CARMO VASCONCELOS (Portugal)

































De Menina a Mulher
Carmo Vasconcelos

De menina-botão a mulher-flor,
desabrochaste por decretos santos,
de irisado matiz hauriste a cor,
e ornada de asas, redobraste encantos.

Avezinha sagaz, voando em espantos,
o mundo descobriste ao teu redor,
pisaste o vale, alçaste a picos tantos,
e elegeste o meio-céu, teu corredor.

Não quiseste ser águia lá na altura,
nem pássaro na pedra enlodaçada,
assisada, pairaste na planura.

De lá emanas trinados de doçura,
mater do amor, vestal no céu talhada,
Ave-Mulher, plasmada de ternura!


NÃO CHORES, POESIA!
Carmo Vasconcelos

Não chores, poesia, minhas ausências,
se na tristeza em lágrimas te deixo…
Porque breve é meu aparto e meu desleixo
na urgência de abraçar outras carências.

São desta vida esparsa as contingências,
que me afastam de ti, divinal eixo,
levando-me a rolar, inquieto seixo,
por areias rendilhadas de envolvências.

Mas sempre volto, amada flor, e ajoelho
com alma de menina arrependida,
a pôr-te aos pés meus versos de amor velho.

E tu serás, das flores mais dilectas,
a eleita que levada na partida,
hei-de plantar no azul astral dos poetas!


IMITAÇÃO DO AMOR
Carmo Vasconcelos

“Crescei e multiplicai-vos”
(Bíblia – Gen. 1.28)

Por que endeusar suposto amor feito inconcreto,
quando distante, sem carícia, beijo ou mão,
não satisfaz o nosso amante coração?
Se na lonjura morre o amor por incompleto?

Manter, assim, a imitação de um vero afecto,
ausente o pele-a-pele, erótica emoção,
é demitir-se da sensual lei da atracção
que nos conduz ao verdadeiro par dilecto.

É caminhar em vão na fosca irrealidade,
que a carne não se compadece em divindade
nem santifica a condição de seus apelos…

Requer a nossa humanidade, firmar elos
gratificantes de alma e corpo, em dualidade,
que a Lei de Deus desdiz o amor em castidade!


FLORES E CITRINOS
Carmo Vasconcelos

Uma aquarela anil de flores e citrinos
lembrou-me a vida ajardinada de azedumes…
É sábio o Cosmos… e a nós, meros peregrinos,
não nos é dado a Lei mudar nem seus costumes.

Por aqui vamos a provar fel e doçuras,
aproveitando da jornada os seus sabores
que, se num dia nos mostra apenas amarguras,
noutro, mergulha-nos num rio de mel e amores.

Porque se tudo sabe a doce o enjoo é fatal,
e se a amargura não voltasse em seu momento,
jamais se tinha o contraponto desse sal,
a temperar nossa existência em crescimento.

Como negar o dedo sábio da alternância,
quando do caos surgem arroubos de alegria?…
Vede que igual a natureza, em inconstância,
sempre engravida a noite escura d’alvo dia.

Vede a maré alta que sepulta a baixa-mar,
o divinal calor que amansa o rude frio,
a paz, depois de agre procela se acalmar,
e o mar que faz-se lago, após ondear bravio.

Louvemos essa miscelânea: riso e dor,
façamos nosso aprendizado co’a alternância,
divina Lei do Deus Supremo… que d’amor
pla Humanidade, faz constante essa inconstância!


MUSA AMADA
Carmo Vasconcelos

Por que me tentas ora que estou cheia
do verde dia que a minha mente enrama
- tecedura da vida que me chama
aos elos da terrena e crucial teia?

Acerta o teu relógio, musa amada,
que de versos agora estou vazia,
não te marquei encontro, poesia,
espera-me logo à noite enluarada!

Preciso se me faz beijo de estrelas;
abraço do universo que me inspira;
astros a copular co’a minha lira!

Se extasiada me vires p’las janelas,
vem então, musa amada, meiga e nua,
e ao teu toque d’amor me farei tua!


