MULHER "Os homens distinguem-se pelo que fazem, as mulheres pelo que levam os homens a fazer." (Carlos Drummond de Andrade) Costumo dizer, com bastante frequência, que o sentido da vida está exatamente nos “pequenos detalhes” que experimentamos no dia-a-dia. São eles que dão significado à existência humana, abrindo caminho para nossa trajetória, mesclada de flores e espinhos. E é nesta caminhada, muitas vezes longa e exausta, que é necessário a companhia de alguém que dá alivio ao cansaço, compartilhando forças para prosseguir a jornada. Então surge a mais perfeita e adorável criatura - A MULHER! A mulher mãe que amamenta o filho, que embala, que estende as mãos nos primeiros passos, que mostra o caminho certo, que aponta o horizonte a ser conquistado pelo filho que tanto ama. O filho aos poucos vai crescendo e chega o momento de receber os primeiros ensinamentos na trajetória da vida: O pré-escolar, alfabetização, fundamental, ensino médio... É nessa fase que aparece a extraordinária mulher educadora que, com a sua dedicação, prepara o homem para a vida, para a conquista de novos horizontes, o desejo de grandes projetos e melhores oportunidades. O tempo passa, a caminhada continua como sempre: ora flores, ora espinhos. O homem sente a necessidade de uma companhia para prosseguir a sua jornada e é aí que aparece a mulher companheira, a aliviar o cansaço da longa jornada, distribuindo amor, afago, afeto, carinho e tantos outros sentimentos necessários para se prosseguir a jornada da vida. Assim, em cada detalhe importante de nossa caminhada, aparece sempre a figura extraordinária da mulher: mulher mãe, mulher educadora, mulher companheira, mulher inspiradora, que leva todos os poetas a cantar em seus versos a sublimidade de sua grandeza no contexto da vida. E, para definir este sentimento de amor, de ternura, de sensibilidade, de pureza e de afeto só me vem uma EXPRESSÃO: MULHER! Antônio Manoel Abreu Sardenberg 30/08/2012 São Fidelis - "Cidade Poema" Mulher Antonio Manoel Abreu Sardenberg O seu ventre gera a vida, Os seios dão alimento, No colo a terna guarida, Nos braços doce acalento... Com a voz ensina a verdade, Com as mãos aponta o caminho. Seu coração de bondade É pleno de santidade: Santuário de carinho! No rosto um sorriso aberto, Um olhar pleno de luz É um farol que conduz, O rumo, o atalho mais certo. No abraço, a terna acolhida, O abrigo de toda hora... A verdade, digo agora: MULHER - és a própria vida! E esse meu poema encerro, Com um sentimento profundo; Acredite quem quiser: Deus só deu sentido ao mundo Depois que fez a Mulher! Inspiração Antonio Manoel Abreu Sardenberg É mais doce do que o mel Mais ardente que o vulcão É o amor, a paixão, As estrelas lá do céu É do mar a imensidão... Nosso rumo, o norte a meta É a inspiração do poeta É o pulsar do coração! É como a luz que ilumina Como o ar que respiramos É o amor que mais amamos A lição que nos ensina É da obra, a mais prima O sonho, a imaginação É o querer com razão O sopro que traz a vida A vontade mais sentida Que um homem deseja, então! É, enfim, o infinito É o querer mais bonito Presente que DEUS nos deu É tudo que a gente quer Quem ama já percebeu: Tudo isso é a MULHER! Poesia – Nossa Musa Antonio Manoel Abreu Sardenberg Seja bem-vinda, poesia! Desperte como a alvorada Com seu toque de carinho No surgir de cada dia Trazendo a luz que irradia Nosso mundo, nosso ninho! Salpique o céu com estrelas, Cante a imensidão do mar, Ensine o mundo perdido Sentir o que é amar... Mostre o cruzeiro do sul, Guie o nosso caminhar! Seja bem-vinda, poesia! Traga o frescor da aragem, A brisa leve a soprar... Seja nossa fantasia, No bloco do dia-a-dia Nos ensine a desfilar... Cante a beleza da rosa, O perfume do jasmim; Quero ficar todo prosa Com você perto de mim. Seja bem-vinda, poesia! Traga ao mundo a primavera, A vida explodindo em cor... Seja o sonho e a quimera, Seja, enfim, o que quiser: A musa, a deusa, a mulher O nosso caso de amor... Seu Olhar Antonio Manoel Abreu Sardenberg Quando vejo o seu olhar, Penetrando assim no meu, Começo então a sonhar E louco para adentrar Nesse lindo olhar que é seu! Aí fazer a morada, Aconchego do meu ninho, Lambuzar com meu carinho Os seus olhos cor de mel, Sentir-me subindo ao céu Nas asas de um passarinho! Quanto vejo o seu olhar Insinuar que me quer, Não consigo acreditar No que ele está dizendo, Então acabo querendo, Ter você como mulher! Quando vejo o seu olhar Cheio de luz e desejo, Começo a imaginar Afogando-me em beijos, No seu corpo que é o meu mar! Aquele Abraço Antonio Manoel Abreu Sardenberg Amar pela metade é não amar, Querer só por falar não é querer. A gente pode e deve até sonhar, Mas só de sonho não dá pra viver... Se o sonho é vivo, a vida se renova, E, se ele é novo, tem que evoluir Pois só o tempo mostra e tira a prova Se vale a pena a gente persistir. E no sonhar, vem sempre a esperança De conquistar aquilo que se quer: Louco desejo preso na lembrança Naquele abraço ardente de mulher... Distância Antonio Manoel Abreu Sardenberg Na distância não me perco, rumo certo com meus passos... na bagagem levo beijos, sonhos, sussurros e abraços. Assim como o andarilho, no caminhar tão constante, vou pouco a pouco encurtando esta estrada tão distante! E de repente te vejo, como sempre quis te ver: Musa...Mulher...e Desejo... então te cubro de beijos e me afogo em você! Contraste Antonio Manoel Abreu Sardenberg Você é fogo, a chama mais ardente, Semente a germinar em pleno cio, É luz que o sol espalha suavemente, É toque de prazer, é arrepio... É água cristalina da nascente Que corre lentamente para o rio, Paixão que vem assim, tão de repente, Deixando o coração por quase um fio. Você é o meu passado mais presente... Calor a me aquecer durante o frio, Loucura que enlouquece loucamente! Você é como um sonho