* MARQUESA DE ALORNA (Portugal)



“Apesar de se tratar de uma das raríssimas mulheres escritoras mencionadas pelos historiadores da Literatura Portuguesa desde o século XIX, D. Leonor de Almeida Portugal, 4ª. Marquesa de Alorna, é uma autora cuja vida e cujas obras permanecem, em grande medida, desconhecidas. Podemos atribuir este estado de cousas a dois factores fundamentais: em primeiro lugar, ao escasso conhecimento da sua produção escrita (as suas poesias foram publicadas na íntegra uma única vez, em 1844, numa edição há muito esgotada, e uma parte significativa de sua obra e da sua correspondência continuam inéditas) e, em segundo lugar, ao facto de muitos aspectos do seu pensamento e do seu percurso intelectual e social constituírem desvios aos comportamentos femininos mais correntes e mais aceitáveis na época em que viveu.”
                           (Vanda Anastácio, 1º. parágrafo à página 11)

“A ortografia da Marquesa de Alorna é, em grande medida, o reflexo de hábitos de escrita da sua época.Como se sabe, até ao início do século XX, não existiu uma norma ortográfica clara para os textos de língua portuguesa o que se traduziu, na prática, numa ampla oscilação no modo de representar os seus sons, especialmente notória para o leitor de hoje quando encontra, para uma mesma palavra, diferentes grafias. Também no que diz respeito à pontuação, à acentuação e ao uso de maiúsculas perduraram, até época relativamente recente, práticas consideravelmente diferentes do uso actual.
Nesse contexto, não surpreende que se observem, nos escritos de D. Leonor de Almeida, múltiplas realizações gráficas para um mesmo vocábulo mas, tratando-se de alguém que teve uma formação essencialmente livresca, torna-se impossível saber em que medida as soluções que escolhe provêm de fontes escritas ou correspondem à fixação fiel do seu modo de pronunciar o português. A este aspecto, acresce o facto de nos parecer que a ortografia era um campo acerca do qual a Marquesa não sentia grande segurança, como se deduz da observação seguinte, incluída por D. Leonor de Almeida em carta enviada do convento ao pai, na década de 1770:

“esquecia-me falar na ortografia; tudo que V.Exa.me dis estimo e se acazo sem muito trabalho me puder ir dando lições estimo-as muito; eu não tenho cá pessoa que me diga nada.” (Aspas inseridas pelo EM)

(Vanda Anastácio, 1º. parágrafo à página 73 – Critérios de Edição)





     1.
     Feito na Cêrca de Chelas 
     (primeiro soneto composto pela Marquesa de Alorna)

Deitei-me sôbre a fresca relva um dia,
E dando a um sono leve alguns instantes
C’os prazeres sonhei, que lá distantes
Debuxava a estragada fantasia.

Saturno vagaroso me trazia
Um diadema de lúcidos diamantes,
Entramado de mirtos odorantes,
O qual Cípria na fronte me cingia.

A Fortuna risonha se mostrava,
Mas no disco da roda vacilando,
Voltando-a, me levou quando eu sonhava.

Já Délio para os mares ia olhando,
E Bóreas, que raivoso murmurava,
M’acordou, como dantes, suspirando.


     2.
     Feito ao pé de uma oliveira, na cerca

Que me falta? A vida me sobeja,
Obséquios da fortuna não espero,
Nem riquezas, nem gostos eu já quero,
Nem quanto pelo mundo se deseja.

Vive o homem feliz, não tenho inveja,
Se desgraçado, não me desespero,
E em quanto no mundo considero,
Sempre indif’rente estou, seja ou não seja.

De glórias e paixões o peito isento,
Não sinto nem prazer, nem pena intensa,
Que mais tarde ou mais cedo as leva o vento.

Nem disso quero outra recompensa
Que o conservar-me o Céu o pobre alento,
Pois com ele conservo esta indif’rença.


     3.

Sobre as margens de um rio, que fugindo
O seu centro procura velozmente,
Estou gozando o prazer mais inocente,
A vida mais feliz estou possuindo.

Imagino que os ecos estão sentindo,
Armila nomear finjo contente,
Que cedendo uns aos outros brandamente
Seu nome me vão sempre repetindo.