ACORDA, MULHER!
Carmo Vasconcelos 

Acorda, acorda, Mulher!
Donde vieste?...
Porque trouxeste contigo 
essa alma-sonho,árvore, água, pássaro,
que te impede de viver?...
Não vês que não consegues
caminhar com ela ao lado
que ela atropela os teus passos?...
Soterra essa predadora de utopia
põe-lhe mordaça e algemas
esconde-a ou mata-a, se necessário!

Depois, caminha sozinha
finge que és apenas corpo
só sensualidade e concupiscência
e terás, enfim, o amor dos homens!
Ama-os como só tu sabes amá-los
bebe-lhes o sangue e os desejos
sacia-lhes a carne
e jamais chorarás homem algum!
Pois só te restarão lágrimas para chorar
essa alma-sonho, árvore, água, pássaro
que tu própria assassinaste

RECOLHIMENTO
Carmo Vasconcelos

Hoje sou aquela… a que sepulta
Palmas, louvores, risos, ironias
Quero santos ofícios, elegias
Abrir a sacra catedral oculta

Quero sinos tocando a rebate
Eco de meus lamuriosos ais
Quero beber as mágoas dos mortais
Alimentar a dor que em mim se abate

Ser surda a qualquer hino de alegria
Ajoelhar em réquiem de finados
Dar campa aos meus amantes desamados

Carpir a vida breve e fugidia
Pôr luto pela morta felicidade
E recolher-me em ti… nesta saudade


RUMO À INCERTEZA
Carmo Vasconcelos

Tu és a minha aventura
aonde rumo insegura
caminhando sobre brasas...
Não sei se és anjo ou carne
se me angelize ou se incarne
se vá com pés ou com asas
 
Angustiante incerteza!
Não sei se és cama ou mesa
se és corpo inteiro ou só mão...
Se és paraíso ou inferno
ou se em ambos me interno
perdida sem remissão
 
Só sei que és minha aventura
meu oásis de ternura
num deserto de castigo...
Sobre nuvens ou calhaus
rumando aos céus ou ao caos
só sei que nela prossigo!
 

ERUPÇÃO
Carmo Vasconcelos

Teus olhos, dois lagos calmos,
parecendo entoar salmos
aos céus azuis seus iguais…
Serenos e repousantes,
escondem lavas borbulhantes
querendo evadir-se em caudais!

Que a terra em revolução
deixe irromper o vulcão
que queima as tuas entranhas…
E que enrubesçam os lagos
ante fusões tão estranhas
como água e fogo entre afagos!


SONETO À PRIMAVERA
Carmo Vasconcelos

Desabrochadas, minhas rosas amarelas
São doce imagem de formosa alegoria,
A me lembrar noites banhadas de euforia
E de extasiados sonhos, rútilos de estrelas!

Ao despertar, pintam-me cor n’alvas manhãs
Em que, de longe, chegam rufos de tambores  
A convidar à floração castos amores
De similares seivas, prístinas irmãs!

Porém se as toca a brisa, imploram-me água perto;
O marginar de um rio que afoito corra certo
A acarinhar a terra madre que o venera!

E mais segredam minhas rosas amarelas:
Que uma Divina inspiração se serviu delas
Pra consagrar, maravilhosa, a Primavera!


BICHO-AMOR
Carmo Vasconcelos

Há uma dor perfurante no meu peito,
Urze que fere mas não deita sangue,
Verme oculto o bebe e me deixa exangue,
Ao nutrir-se de insónias no meu leito.

Bicho-amor, insistente na porfia,
Mói-me as entranhas quando desatina,
Meus nervos dana, minhas forças mina,
E ao mesmo tempo é bem que acaricia.

Tento acalmá-lo com a voz de quem
De longe rasga versos escarlates,
Mimos d’enlace em rendas de açafates…

Mas pede mais… Voraz, não se contém!
Devora-me alma e sangue e não fraqueja,
Na gula desse par-amor que almeja!