inocente, É brisa mansa em manhã de estio E muitas vezes temporal fremente! Estações Antonio Manoel Abreu Sardenberg Chuva fina e persistente, O céu cinzento de inverno, Faz frio dentro da gente, E essa saudade latente Faz o tempo quase eterno. Chuva forte e passageira, Céu brilhante de verão... No meu ninho, a companheira Quer amor a noite inteira Num frenesi de paixão! Chuva miúda de outono, A natureza despida... Depois do amor vem o sono Para dar vigor à vida Que desperta soluçando No momento da partida. Chuva branda e colorida, Arco – íris, aquarela. Nos campos flores sortidas São pincéis tingindo a vida Com as cores da primavera. Amor & Paixão Antonio Manoel Abreu Sardenberg Amor é brisa suave, é aconchego, é carinho, vôo cadente da ave indo em busca do seu ninho. É bruma leve do mar em manhã de primavera, desejo louco de estar com alguém que se espera. Volúpia louca é paixão, mar revolto, tempestade... É amar sem a razão, é só loucura e vontade. Paixão é amor sem juízo, sem norte, reta ou tino, errante sem ter destino, o inferno no paraíso! Amor é paz, é ternura, é o frescor da aragem, a mais cálida coragem, maior ato de bravura. É o céu lá nas alturas, é a mais sublime imagem! Paixão é inconseqüência, é demência desmedida, é o nada, é ausência, é o fim – a despedida! Amor é tudo, enfim é a vida iluminada, é a afirmação, é o sim, é o encontro na chegada! * Todos os direitos reservados ao autor.
Um Grande amor Fernanda de Castro Um grande amor não cabe em nenhum verso, como a vida não cabe num jardim, como não cabe Deus no Universo nem o meu coração dentro de mim. A noite é mais pequena do que o luar, e é mais vasto o perfume do que a flor. É a onda mais alta do que o mar. Não cabe em nenhum verso um grande amor. Dizer em verso aquilo que se pensa, ideia de poeta, ideia louca. Não é bastante a frase mais extensa, diz mais o beijo do que diz a boca. Ninguém deve contar o seu segredo. Versos de amor, só se os fizer assim: como os pássaros cantam no arvoredo, como as flores se beijam no jardim. Que verso incomparável, infinito, feito de sol, de misterioso brilho, poderia dizer o que, num grito, diz a mulher quando lhe nasce um filho? E quando sobre nós desce a tristeza, como desce a penumbra sobre o dia, uma lágrima triste e sem beleza, diz mais do que a palavra nua e fria. Redondilha de amor... Para fazê-la, desse-me Deus a tinta do luar, a candeia suspensa de uma estrela e o tinteiro vastíssimo do mar. Três Poemas da Solidão Fernanda de Castro I Nem aqui nem ali: em parte alguma. Não é este ou aquele o meu lugar. Desço à praia, mergulho as mãos no mar, mas do mar, nos meus dedos, fica a espuma. Meu jardim, minha cerca, meu pomar. Perpassa a Ideia e mói, como verruma. Falar mas para quê? Só por falar? Já nada quer dizer coisa nenhuma. Os instintos à solta, como feras, e eu a pensar em velhas primaveras, no antigo sortilégio das palavras. Agora é tudo igual, prazer e dor, e a tua sementeira não dá flor, ó triste solidão que as almas lavras. II Tão só! Cada vez são mais longos os caminhos que me levam à gente. (E os pensamentos fechados em gaiolas, as ideias em jaulas.) Ah, não fujam de mim! Não mordo, não arranho. Direi: — «Pois não! Ora essa! Tem razão». Entanto, na gaiola, cantarão em silêncio os sonhos, as ideias, como pássaros mudos. III Solidão. A multidão em volta e o pensamento à solta como alado corcel. E as ideias dispersas, em tropel, como folhas ao vento pétalas do Pensamento. Solidão. A angústia da Cidade, a impossível procura da Unidade, o clamor do silêncio interior, mais pungente, estridente, que os bárbaros ruídos que ferem, dilaceram os nervos e os sentidos. Eu! Fernanda de Castro O homem de génio diz: eu sou. O poderoso afirma: eu posso. O rico diz: eu tenho. E o ambicioso: eu quero. Eu! Eu! Eu! E afinal esses que vivem sós, completamente sós, quanto dariam para como tu, ou como eu, dizerem simplesmente: nós. Asa no Espaço Fernanda de Castro Asa no espaço, vai pensamento! Na noite azul, minha alma, flutua! Quero voar no braços do vento, quero vogar nos barcos da Lua! Vai, minha alma, branco veleiro, vai sem destino, a bússola tonta. Por oceanos de nevoeiro, corre o impossível, de ponta a ponta. Quebra a gaiola, pássaro louco! Não mais fronteiras, foge de mim, que a terra é curta, que o mar é pouco, que tudo é perto, princípio e fim. Castelos fluidos, jardins de espuma, ilhas de gelo, névoas, cristais, palácios de ondas, terras de bruma, asa, mais alto, mais alto, mais! AUSÊNCIA Fernanda de Castro Partiste e contigo foi tudo quanto me deixaste. Tudo quanto um dia olhaste nos teus olhos mansos foi. Partiste e tudo levaste. Não deixaste, no jardim, rosa que um dia cheiraste, fruto que um dia colheste, ar que um dia respiraste. Só eu fiquei mas sem mim, que a mim também me levaste. Onde o Homem não Chega Fernanda de Castro Onde o Homem não chega tudo é puro, dessa pureza da primeira infância. Tudo é medida, ritmo, concordância, tudo é claro e auroral: a noite, o escuro. E nem o vendaval é dissonância mas promessa de sol e de futuro. Quem levantou esse primeiro Muro que do perto fez longe, ergueu distância? Foi o Homem, com suas mãos de barro, com suas mãos perjuras, fel e sarro de inútil sofrimento e vil prazer. Não é tarde, porém: sacode a lama, ergue o facho, levanta a Deus a chama e recomeça: acabas de nascer. Se os Poetas Dessem as Mãos Fernanda de Castro Se os Poetas dessem as mãos e fechassem o Mundo no grande abraço da Poesia, cairiam as grades das prisões que nos tolhem os passos, os arames farpados que nos rasgam os sonhos, os muros de silêncio, as muralhas da cólera e do ódio, as barreiras do medo, e o Dia, como um pássaro liberto, desdobraria enfim as asas sobre a Noite dos homens. Se os Poetas Dessem as mãos e fechassem o Mundo no grande abraço da Poesia. Se Tudo Quanto Existe... Fernanda