Que os Zéfiros s’escutam sussurrando,
Que as aves desafiam com ternura
Uns suspiros que a selva estão magoando.

Depois não sei que afecto, ou que doçura
Se me vai dentro d’alma derramando,
Que adormeço forçada de brandura.


     4.

Junto às margens de um rio docemente
Com meus suspiros altercando,
A viva apreensão ia pintando
Passadas glórias no cristal luzente.

Mas quando nesta ideia mais contente
O coração se estava recreando,
Despenhou-se do peito o gosto brando,
Envolto com a rápida corrente.

Lá vão parar meus gostos no Oceano,
Ficando inanimado o peito e frio,
Que o recreio buscou só por seu dano.

Acabou-se o contente desvario,
E meus olhos saudosos do engano 
Quase querem formar um novo rio.


     5.
     Petição à melancolia para que se acabem certos dias de festa

Tu, Deusa tutelar da solidão,
Amável sombra, oh melancolia,
Aproxima-te, rouba-me a alegria
Que turba a suavidade ao coração.

Não prives o meu peito, Ninfa, não,
Da tua triste e doce companhia,
Qus suspira por ti um e outro dia
Quem de amar-te só faz consolação.

E não pode a que vive suspirante
Viver entre o tumulto muito espaço,
Sem que faça o seu mal mais penetrante.

Atende, oh Ninfa, o rogo que te faço:
Não demores mais tempo o doce instante,
Os dias tristes, que eu tão triste passo.


     6.

Retratar a tristeza em vão procura
Quem na vida um só pesar não sente.
Porque sempre vestígios de contente
Hão-de apar’cer por baixo da pintura.

Porém eu, infeliz, que a desventura
O mínimo prazer se não consente,
Em dizendo o que sinto, a mim sòmente
Parece que compete esta figura.

Sinto o bárbaro efeito das mudanças,
Dos pesares o mais cruel pesar,
Sinto do que perdi tristes lembranças:

Condenam-me a chorar e a não chorar,
Sinto a perda total das esperanças,
E sinto-me morrer sem acabar.


     7.
     Estando presa em Chelas

Escuro Céu, cravado de diamantes,
Onde o leite de Juno em soltas gotas
Reluz, desde essas plagas tão remotas,
‘Té aos olhos dos térreos habitantes.

Se o reflexo dos astros cintilantes
Tão longe dividindo os ares brotas,
Saídos das entranhas minhas rotas
Cheguem lá meus suspiros anelantes.

Tu, que reges o mundo, Autor de tudo,
Ouve o aspérrimo som desta cadeia,
Envergonha com ele o Fado rudo.

Manda cá aba’xo, alguma Semideia,
Não Mercúrio, nem Hércules nembrudo
Se quiseres soltar-me manda Astreia.


     8.
     A uns anos

Já rasgado da noite o obscuro manto,
Nova luz, nova graça traz o dia,
Espalha sobre as flores alegria
A aurora,suspendendo o terno pranto.

Os pássaros entoam novo canto,
Nas liras há também nova harmonia,
Até eu, triste asilo d’agonia,
Me transporto no mais suave encanto.

Um novo assombro, a obra mais polida
Da virtude, da glória e da grandeza
Começou neste dia a ilustre vida.

É tua alma este assombro de beleza;
Tu és o heróico objeto, Margarida,
Que hoje tanto enobrece a Natureza.


     9.
     Ao mesmo assunto

Que harmônico ruído estou sentindo,
Que os ares brandamente vem rompendo?
São Gênios, que do Céu estão descendo,
E ao Natal duma Ninfa presidindo.

Margarida contentes repetindo,
Aos corações mil glórias prometendo;
Nas cavernas os ventos supendendo,
No berço tenras flores esparzindo.

Ah, cara Margarida! E se soubesses
O gosto que produz dentro em meu peito
Imaginar os bens que tu mereces!...

Aceita da amizade o puro efeito,
E se a todos os bens não excedesses,
Dos bens te desejaria o mais perfeito.


     10.

Bem como se perturba a clara fonte
Na agitação contínua da corrente,
A minha alma sossego não consente,
Por mais que nos meus ais ânsias desconte.