TEU BEIJO
Carmo Vasconcelos

O teu beijo é hoje qual ósculo na bruma
Do triste ocaso desse enlace deslaçado,
Que as bruscas voltas dum tufão inopinado
Tornou sepulto como folha na caruma.

Foi como um ovo rapinado ao mel do ninho,
Pena abortada pla nortada desabrida,
Sonho afogado na maré brava e renhida,
Passo truncado nos percalços do caminho.

Mas se teu beijo regressar noutro tufão,
Qual diabo à solta da voragem ressurgido,
A língua ardente da saudade em convulsão…

Sei bem que em fúria nossos lábios aguerridos
Se hão-de vingar da fatalista sujeição
Ao devorarem-se em desejos incontidos!


DÚVIDA
Carmo Vasconcelos

Hoje, falido amor, fizeste-me chorar!
Lágrimas quentes que sabemos não mereces,
E pra calá-las solto aos deuses minhas preces
Pra que a memória se desfaça ao recordar.

São negras vagas espumadas de ousadia,
Lamas submersas vindo à tona sem premissas,
Jangadas velhas, invasivas, metediças,
A perturbarem o meu mar de calmaria!

E nesse pranto, amargo sal, me recrimino
Pla inconcebível e incurável desrazão
Deste meu doido e vulnerável coração…

E entre pesar e contrição eu congemino…
Se o que mais dói, silente, e gera mor sofrer,
É minha mágoa, ou teu remorso a te doer?…


MULHER FATAL
Carmo Vasconcelos

Pobre mulher fatal e tão vazia!
Fêmea ondulante em rendas e cetim,
Avis rara, boneca de pasquim,
Toda ela é simulacro e fantasia.

Madeixas coloridas, rubra boca,
Olhos em alvo, a todos dizer sim,
Fez do viver um álgido festim  
Imersa em vanidade e estima pouca.

Já lhe ferem a pele os gestos ávidos
Dos machos esfomeados de luxúria
Ante o seu corpo de êxtases impávidos!

Vendeu-se a troco reles de prazer,
E agora, corpo gasto e alma espúria,
Só deseja partir… Pra renascer!


MINHA POESIA
Carmo Vasconcelos

És a filha que trago na barriga
gerada nem eu sei há quantos anos…
Oculta neste ventre que te abriga,
sustida plo cordão dos desenganos!

Semente, grão em mim inseminado,
óvulo fecundado em letargia,
morosa gravidez, parto adiado,
que lentamente dou à luz do dia!

Me alegra que tu vás nascendo aos poucos,
com gritos de triunfo em cada dia,
com risos, choros, ou gemidos roucos,
sejam de espanto, dor ou alegria!

Acorda-me do sono que dormi,
liberta-me do sonho-pesadelo,
bebe-me o seio e cantarei pra ti
o que guardei de mais sublime e belo!

Meu bem, meu tesouro, meu unguento,
minha fonte, meu pão, minha utopia,
meu vinho, lenitivo e esquecimento,
meu alento e estrela que me guia!


PRECARIEDADE
Carmo Vasconcelos

Esta vida é uma passagem,
curta etapa duma viagem
que ruma à finalidade…
Aqui tudo é transitório,
todo o poder é ilusório,
reina a precariedade.

Toda a fama é passageira
que se escapole ligeira
como água foge da mão…
E o que se julga imutável
tem mudança inevitável
em futura concepção.

Nada se queda no tempo,
nem risada nem lamento,
tudo é uma breve ilusão…
Até o revés sofrido
perderá o seu sentido
face a uma nova emoção.

Como essa guerra dantesca,
infernal e gigantesca,
que tantas vidas ceifou…
Tempo volvido é lembrança,
sepultada pla esperança
do povo que ela marcou.

Nesta esfera alucinante,
tudo é móvel, inconstante,
rotação e translação…
E o que ontem cegou o mundo
com o seu brilho profundo,
hoje é já escuridão.