de Castro Se tudo quanto existe é lenta evolução, longa transformação sem Deus e sem mistério; se tudo no Universo tem sentido sem o sopro divino; se o segredo da vida, a criação, se explica pela ciência, e a corrente vital é também consequência; se a humana consciência é simples equação... — que significa a vocação do eterno, que quer dizer a aspiração do Céu e o terror do inferno? E se acaso é o instinto a lei da vida, se a verdade é só necessidade inexorável, lenta, laboriosa, que sábia explicação tem esta frágil, esta inútil rosa? Poema da Maternidade Fernanda de Castro Pode lá ser! Não quero, não consinto! Tudo em mim se revolta: a carne, o instinto, A minha mocidade, o meu amor, A minha vida em flor! É mentira! É mentira! Se o meu filho respira, Se o meu corpo consente, Covardemente, A minh'alma não quer! Eu não quero ser mãe! Basta-me ser mulher! Basta-me ser feliz! E o meu instinto diz: — «Acabou-se! Acabou-se! Agora renuncia: Começa a tua noite: acabou-se o teu dia! Tens vinte anos? Embora! A tua mocidade Perdeu chama e calor, perdeu a própria idade. Resigna-te. És mulher! Foi Deus que assim o quis. Já foste flor: agora és só raiz.» — Não pode ser! É injusta a minha sorte! Não quero dar vida a quem me traz a morte! O meu destino há-de ter outro brilho! Vida, quero viver! E morro, morro... Filho! Pode lá ser, Jesus! Eu não mereço tanto! Filho da minha dor, eu já não choro — canto! Filho que Deus me deu! Porquê, Senhor, Há só uma palavra: Amor, Amor, Amor?! Dai-me outra voz que nunca tenha dito Coisas más, coisas vis... e que saiba a infinito... Dai-me outro coração, mais puro, mais profundo, Que o meu já se quebrou de encontro ao mundo... Dai-me outro olhar que nunca tenha olhado, Que não tenha presente nem passado... Dai-me outras mãos, que as minhas já tocaram A vida e a morte... o bem e o mal... e já pecaram... Filho, por que seria? Ao vires para mim, Mudaste num jardim Os espinhos da minha carne triste... E como conseguiste Dar uma cor de sol às horas mais sombrias? Meu menino, dorme, dorme, E deixa-me cantar Para afastar A vida, um papão enorme... Meu menino, dorme, dorme... Vamos agora brincar... Que brinquedo, meu menino? O mar, o céu, esta rua? Já te dei o meu destino, Posso bem dar-te a Lua. Toma um navio, um cavalo, Toma agora o mar sem fundo... Ainda achas pouco? Deixá-lo! Se quiseres, dou-te o mundo! Mas por que não vens brincar? Por que preferes chorar? Jesus! Que tem o meu filho? Que vida estranha no brilho Do seu olhar? Uma vida inquieta e obscura Anda a queimar-lhe a frescura ... Ainda hoje, meu filho, não sorriste E o teu olhar é triste... Cheiras a noite, a luto, a azebre... Senhor! O meu filho tem febre! O seu hálito queima, o seu olhar escalda... Ele que tinha um olhar de estrela ou de esmeralda E um perfume de flor, Agora tem na boca um amargo sabor E cheira a noite, a luto, a azebre... Senhor! O meu filho tem febre! Tirai-me dos olhos toda a luz! Livrai-me da blasfémia... Deus! Jesus! Pois se o meu filho morre, se agoniza, Por que há flores no chão que ele não pisa? Se num coval o hei-de pôr, de rastros, Por que estarão tão altos os astros? Senhor, eu sou culpada… Eu sei o que é o pecado… Mas ele, meu Jesus, ainda não tem passado... Para mim, não há mal que não aceite, Mas ele, ainda tão perto do teu céu! A sua vida era beber-me leite... No olhar com que me olhava tinha um véu De neblinas, de névoas de outras vidas... Às vezes, tinha as pálpebras descidas E punha-se a chorar no meu regaço Com saudades, talvez, do céu, do espaço... O meu filho tem febre! Por que andam a cantar pelos caminhos? Por que há berços e ninhos? Vida! O meu filho era belo, O meu filho era forte! Vida, que mãe és tu? Defende-me da morte! Vida! Vida! Vida! Louvado seja Deus! A morte foi-se embora! Já não tens febre agora! Louvado seja Deus! O meu menino vive, Este menino, o meu, que só eu tive! E pude blasfemar! E o meu menino chora, e eu posso já cantar! E o meu menino canta e eu posso já chorar! O meu menino vive e toda a vida canta, Toda a terra é uma fresca e sonora garganta! Que toda a gente o saiba e toda a terra o veja! Louvado seja Deus! Louvado seja! Os Anos São Degraus Fernanda de Castro Os anos são degraus, a Vida a escada. Longa ou curta, só Deus pode medi-la. E a Porta, a grande Porta desejada, só Deus pode fechá-la, pode abri-la. São vários os degraus; alguns sombrios, outros ao sol, na plena luz dos astros, com asas de anjos, harpas celestiais. Alguns, quilhas e mastros nas mãos dos vendavais. Mas tudo são degraus; tudo é fugir à humana condição. Degrau após degrau, tudo é lenta ascensão. Senhor, como é possível a descrença, imaginar, sequer, que ao fim da Estrada, se encontre após esta ansiedade imensa uma porta fechada e mais nada? Silêncio, Nostalgia... Fernanda de Castro Silêncio, nostalgia... Hora morta, desfolhada, sem dor, sem alegria, pelo tempo abandonada. Luz de Outono, fria, fria... Hora inútil e sombria de abandono. Não sei se é tédio, sono, silêncio ou nostalgia. Interminável dia de indizíveis cansaços, de funda melancolia. Sem rumo para os meus passos, para que servem meus braços, nesta hora fria, fria? Não Fora o Mar! Fernanda de Castro Não fora o mar, e eu seria feliz na minha rua, neste primeiro andar da minha casa a ver, de dia, o sol, de noite a lua, calada, quieta, sem um golpe de asa. Não fora o mar, e seriam contados os meus passos, tantos para viver, para morrer, tantos os movimentos dos meus braços, pequena angústia, pequeno prazer. Não fora o mar, e os seus sonhos seriam sem violência como irisadas bolas de sabão, efémero cristal, branca aparência, e o resto — pingos de água em minha mão. Não fora o mar, e este cruel desejo de aventura seria vaga música ao sol pôr nem sequer brasa viva, queimadura, pouco mais que o perfume duma flor. Não fora o mar e o longo