De cuidado em cuidado, monte em monte
Me leva este pesar, que o peito sente;
Sempre diviso aflita, descontente,
Os princípios da luz pelo horizonte.

De que vem este mal? Um mal tão claro
Vem de um vago sentir que n’alma pesa:
Amor! Serás comigo sempre avaro?

Amor em mim é filho da tristeza!
Eu sinto o coração ao desamparo...!
Pune, ó Deus! Pelas leis da natureza.


     11.
     A uma despedida

As horas voadoras vão trazendo
O instante fatal de uma partida,
Que dos gostos ligeiros desta vida
Um retrato funesto está fazendo.

A sociedade amável entretendo 
Escreve a paz (por pouco possuída);
Que em mágoa pela dura despedida
No aflito peito sinto ir convertendo.

Com que horrores a pálida tristeza
Cobre o círculo breve dos meus anos,
Martiriza a sensível natureza!

Como havendo pesares tão tiranos,
E almas nobres, que adorna a singeleza,
São tão poucos os santos desenganos!


     12.
     Feito na cerca, onde trabalhavam uns homens na agricultura

Feliz esse mortal que se contenta
Com a herdade dos seus antepassados,
Que livre de tumulto e de cuidados
Só do pão que semeia se alimenta.

Dentre os filhos amados afugenta
A discórdia cruel; vê dos seus gados,
Sempre gordos, alegres, bem tratados,
Numeroso rebanho que apascenta.

O trono mais ditoso é comparável
Ao brando estado deste que não sente
De um espectro de ouro o peso formidável?

O que vive na Corte mais contente
Provou nunca um prazer tão agradável
Como o deste Pastor pobre, inocente?


     13.
     Dizendo-me uma pessoa que eu nunca havia de ser feliz

Esperanças dum vão contentamento,
Por meu mal tantos anos conservadas,
É tempo de perder-vos, já que ousadas
Abusastes de um longo sofrimento:

Fugi; cá ficará meu pensamento
Meditando nas horas malogradas,
E das tristes, presentes e passadas,
Farei para as futuras argumento.

Já não me iludirá um doce engano,
Que trocarei ligeiras fantasias
Em pesadas razões do desengano.

E tu, sacra Virtude, que anuncias
A quem te logra, o gosto soberano,
Vem dominar o resto dos meus dias.


     14.
     Partindo Piério(*) para Salvaterra
     e deixando-nos cheias de Saudades

Desde que vi brilhar a madrugada
Até ’gora, que o puro sol s’esconde,
Procuro a minha lira, e não sei donde
Algum maligno Génio a tem guardada.

Musa! Clamo sentida, magoada;
Nem Musa, nem Apolo me responde:
Aonde estais, pergunto, estais... aonde...
Replicam ecos, sem me aclarar nada.

Quero cantar tristíssimas saudades,
Que se ausenta Piério... Oh, sorte dura!
Quando com isto afliges três vontades?

Porém, chorando a ausência, é vã loucura
Invocar as Pindáricas Deidades,
Que melhor provam lágrimas fé pura.
_______________

(*) – o irmão da Marquesa de Alorna


     15.
     Recebendo Piério muita honra na companhia
     d’el-Rei em Salvaterra

Piério, tu que logras a ventura
De ver benigna a face do Sob’rano,
Compadece-te lá do acerbo dano
Que nos cerca apesar da fé mais pura!

Não turbes dos prazeres a doçura,
Mas tira saudável desengano
De ver fugir um ano e outro ano,
Enquanto nos persegue a sorte escura.

Vê com q8uanta incoerência os bens reparte
A Fortuna, que injusta oprime o todo,
Bem que respeite em ti a melhor parte:

Aceita o seu favor de qualquer modo;
Mas não te fies dela de tal arte,
Que te esqueça que o bem terreno é lodo.


     16.
     Arguindo-me várias pessoas
     de fazer versos sempre tristes

Como posso explicar em brando verso
Doce prazer, se o peito nunca o sente?
Musas, vós não ditais ao descontente
Senão queixas do seu fado adverso?

Linda cena, espetáculo diverso
Embora alegre o mundo me apresente
Que em luto, isto que choro amargamente,
Me sepulta o vastíssimo Universo.

