raquel Nonatto para você.

    ResponderExcluir

Web Statistics