apelo, o canto da sereia, apenas ilusão, miragem, breve canção, passo breve na areia, desejo balbuciante de viagem. Não fora o mar e, resignada, em vez de olhar os astros tudo o que é alto, inacessível, fundo, cimos, castelos, torres, nuvens, mastros, iria de olhos baixos pelo mundo. Não fora o mar e o meu canto seria flor e mel, asa de borboleta, rouxinol, e não rude halali, garra cruel, Águia Real que desafia o sol. Não fora o mar e este potro selvagem, sem arção, crinas ao vento, com arreio, meu altivo, indomável coração, Não fora o mar e comeria à mão, não fora o mar e aceitaria o freio. Meditação Fernanda de Castro Às vezes, quando a noite vem caindo, Tranquilamente, sossegadamente, Encosto-me à janela e vou seguindo A curva melancólica do Poente. Não quero a luz acesa. Na penumbra, Pensa-se mais e pensa-se melhor. A luz magoa os olhos e deslumbra, E eu quero ver em mim, ó meu amor! Para fazer exame de consciência Quero silêncio, paz, recolhimento Pois só assim, durante a tua ausência, Consigo libertar o pensamento. Procuro então aniquilar em mim, A nefasta influência que domina Os meus nervos cansados; mas por fim, Reconheço que amar-te é minha sina. Longe de ti atrevo-me a pensar Nesse estranho rigor que me acorrenta: E tenho a sensação do alto mar, Numa noite selvagem de tormenta. Tens no olhar magias de profeta Que sabe ler no céu, no mar, nas brasas... Adivinhas... Serei a borboleta Que vendo a luz deixa queimar as asas. No entanto — vê lá tu!— Eu não lamento Esta vontade que se impõe à minha... Nem me revolto... cedo ao encantamento... — Escrava que não soube ser Rainha! Ah, que Bela Manhã de Primavera! Fernanda de Castro Ah, que bela manhã de Primavera! Abram ao sol as portas, as janelas! Cheira a café com leite, a sabonete, a goivos, a sol novo, a vida nova! A Rua canta!… sinos e pregões, apitos e buzinas, vozes claras. –”Gostas de mim?” — “Gosto de ti” — e o céu cobre a Cidade com seu manto azul. Ah, que bela manhã de Primavera! Pousam no Tejo barcos e gaivotas, com velas novas, belas asas novas. Os eléctricos voam, transbordantes, a tilintar, a rir nas campainhas, e os automóveis, como borboletas, circulam, tontos, nas ruas sonoras. Ah, que bela manhã de primavera! No Tejo, os vaporzinhos de Cacilhas brincam aos barcos grandes, às viagens, e o pequeno comboio vai e vem, como um brinquedo de menino rico. Confundem-se nas árvores, ao sol, folhas e asas, pássaros e flores. É festa em cada rua. Em cada casa, um canário a cantar, uma cortina, um craveiro florido na janela. Despejaram-se armários e gavetas, frasquinhos de perfume…Toda a gente foi para a rua de vestido novo, de fato novo, de gravata nova, e tudo canta, a Rua é uma canção. Ah, que bela manhã de Primavera! –”Gostas de mim?” — é o tema da canção. –”Gostas de mim?” — pergunta-lhe ele a ela. –”Gostas de mim?” — pergunta à flor o vento e a flor ao rouxinol… — “Gostas de mim?” –”Gostas de mim?”, “Gostas de mim?” Cheira a goivos, a sol, a vida nova… Ah, que bela manhã de Primavera! Perfeição Fernanda de Castro Canta. Busca na vida o que é perfeito. Olha o sol e não queiras outro guia. Sonha com a noite e absorve, aspira o dia, tal uma flor que te florisse ao peito. Da terra maternal, faz o teu leito. Respira a terra e bebe o luar. Confia. Faz de cada pena uma alegria e um bem de cada mal insatisfeito. Colhe todas as flores do jardim, todos os frutos do pomar e enfim colhe todos os sonhos do universo. Procura eternizar cada momento, Fecha os olhos a todo o sofrimento E terás feito a carne do teu verso. Distância Fernanda de Castro Não vás para tão longe! Vem sentar-te Aqui na chaise-longue, ao pé de mim... Tenho o desejo doido de contar-te Estas saudades que não tinham fim. Não vás para tão longe; Quero ver Se ainda sabes olhar-me como d'antes, E se nas tuas mãos acariciantes, Inda existe o perfume de que eu gosto. Não vás para tão longe! Tenho medo Do silêncio pesado d'esta sala... Como soluça o vento no arvoredo! E a tua voz, amor, como se cala! Não vás para tão longe! Antigamente, Era sempre demais o curto espaço Que havia entre nós dois... Agora, um embaraço, Hesitas e depois, Com um gesto de tédio e de cansaço, Achas inconveniente O meu abraço. Não vás para tão longe! Fica. Inda é tão cedo! O vento continua a fustigar Os ramos sofredores do arvoredo, E eu ponho-me a pensar E tenho medo! Não vás para tão longe! Na sombra impenetrada, Como se agita e se debate o vento!... Paira nas velhas ruínas do convento. Que além se avista, A alma melancólica d'um monge Que a vida arremessou àquela crista... Céu apagado, negro, pessimista, E tu sempre mais longe!... Ó Árvore Fernanda de Castro I Ó arvore, alguém pensou Na tua imensa alegria Quando enfim rompeste a crosta E alcançaste a luz do dia? II Manhã cedo, na mata, respira-se mais fundo. Tudo é puro, auroral, duma inocência de princípio do mundo. De ti mesma cativa, sem pressas, folha a folha, vais crescendo com uma falsa indolência Árvore, como invejo a tua paciência! III Lentamente, cresceste, eras frágil, pequena, como um pé de violeta. Vergavas sob o peso duma abelha ou duma borboleta. Depois, cresceste a muito custo, o pé de violeta transformou-se em arbusto. Então, ano após ano, o arbusto fez-se árvore, tão forte que nem o vento lhe faz dano. Agora, desse tempo, nada resta: o é de violeta é um deus da floresta. IV Árvore, alguém te perguntou: És feliz, infeliz, Imóvel presa ao chão Pela raiz? V Árvore, eu sinto em mim o teu sofrimento, sempre que o vento, à doida, à toa, te fere, te magoa, eu tenho calafrios, pesadelos, como se o vento em vez de sacudir-te e de arrancar-te as folhas, me arrancasse os cabelos. VI Quando à noite abro as janelas não é só por ter calor ou para ver as estrelas: é mais para respirar e para dormir melhor, porque sei que as tuas folhas, exalam de noite o ar que me alivia a fadiga e que me lava os pulmões, ó árvore minha amiga. VII Pássaros, vossa vida que seria sem o doce aconchego das ramagens onde escondeis as asas e as plumagens, quando anoitece, à espera de outro dia? Quando se cala a vossa melodia e regressais, exaustos de viagens, de voos sem destino, de miragens, de amorosa, secreta fantasia, voltais à paz do ninho, às vossas casas onde cabem, exactas, vossas asas e os filhos que de vós hão-de nascer. Ó árvores da mata, da floresta, o chilreio das aves é uma festa que só a vida pode agradecer.