Jamais um dia alegre me afigura
A incerta e voadora fantasia,
Que a mágoa o não transborde em sombra escura.

Que quereis que vos diga da alegria,
Se vítima da negra desventura
Sirvo sempre a cruel melancolia?!


     17.
     Tristeza

Ideias que em desgosto exercitas
Te rodeiam de espectros, e de medos
Curvada, e sotoposta aos penedos,
Que fazes, Lise(*) Triste, que meditas?

Cercam-te os ais de vozes mil aflitas,
Vês partidos dos raios os rochedos;
Em rudes troncos, densos arvoredos,
Que vês, Lise, senão mágoas escritas?

Foge daqui, Pastora, que a tormenta
Que em sítio cruel te tem cercada,
Ainda mais com teu pranto se acrescenta.

Vê do trovão a nuvem carregada,
Teme os coriscos que entre si fermenta,
Escuta o negro mar que ao longe brada.
_______________

(*) – um dos pseudônimos literários utilizados pela Marquesa de Alorna, tal como Laura, Lília e Alcipe


     18.

Se aqui neste lugar me afigurassem
O ladrador trifauce a boca abrindo,
Ir os mares ao Tártaro seguindo
Com ladros tais que os montes se abalassem;

Se nas côncavas grutas retumbassem
Dos que na eterna noite vão caindo
Os tristes ais, que os ares vem ferindo,
E as fúrias enormes se mostrassem;

Se de Tício o tormento eu padecesse,
Se de Tântalo a sede suportando
Os Céus de horror e a terra comovesse;

Em fim, se já o Leteu atravessando
Todo o mal suportara, e este esquecesse,
Menos triste estaria eu suspirando.


     19.
     Em dia dos meus anos

Dia cruel, ao qual ao bem resiste
A memória de uns anos desgraçados,
Ou brilha vencedor de injustos fados,
Ou não tornes a vir como hoje triste.

Porém que digo? Céus! Em que consiste
O emprego dos meus votos inflamados,
Se dos terrenos bens tão desejados
Além da morte nem um só persiste?

Dure pois muito embora esta violência
Que o peito martiriza sem piedade,
Que eu assaz me contento da inocência;

E para a verdadeira utilidade
Receberei, entregue à paciência,
Saudáveis lições na adversidade.


     20.
     A Tirse

Entregue a meus pesares, inspirada
Por acerbas tristezas, certo dia,
Do cume desta agreste serrania,
Lancei longe de mim a lira amada

Uma tarde em que aflita, magoada
Pelo sombrio vale discorria,
Diviso Amor sobre ela, que dormia
Junto ao tronco de uma árvore copada.

Devota adoro o terno Deus de Gnido,
E recolho outra vez o instrumento,
Que as selvas abrigaram por perdido.

Firo a corda: Quem buscas, pensamento?
Principio a cantar, segue o sentido,
Tirse, Tirse responde o brando acento.


     21.

Eu cantarei um dia da tristeza
Por uns ternos tão ternos e saudosos,
Que deixem aos alegres invejosos
De chorarem o mal, que lhes não pesa.

Abrandarei das penhas a dureza,
Exalando suspiros tão queixosos,
Que jamais os rochedos cavernosos
Os repitam da mesma natureza.

Serras, penhascos, troncos, arvoredos,
Ave, fonte, montanha, flor, corrente,
Comigo hão-de chorar de amor enredos;

Mas ah! Que adoro uma alma que não sente!
Guarda, Amor, os seus pérfidos segredos,
Que eu derramo meus ais inutilmente.


     22.

Esperanças de um bem tão contingente,
Com que fim me andais tanto atormentando?
Se inútil é que eu viva suspirando,
Por que me não deixais viver contente?

Ora fingis distante, ora presente
O motivo do mal que estou chorando;
Fingi-me, se podeis, ao menos quando
Hei de viver sendo indif’rente.

Se tanto vos aflige o meu sossego
Que o perturbais por modo tão tirano,
Matai-me, que a morrer eu não me nego.

Mas se viva, o destino desumano
Me quer, fugi;  que eu triste já me entrego
Ao descarnado e duro desengano.