E também nós, desta lida,
pra vida desconhecida
vamos ter transmutação…
Como uma estrela mais bela
não passará de uma vela
nos tempos que advirão.

Por que então tamanha guerra
por um pedaço de terra,
por que matar nosso irmão?…
Se à terra nós volveremos
e dela nos bastaremos,
tornados apenas chão!


MEU NOVO AMOR
Carmo Vasconcelos

Chegas-me de surpresa neste Inverno!
Como me adivinhaste assim tão só,
Mordendo da saudade o amargo pó,
Roçando o cio nas grades deste  inferno?

Quem te mandou?… Demónio ou zelo de anjos?
Trazes néctar dos deuses nos teus beijos;
No mel da voz, hipnóticos arpejos,
Mescla de harpas e cítaras com  banjos!

Mas… não sei se te quero ou mando embora,
Se me entrelaço ao róseo desta aurora
Ou se me solto às sombras do poente…

Somar bisado arco-íris na memória,
Dos tais que chuva intrusa rouba a glória?…
– Não sei, meu novo amor, sinceramente!

RUGAS
Carmo Vasconcelos

Em cada ruga houve um caminho percorrido,
Em cada estria outra jornada sem avesso,
Marcas de um tempo irreversível e pregresso,
Fundos sinais de antigo carma já vencido.

Todas afago sem revolta e sem lamentos,
E bendizendo-as me desdobro em oração,
De alma ora leve e apaziguado coração,
Grata e liberta de penhores e tormentos.

Esculturais sulcos divinos a lembrar
Que o purgatório tem morada permanente
Aqui na Terra onde se saldam fatalmente
Dívidas cármicas deixadas por pagar.

Outrora filhas de actos vãos, irreflectidos,
As minhas rugas, mais que contas liquidadas,
São no presente as mães de luz, purificadas,
Destes meus versos, de pecado redimidos.


PAZ NO MUNDO
Carmo Vasconcelos

Jamais se alcança a paz entre o tumulto
Do egoísmo em desmedida proporção,
Qual ópio que embebeda o coração
E doa à mente errada falso indulto.

A paz é agasalho dado ao imo,
Oferta da tranquila consciência,
Quando usa a plena acção, sem contundência,
E do amor faz bordão de fiel arrimo.

Ausente a paz, soçobram as nações,
Esmorecem as almas em martírio,
E sucumbem os corpos em delírio!

Livremo-nos de fúteis ambições;
Supremacias vãs – solo infecundo…
E pintemos de Paz o mapa-Mundo!

ODES, PARTITURAS E DELÍRIOS
Carmo Vasconcelos

Amo as palavras, meu amado, como sabes…
Quer sejam elas, prosa, verso, ou vã canção,
Pois trazem suave e doce arejo onde tu cabes,
Mas não me calam estes ais do coração!

O vento leva sensações em que me afundo,
Remoinho etéreo quais aromas que se esfriam
Ao me roçarem quando espalhas pelo mundo
A luz fugaz de alados versos que inebriam!

É desse olhar, bem “vis-à-vis”, o que preciso,
E dessa mão a desenhar, sem rumo e siso,
Ternas carícias plo meu corpo a te esperar;

Na minha a tua boca em solfejo de encantar,
E a compor odes, partituras e delírios,
Teu falo em riste a consolar os meus martírios!

2 comentários:

  1. "Porque se tudo sabe a doce o enjoo é fatal,
    e se a amargura não voltasse em seu momento,
    jamais se tinha o contraponto desse sal,
    a temperar nossa existência em crescimento." Poeta Carmo Vasconcelos, muito bem mostras tuas raízes correspondendo aos sábios e destacáveis poetas portuguêses. Parabéns! Raquel Nonatto

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  2. Caríssima poetisa Carmo Vasconcelos . Estive aqui no Blog “Expressão Mulher” e visitei a sua linda página. Parabéns pelas lindas obras que você oferece aos leitores internautas sedentos de boas leituras. Um forte abraço -Sardenberg

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