VIII Árvore, alguém ouviu o teu lamento quando o vento, esse cavalo doido à desfilada, deixa a sua pégada em cada flor, cada rebento, cada frágil ramada? IX Se acaso estás cansado, se uma pena, um cuidado, uma onda de tédio te dão a sensação de que tudo na vida é sem remédio, vai procurar a sombra duma árvore, olha as folhas, os ramos, os botões, enche de ar os pulmões e saberás, então, que essa árvore estava à tua espera, só para te dizer: "Queiras ou não, Amigo, é Primavera!" X E tudo o mais que as árvores nos dão na dádiva telúrica e total duma vida que à vida se destina, desde a flor e dos frutos à resina, desde a resina à casca estaladiça da cortiça, da cortiça arrancada à árvore passiva, à árvore submissa, deixando-a sangrar, em carne viva. E tudo o mais que as árvores nos dão: frutos de inverno, frutos de verão, ó árvores das matas e das quintas, para as bocas sedentas, para as bocas famintas. E onde vamos buscar as nossas brasas, o lume das lareiras, o calor, e as madeiras das casas, das vigas ao sobrado? Acaso não será à tua dor à dor do tronco retalhado a golpes de machado? XI E não esqueçam, por favor, essas árvores de flor, que são só para enfeitas, com seu jeito, sua graça, cada rua, cada praça; que são só para alegrar as vidas sem horizontes, como se fossem as fontes, duma tímida esperança; que são só para enxugar o choro duma criança ou lágrimas de mulher, duma pessoa qualquer; que são só para evitar um gesto desesperado na Cidade indiferente, quando sofre, lado a lado, muita gente, tanta gente: que são só para abrigar, quando, à sombra dos seus ramos, se trocam beijos de amor; que só servem para pôr alegria na tristeza e pouco mais... para dar uma gota de beleza a quem por elas passar... essas árvores de flor que são só para enfeitar. XII Se vires uma árvore, e se fores comigo, faz, Irmão, o que eu faço: pára e dá-lhe um abraço, não tens melhor amigo. Alma Serena Fernanda de Castro Alma serena, a consciência pura, assim eu quero a vida que me resta. Saudade não é dor nem amargura, dilui-se ao longe a derradeira festa. Não me tentam as rotas da aventura, agora sei que a minha estrada é esta: difícil de subir, áspera e dura, mas branca a urze, de oiro puro a giesta. Assim meu canto fácil de entender, como chuva a cair, planta a nascer, como raiz na terra, água corrente. Tão fácil o difícil verso obscuro! Eu não canto, porém, atrás dum muro, eu canto ao sol e para toda a gente. Esta Dor que Me Faz Bem Fernanda de Castro As coisas falam comigo uma linguagem secreta que é minha, de mais ninguém. Quem sente este cheiro antigo, o cheiro da mala preta, que era tua, minha mãe? Este cheiro de além-vida e de indizível tristeza, do tempo morto, esquecido... Tão desbotada e puída aquela fita escocesa que enfeitava o teu vestido. Fala comigo e conversa, na linguagem que eu entendo, a tua velha gaveta, a vida nela dispersa chega à cama onde me estendo num perfume de violeta. Vejo as tuas jóias falsas que usavas todos os dias, do princípio ao fim do ano, e ainda oiço as tuas valsas, minha mãe, e as melodias que cantavas ao piano. Vejo brancos, decotados, os teus sapatos de baile, um broche em forma de lira, saia aos folhos engomados e sobre o vestido um xaile, um xaile de Caxemira. Quantas voltas deu na vida este álbum de retratos, de veludo cor de tília? Gente outrora conhecida, quem lhe deu tantos maus tratos? Serão todos da família? Ai, vou fechar na gaveta a lembrança dolorosa dos teus laços de cetim, dos teus ramos de violeta, do leque de seda rosa com varetas de marfim. As coisas falam comigo numa linguagem secreta, que é minha, de mais ninguém. Quero esquecer, não consigo. Vou guardar na mala preta esta dor que me faz bem. Reminiscência Fernanda de Castro ..."Lisboa, Santarém, Porto, Leiria..." (eu sabia de cor toda a geografia) O Senhor Inspector deu-me a nota mais alta em geografia e disse gravemente: - "Continua. Hás-de ser gente..." - "Ângulo recto, agudo, cateto, hipotenusa..." (Já manchara de giz a minha blusa mas respondia a tudo e a Professora sorria enquanto eu papagueava a Geometria) - "...D.Sancho, o Povoador... D.Dinis, o Lavrador... (Tinha então boa memória, sabia as datas da história...) 1380 1640 1143 em Arcos de Valdevez... (Muito bem, a pequena é simpática). - "Vamos lá à gramática." - "...E, nem, não só, mas também... conjunções copulativas" (Eu pensava na alegria que ia dar a minha mãe, nas frases admirativas da velha D.Maria, a minha primeira mestra: - Tão novinha e ficou "bem"!" - e esta suavíssima orquestra acompanhava, em surdina, o meu primeiro exame de menina aplicada, orgulhosa e inteligente...) - "Vá ao quadro, menina! Docilmente fiz os problemas, dividi fracções, disse as regras das quatro operações e finalmente O Senhor Inspector felicitou-me, quis saber o meu nome e declarou-me que ficara "distinta" sem favor. Ah! que esplendor! Que alegria total e sem mistura, que orgulho, que vaidade! Olhei de frente o sol e a claridade não me cegou. As estrelas, fitei-as como iguais. Melhor: como rivais, e a Humanidade pareceu-me um rebanho sem vontade, uma vasta colónia de formigas... (As minhas pobres, tímidas amigas!) Pouco depois, em casa, a testa em fogo, o olhar em brasa, gritei num desafio à Terra, ao Céu, ao Mar, ao Rio: - "O mãe, eu já sei