     23.

Vós, ó Sátiros desses arvoredos!
Dríades fugitivas, vós Napeias!
Se vos condoem lástimas alheias
Escutai compassivas meus segredos.

Não vos conto de Amor loucos enredos;
Sufocadas vos mostro claras veias
D’Helicon e Aganipe, e por cadeias
Ligada Alcipe aos mais tristes degredos.

Ó Numen, que em penhasco convertestes
Aquela que um sentir brando despreza,
Dai a Alcipe um castigo como este:

Que de meu fado a aspérrima crueza
Solitária chorar num monte agreste
Faz invejar de rocha a natureza.


     24.

Ouvi não já de Amor ternos enredos,
Não já do fado antigas sem razões,
Tristes vales, agrestes solidões,
Vós montes, serranias, vós penedos.

Ó vós, Sátiros destes arvoredos,
Que noutro tempo míseras canções
Me ouvíeis recitar, e das traições
Do século e fortuna mil segredos.

Escutai, com transportes de algeria,
De Aónia, gentilíssima pastora
Dar o nome a meus versos melodia.

Vede quem de suspiros até agora,
E de lágrimas tristes se nutria,
Contente respirar vendo o que adora.


     25.
     Mote alheio

Foi vontade, é amor, será loucura

Numa noite serena descansava
Lise triste, que um tempo foi contente,
Nas margens de uma plácida corrente,
Onde a imagem de Cíntia se quebrava.

Ao puro Céu os olhos levantava
Por força do pesar que n’alma sente,
Mas faltando-lhe o alento, decadente,
Chorosos para o chão logo os tornava.

Não podendo explicar o que sentia,
No peito palpitante a desventura
Indistinta e cruel se conhecia.

‘Té que uma voz rompendo da espessura
Todo o mal declarou, que assim dizia:
Foi vontade, é amor, será loucura


     26.

Como, importuno Amor, ainda procuras
Misturar-te entre as minhas agonias?
Vai, cruel, para onde as alegrias
No seio da Fortuna estão seguras.

Onde em taças douradas, formosuras,
Esgotando o prazer, passam seus dias;
Onde acariciado tu serias
Por quem nem sabe o nome às desventuras.

Ao som de harmoniosos instrumentos,
No peito, que é de pérolas ornado,
Criarás mil suaves sentimentos.

Mas em mim! Que sou vítima do fado?!...
Cercada dos mais ásperos tormentos
Achas uma alma só, e um só cuidado.


     27.

Bem pode sobre o cândido Oriente
Soltar Febo os cabelos douradores,
Que quem vive como eu, vê sempre as flores
Tintas da negra cor do mal que sente.

Para mim não há prado florescente,
Tudo murcham meus ais, meus dissabores,
Nem me tornam cantigas dos Pastores
Jamais serena a pensativa frente.

Se triste vou às danças, triste venho,
E quando a noite estende húmido manto
A segurar o sono, em vão me empenho.

Não toco a flauta, versos já não canto;
Cercada de pesar, mais bem não tenho
Que triste desafogo em terno pranto.


     28.
     Mote de Piério(*) em Coimbra
     Longe da Pátria, longe dos parentes

     Glosa de Alcipe

Soltando as loiras tranças pensativa,
A minha triste Musa, soluçava
Nas bordas d’Hipocrene, e magoava
Com seu saudoso choro, a rocha viva.

Se cantando explicar mágoa excessiva
Pelo antigo costume, procurava;
O brando som nas cordas expirava,
Que à lira frouxa, o pranto de voz priva.

Da testa desviando a c’roa d’hera,
Os Loureiros e os Mirtos florecentes
De puro desprazer queimar quisera;

Vê como torna os dias descontentes,
Quando caro Piério te pondera
Longe da Pátria, longe dos parentes.
_______________

(*) – o irmão da Marquesa de Alorna


     29.
     A El-Rei, estando eu muito doente, em Chelas

Um moribundo esforço, um fraco alento
Indício de uma quase extinta vida
Envia uma infeliz triste abatida
Desde o leito da morte ao Régio assento.

Modera Ó Soberano o meu tormento,
Solta o Pai, por quem choro dividida;
Esta voz já sem força proferida
Faça em teu peito brando movimento.

Quatro lustros passados n’amargura,
Compreende sòmente a minha idade;
Entro no quinto, e mais na sepultura.

Ah! Consente Monarca por piedade
Que a mão paterna beije com ternura;
Mate o gosto, quem morre de saudade!


     30.
     Em uma doença

Àquele espaço que alma compreende
Os meus passos dirijo temerosa
Abre-se a Eternidade que horrorosa
Por multidões de séculos se estende.

Mas neste ponto que Átropos desprende
O fio de uma vida tão penosa,
A mãe a cara mãe triste saudosa
O Pai, a terna irmã, tudo me prende.

Ideias do Descanso roubadoras,
Deixai-me junto aos cândidos altares
Pôr fim tranquilo às minhas tristes horas.

Rompa o espírito em paz liberto os ares
E completem as Parcas agressoras
Ruínas que fizeram meus pesares.


     31.
     A Filinto(*)

     Sobre a Égloga dos Pomareiros

Morra a memória da famosa Alcina,
Esqueça-se o poder do mago ismeno
Que ao melífluo som do verso ameno
Surgem bosques, comove-se a campina.

Apenas de Felinto a voz divina
Fere alegre o selvático terreno
Calam-se as Musas, ‘té se cala Alfeno,
Que o grande Vate todo o Pindo ensina.

Brilha suspenso o Délfico luzeiro
Doce aroma, que os ares embalsema,
Gira em torno do sábio Pomareiro.

E Alcipe absorta, bem que o assunto tema,
Faz ressoar no monte sobranceiro
De rouco Cisne a voz talvez extrema.
_______________

(*) – poeta português Filinto Elísio, pseudônimo de Francisco Manuel do Nascimento (1734-1819), 
que conviveu com a Marquesa de Alorna e sua irmã no tempo em que viveram no convento. Foi ele quem 
atribuiu à Marquesa o pseudônimo de Alcipe


     32.
     A Jesus Cristo

Se a dar-vos morte, ó Deus! Um só pecado
Bastou que Adão tivesse cometido,
Eu, que em tantos meu Deus! Hei delinquido
Quantas mortes vos tenho renovado...

Adão, de um só delito horrorizado,
O deixou no seu pranto submergido;
Porém meu coração endurecido
Não duvidou mil vezes ser culpado.

Eu fui, Senhor! eu fui quem descontente
Da morte que vos deram sem piedade,
O peito vos rasguei, mais cruelmente.

Se não lavam a minha iniquidade
As lágrimas que choro amargamente
Ai de mim! Na espantosa eternidade.


   33.

Se me aparto de ti, Deus de bondade,
Que ausência tão cruel! Como é possível
Que me leve a um abismo tão terrível
O pendor infeliz da humanidade!

Conforta-me, Senhor, que esta saudade
Me despedaça o coração sensível;
Se a teus olhos na cruz sou desprezível,
Não olhes para a minha inquidade.

À suave esperança me entregaste,
E o preço do teu sangue precioso
Me afiança que não me abandonaste.

Se justo, castigar-me te é forçoso,
Lembra-te que te amei e me criaste
Para habitar contigo o Céu lustroso.


     34.

Fecunda Natureza, em vão procura
Contigo competir Arte engenhosa;
Tu és mais agradável, mais formosa
Do que quando inventou a Arquitectura.

Como vem despenhada esta água pura!
Como se vê esta árvore frondosa!
Convidando na sesta mais calmosa
A gozar do sossego e da frescura!

Sítio feliz, se fosses habitado
Por quem livre de amor e de tristeza
Só em ti limitasse o teu cuidado:

Então seria (que ditosa empresa!)
Em verso brando, em verso delicado
Visto todo o poder da Natureza.


     35.
     Em agradecimento de uma lata de chá

Trigueira e bela a noite iluminava
Os âmbitos do vasto firmamento,
E de Pandora linda o nascimento
Em celeste congresso celebrava:

Cada qual das deidades se sentava
Intorno à mesa, em diamantino assento,
O moço Guanimedes, doce alento,
Nos suaves licores lhes libava.