tudo!" No seu olhar tranquilo, de veludo, no seu olhar profundo, que era todo o meu mundo, passou uma ironia tão velada, uma ironia tão funda, tão calada, que ainda hoje murmuro, cada dia: "- Ó mãe, eu não sei nada! Janeiro Fernanda de Castro Não chove nem faz sol na minha rua. É a hora triste. Aquela hora morta em que uma sombra nos espreita a porta e pelas frinchas gastas se insinua. Monótona e distante quer a lua reflorir ao luar, na minha horta, aquela cerejeira velha e torta que há muitos anos amanhece nua. Um cão sujo, faminto, vagabundo, com ar de quem já sabe o que é o mundo, para ali se ficou lambendo uns pratos… Passa gente embrulhada em roupas velhas… E sobre as casas, através das telhas, A sinfonia bárbara dos gatos. Sonho, Vigília, Noite, Madrugada Fernanda de Castro Sonho, vigília, noite, madrugada? Um a um, desfolhei os sete véus, e adormecido o corpo, a alma acordada, um a um, escalei os sete céus. Sem limites de tempo nem espaço, quanto tempo durou minha viagem? Andei mundos sem dor e sem cansaço, ficou, em meu lugar, a minha imagem. Agora, de regresso, cumpro a pena. Tudo esqueci dessa abismal distância mas algo é diferente: volto à arena com uma nova inocência, um gosto a infância. Serena, com uma paz desconhecida, aceito, sem revolta, a humana sorte: viver, da Vida, esta pequena vida, morrer, da Morte, esta pequena morte. Fim de Outono Fernanda de Castro Fim de outono... Folhas mortas... Sol doente... Nostalgia... Tudo seco pelas hortas, Grandes lágrimas no chão Nem uma flor pelos montes, Tudo numa quietação Soluça numa oração O triste cantar das fontes. Fim de outono... Folhas mortas... Sol doente... Nostalgia... A terra fechou as portas Aos beijos do sol ardente, E agora está na agonia... Valha à terra agonizante A Santa Virgem Maria! Fim de Outono... Folhas mortas... Sol doente... Nostalgia... Mulher Perdida Fernanda de Castro Mulher Perdida Boneca partida, que aconteceu à tua vida? Ave caída, ninguém te disse que é bela a vida? Quem te mandou, asa ferida, brincar com a vida? E hoje, perdida, quem te há-de achar? A morte ou a vida? Menina Perdida Fernanda de Castro Menina Perdida Menina perdida no bosque da vida. Os olhos desertos, os gestos errados, os passos incertos, os sonhos cansados. Menina perdida, desaparecida nos longos caminhos de pedras e espinhos. Cabelos molhados, pés nús, alma exangue, vestidos rasgados, mãos frias, em sangue. Menina encontrada na berma da estrada. Andava perdida mas já foi achada, de branco vestida, de branco calçada. Menina perdida no bosque da vida. Amo as Palavras Fernanda de Castro Amo as palavras. Não, não amo as palavras, amo os símbolos. A Lua é talvez um planeta, mas a lua que eu amo, nimbada de luar, é a lua inventada, algo de branco, puro, inacessível, algo para cantar quando o silêncio, a noite, a solidão, são lágrimas de sangue que o Poeta se recusa a chorar. Urgente Fernanda de Castro Urgente é construir serenamente seja o que for, choupana ou catedral, é trabalhar a pedra, o barro, a cal, é regressar às fontes, à nascente. É não deixar perder-se uma semente, é arrancar as urtigas do quintal, é fazer duma rosa o roseiral, sem perder tempo. Agora. Já. É urgente. Urgente é respeitar o Amigo, o Irmão, é perdoar, se alguém pede perdão, é repartir o trigo do celeiro. Urgente é respirar com alegria, ouvir cantar a rola, a cotovia, e plantar no pinhal mais um pinheiro. O Chiado Fernanda de Castro «Rua Garrett», dizem as esquinas, mas que importa o que dizem os letreiros, Chiado sempre moço das meninas, dos ourives, dos chás e dos livreiros? Chiado imenso que em dois palmos cabe, pedacinho do mundo a palpitar... Coração da cidade que nem sabe do que é feito esse encanto singular. Espelho de mil faces que reflecte imagens duma raça em movimento... Corpos vibrando em longo "tête-à-tête"... Cabeleiras desfeitas pelo vento. "Vitrine" em que os olhares das mulheres tomam a forma incerta dum desejo... De cada montra nascem mil prazeres... Anda no ar a vibração dum beijo Ali perto - canteiro da cidade - A alma dos jardins, cativa, dorme. Uma rosa desfaz-se em claridade... Murcham avencas sob um cacto enorme... Na montra dos brinquedos - um cartaz para os olhos purinhos dos bebés - Um palhaço com ar de Ferrabraz faz as delícias dum menino inglês. Nos ourives as jóias são punhais. As pedrarias ferem como balas. Há fluidos perturbante e sensuais na morbidez perversa das opalas... "Rua Garrett", dizem as esquinas, mas que importa o que dizem os letreiros, Chiado sempre moço da meninas, dos ourives, dos chás e dos livreiros? Quem pudera, Cecília!* Fernanda de Castro Tenho fome de campo e de verdura, De terra bem lavrada, E sede, muita sede de água pura. Quero pegar no cabo de uma enxada, Quero cheirar os troncos e as raízes, Pisar, descalça, a terra ainda molhada, Ver, nas noites, o rasto das perdizes. Já Cecília Meireles o dizia, Com imenso carinho: “Portugal não tem campo, tem campinho.” E ria, ria, Rasgando as mãos nas silvas, Comendo amoras, colhendo malmequeres, madressilvas. Tinhas razão, Cecília. Em Portugal, as estações são festas, São festas de família, Enfiadas, colares de alegrias; Na Primavera as flores; Os frutos no Verão, e as romarias; No Outono o vinho novo e o ritual Profano das vindimas; No Inverno, A mística alegria do Natal, As portas bem fechadas, A lenha a crepitar E as rabanadas. Quem pudera, Cecília, quem pudera, Mandar-te para lá, para onde estás, Um raminho da nossa Primavera. (*) - poetisa brasileira Cecília Meireles A Velha Fernanda de Castro A Velha tinha uma saia de remendos de vida remendada e um lenço branco de cabelos brancos na cabeça cansada. A Velha tinha uma cara de fomes e de penas amassada, e um corpo todo aos nós de árvore seca, de planta mal regada. A Velha tinha um olhar de estrela morta, de luz apagada, e duas mãos de terra por lavrar, de cortiça queimada. A Velha tinha uma voz de fio de água, de fonte calada, e uma boca sem dentes e sem lábios, de estátua mutilada. A Velha tinha uma alma de farrapos de vida alinhavada. A Velha tinha uma alma e não tinha mais nada. O Saco de Retalhos Fernanda de Castro Velho saco, onde estavas? No baú das coisas mortas, esquecidas como tu? Guardado na gaveta como as sedas, as cassas, os ramos de violeta, a poeira e as traças? Velho saco, onde estavas? Pendurado numa daquelas portas que um dia se fecharam sobre a infância, o passado, e nunca mais se abriram? Ou no sótão, na trouxa dos farrapos, misturado com os trapos? Velho saco dos tempos esquecidos, nos teus retalhos desbotados reconheço os meus bibes, as chitas e os percais dos meus vestidos. Estes velhos riscados foram saias, corpetes, aventais de criadas que então eram meninas. E estas cambraias, estas sedas finas, usou-as minha mãe. Ó velho saco, feito de retalhos, rever-te fez-me bem. Este linho desfeito, remendado, foi lencol de noivado, e quantas vezes te vi pôr na cama, ó minha ama, esta chita vermelha de ramagens. Meu velho saco, meu livro de imagens, rever-te fez-me bem. Não sei, porém, que travo amargo esta alegria tem, que tristeza me fez, que nostalgia, ver surgir na distância a minha infância, descosida, em farrapos, e reencontrar a minha mocidade remendada e puída numa saca de trapos. Ó saco, ó velho saco de farrapos, já não sei, afinal, se ver-te me fez bem ou me fez mal. A Árvore Fernanda de Castro Na Primavera, a Árvore era um ninho de folhas palpitantes como pequenas asas verdes. No Estio, cobria-se de flores, cada ramo era um jardim suspenso. Vinha depois o Outono. As flores mortas eram leito de pássaros. As folhas partiam, esvoaçando, tal borboletas de oiro. Por fim, o Inverno; em vez de folhas, braços nus, troncos mortos, desolada solidão. Mas um dia... Um dia a Primavera voltou com as suas folhas palpitantes como pequenas asas verdes. O Estio, com as suas flores, com os seus jardins suspensos. O Outono, com os seus pomos e as borboletas de oiro das suas folhas a dançar ao vento. O Inverno com os seus musgos, seus descamados braços nus. Mas a Árvore a bela Árvore era sempre a mesma na sua ilimitada confiança. Foi então que aprendi, da Árvore, a lição: A vida é uma longa paciência e uma longa esperança. Até que um Dia... Fernanda de Castro Meus versos eram rosas, lírios, heras, borboletas, regatos, cotovias cantando suas doces melodias, anjos, sereias, ninfas e quimeras. Meus versos eram pombas entre as feras e, na festa das horas e dos dias, ia dançando penas e alegrias e o ano tinha quatro primaveras. E a festa continua... é também festa o cardo e a urze, o tojo, a murta, a giesta, a chuva no beiral, o vento Norte, o gosto a mar, a lágrimas, a sal, até que um dia a vida, a bem ou mal, exausta de cantar me empreste à morte. A Sombra de um Salgueiro Fernanda de Castro Fugi das chaminés. do fumo, que era um denso nevoeiro. e procurei, na beira dum regato. a sombra de um salgueiro. O silêncio, era música do céu; o ar parado, absorto, mas na água tranquila vogava um peixe morto. Primeira Hora Fernanda de Castro O ano desfolhou-se, dia a dia, como uma flor cortada, um girassol, e dia a dia a sua voz calou-se como velha cansada melodia de velho rouxinol. Ontem, à meia-noite, a minha rua abriu de par em par as portas, as janelas, e deitou fora o lixo, as coisas velhas: cacos, farrapos, latas e panelas. Era a Primeira Hora do ano que chegava. - E eu? - pensei - Que posso deitar fora? Que poderemos todos deitar fora? Ai, Senhor, tanta coisa! Nem cacos, nem farrapos, nem latas velhas nem trapos mas tanta dor, Senhor, mal empregada! Tantos gestos errados, as pequenas traições, os pequenos pecados. As calúnias subtis, as flores venenosas da alma envenenada, e a cicatriz da culpa inconfessada, e as palavras que ferem como gumes de afiadas adagas. Ressentimentos, azedumes que Te fazem sangrar as Cinco Chagas. As larvas dos ciúmes e as cobras rastejantes dos pensamentos impuros. Egoísmos sem fim e os altos muros das torres de marfim. Descrença, indiferença, despeitos recalcados, amassados com ódio, com rancor, e o amargo sabor da solidão. Ah, Senhor, nesta hora de perdão, nesta Primeira Hora, quantas coisas podemos deitar fora! Já Não Vivo, Só Penso Fernanda de Castro Já não vivo, só penso. E o pensamento é uma teia confusa, complicada, uma renda subtil feita de nada: de nuvens, de crepúsculos, de vento. Tudo é silêncio. O arco-íris é cinzento, e eu cada vez mais vaga, mais alheada. Percorro o céu e a terra aqui sentada, sem uma voz, um olhar, um movimento. Terei morrido já sem o saber? Seria bom mas não, não pode ser, ainda me sinto presa por mil laços, ainda sinto na pele o sol e a lua, ouço a chuva cair na minha rua, e a vida ainda me aperta nos seus braços. Mais um Dia Perdido Fernanda de Castro Há dias e que tudo é sem remédio, em que tudo começa e acaba torto. Uma folha caiu: era um pássaro morto. Neblina. Fim de tarde. Fim de Outono. Nada nos fala, nos atrai, nos chama. Choveu, parou a chuva, ficou, porém, a lama. Um banco no jardim. Árvores nuas, um cisne velho, um tanque, água limosa, nem a relva ficou, quanto mais uma rosa. Há barcos, há gaivotas sobre o rio, e nas ruas há gente, há muitas casas. Mais um dia perdido: arrancaram-lhe as asas. Educação Sexual Fernanda de Castro
Tenho pena de ti, pobre criança. Em nome da ciência, quantos cruéis abusos de confiança! Roubaram-te a inocência. Sabes tudo o que havias de saber a anos de distância. quando já fosses homem ou mulher, e sujaram-te a infância. Quando Te Dói a Alma Fernanda de Castro Quando estás descontente, quando perdes a calma e odeias toda a gente, quando te dói a alma, quando sentes, cruel, o prazer da vingança, quando um sabor a fel te proíbe a esperança, quando as larvas do tédio te embotam os sentidos, e o mal é sem remédio e a ninguém dás ouvidos, nega, recusa a dor, abandona o deserto das almas sem amor e mergulha o olhar em tudo o que está certo, o mar, a fonte, a flor. Difícil Alquimia Fernanda de Castro Oitenta anos daqui a poucos dias. Parece muito. É imenso, não é nada. Ínfimo grão de pó no pó da estrada. Raminho de Tristezas, de alegrias. Crepusculares, doces alegrias. Por vezes, dolorosa a caminhada, mas sempre, após a noite, a madrugada. Cantos de rouxinóis, de cotovias. De tudo um pouco, assim é que é a vida se a queremos inteira, bem vivida, às vezes vendaval, outras bonança- Bem e mal, noite e dia, riso e dor. Difícil alquimia: espinho e flor, mas sempre aberta a porta da esperança. Um Pássaro a Morrer Fernanda de Castro Não é vida nem morte, é uma passagem, nem antes nem depois: somente agora, um minuto nos tantos duma hora. Uma pausa. Um intervalo. Uma viragem. Prisioneira de mim, onde a coragem de quebrar as algemas, ir-me embora, se tudo o que em mim ria agora chora, se já não me seduz outra viagem? E nada disto é céu nem é inferno. Tristeza, só tristeza. Sol de Inverno, sem uma flor a abrir na minha mão, sem um búzio a cantar ao meu ouvido. Só tristeza, um silêncio desmedido e um pássaro a morrer: meu coração. Testamento Fernanda de Castro Sem lápides, sem chumbo, sem jazigo; caixão de tábuas, derradeira casa, onde repousarei, frágil abrigo, até me libertar num golpe de asa. Então, quando estiver a sós comigo, que ninguém chore porque o choro atrasa, mas que alguém, se quiser, num gesto amigo, ponha roseiras sobre a campa rasa. Será medo o que sinto? Não é medo. Serei, não serei digna do Segredo? Ah, meu Deus, para lá das nebulosas, Mereça ou não a expiação, a dor, entrego-Te a minha alma sem temor. O que resta, o que sobrar, é para as rosas. Meditação Fernanda de Castro Esta noite foi longa. Longa e vária de segredo e mistério. Noite densa. Invisível, tirânica presença povoou a minha noite solitária. Ah, a insónia com longas mãos de opala e fundos olhos cegos! E o pensamento à solta como o vento - montes e vales, oceanos, pegos!... e a cabeça que estala, a cabeça que estala! Pensar! Como se o humano entendimento para tanto chegasse! Meditar em sofás de ridículas saletas no sábio movimento dos planetas. Filosofar, oh irrisão, enquanto mal ou bem se faz a digestão, sobre a morte, o devir, o mistério do ser e do não ser, e tudo isto a sério, sem sorrir, como se enfim tudo estivesse dito: o Caos, a Criação, Deus e o Infinito. E nem sequer escondes por decoro, triste mortal com asas de besouro, ó depenado arcanjo, que te crês Deus ou pelo menos anjo. Esta noite foi longa. Longa em mim, auroral e lunar, sem princípio nem fim. Meditação inútil sobre as grades da prisão. Meditação sobre a existência, (Existirá ou não?, ou será tudo simples aparência, colectiva ilusão?) Esta noite foi longa. Longa e bela, calma e branca vigília. Um fio de luar entrou pela janela e um doce cheiro a tília. Abstracções metafísicas, problemas? O firmamento era um brocado azul bordado a ouro, fabuloso tesouro de incomparáveis gemas. Tudo era silêncio, quietação. Compreendi então que o essencial não era compreender mas sentir e aceitar a vida e a morte, o bem e o mal, a flor, o luar e a ignorância total. Não mais filosofias de vaidoso esteta e não mais este orgulho: sou poeta. Razão tem-na, talvez, o louco sem razão, tem-na o monge na cela, o cego de nascença, a pedra, o sapo, a boneca de trapo. O mais é tudo igual: poetas, corifeus... Esta noite foi longa. Longa e bela. Encontrei Deus. O Segredo é Amar Fernanda de Castro O segredo é amar. Amar a Vida com tudo o que há de bom e mau em nós. Amar a hora breve e apetecida, ouvir os sons em cada voz e ver todos os céus em cada olhar. Amar por mil razões e sem razão. Amar, só por amar, com os nervos, o sangue, o coração. Viver em cada instante a eternidade e ver, na própria sombra, claridade. O segredo é amar, mas amar com prazer, sem limites, fronteiras, horizonte. Beber em cada fonte, florir em cada flor, nascer em cada ninho, sorver a terra inteira como o vinho. Amar o ramo em flor que há-de nascer, de cada obscura, tímida raiz. Amar em cada pedra, em cada ser, S. Francisco de Assis. Amar o tronco, a folha verde, amar cada alegria, cada mágoa, pois um beijo de amor jamais se perde e cedo refloresce em pão, em água! Alegria Fernanda de Castro De passadas tristezas, desenganos amarguras colhidas em trinta anos, de velhas ilusões, de pequenas traições que achei no meu caminho..., de cada injusto mal, de cada espinho que me deixou no peito a nódoa escura duma nova amargura... De cada crueldade que pôs de luto a minha mocidade... De cada injusta pena que um dia envenenou e ainda envenena a minha alma que foi tranquila e forte... De cada morte que anda a viver comigo, a minha vida, de cada cicatriz, eu fiz nem tristeza, nem dor, nem nostalgia mas heróica alegria. Alegria sem causa, alegria animal que nenhum mal pode vencer. Doido prazer de respirar! Volúpia de encontrar a terra honesta sob os pés descalços. Prazer de abandonar os gestos falsos, prazer de regressar, de respirar honestamente e sem caprichos, como as ervas e os bichos. Alegria voluptuosa de trincar frutos e de cheirar rosas. Alegria brutal e primitiva de estar viva, feliz ou infeliz mas bem presa à raíz. Volúpia de sentir na minha mão, a côdea do meu pão. Volúpia de sentir-me ágil e forte e de saber enfim que só a morte é triste e sem remédio. Prazer de renegar e de destruir o tédio, Esse estranho cilício, e de entregar-me à vida a um vício. Alegria! Alegria! Volúpia de sentir-me em cada dia mais cansada, mais triste, mais dorida mas cada vez mais agarrada à Vida! Trova: "Já nos confins da lembrança o meu passado se esfuma, como se tudo o que foi não fosse coisa nenhuma."