Em taças imortais d’Ágata pura
Of’rece as orientais gotas saudáveis
Que o almo vinho o bom Lieu mistura.

Provam teu chá os Numes adoráveis,
E d’Hipocrence santa Apolo jura
Infundir-lhes os dons incomparáveis.


     36. À Música

De um véu de nuvens finas, guarnecido
De ouro puro, se touca a tarde fria;
Do Céu foge ligeiro o frouxo dia,
A sombra envolve o vale desabrido.

Já sem pejo, por Délio ter fugido,
Solo a voz em demanda d’Al,
Quieto o vento nada respondia
Entre as folhas e flores recolhido.

Cantei; cantei, até cansar do peito
E conheci então como a cantiga
Produz contra o pesar mágico efeito.

Assim zombo de ti, Sorte inimiga;
Todo o triste que a penas vive afeito
Não chore, pois cantando é que as mitiga.


     37.
     Às Musas

Co'a frauta agreste os beiços compremindo,
Desde que alva a manhã se despertava,
Ante Febo submissa me prostrava,
O sublime furor ao Deus pedindo.

Iam-se os Céus co'a clara luz abrindo,
Morfeu ao mundo alegre costas dava,
E Délio, sem mostrar que m'escutava
A rápida carreira prosseguindo.

Sobre a tripode em vão triste me sento,
Corro os três tetracordes sobre a lira,
Nenhum iguala a voz do meu tormento.

Musas cruéis, se aquele que delira
Mil vezes em vós acha acolhimento,
Porque não confortais a quem suspira?



   38.

Da minha alma a ditosa faculdade,
Meu tesouro, adorada Fantesia,
Que animada das Graças da alegria
Tiras da mão as armas à saudade.

És tu quem de meus danos tem piedade;
Tu me pagas de noite o horror do dia;
Tu me levas a ver Sintra sombria,
Dando-me em sonhos doce liberdade.

Igualmente me entregas à ventura,
Ou quando da harmonia a lira empregas,
Ou quando os pincéis roubas à Pintura:

Mas só de todos os males meus sossegas
Mostrando-me a lindíssima Figura,
Com que de amor meus ternos olhos cegas.


     39.

Não vejo, não respiro, escuto ou penso
Sinto só; quem não sente não m’intende
Um receio fatal a voz me prende
Pelas veias me corre um fogo intenso.

Ao meu fogo se opõe um gelo imenso
E quanto mais o lume em mim se acende,
Mais o susto gelar-me em vão pretende,
Mais luto contra amor, e menos venço.

Dize, Inconstante, dize, não te custa
A desamar o que algum dia amaste?
Ou fui, quando te amei, acaso injusta?

Se das Rochas de Sintra, onde juraste
Eterna fé, o aspecto não te assusta,
Tira delas a chama que apagaste.


     40.

Alcandro, que me fez mil juramentos,
Zombou de si, dos Céus, e da Verdade:
Se Jove não castiga esta impiedade
Que m’importam a mim seus fingimentos?

Não cuidei que mentia; alguns momentos
Assustou no meu peito a liberdade:
Mas a sombra que tem co’a realidade?
Fingindo amor, quiméricos tormentos!

Não t’eclipses, Alcandro vacilante
Se o pouco que m’importa tu souberas
Virias cortejar-me a todo o instante.

Não se engana quem soube amar deveras
Não crê de leve um novo , e falso amante
Nem chora um só minuto por quimeras.  


     41.

Pensamento importuno que me queres?
Vens nas trevas da noite inquietar-me,
Abre-se o dia vens atormentar-me,
E qual fúria atacar os meus prazeres.

Bem sei que hás-de- matar-me se puderes;
Não tem poder a morte de assustar-me
Mata pois; isso quero, hei-de alegrar-me
Se morrendo t’impeço de venceres.

Mas quando tu me vires arquejando
Pálido o rosto, a mão desfalecida;
Vai-te então, vai-te ao menos dessipando.

Eu não quero na Praia desabrida
Do pálido Aqueronte ir memorando
O assunto que me mata, e te dá vida.


         42.

Que procurais de mim, tristes cuidados?
Deixai-me ao menos livre o pensamento,
Que parece sobeja a meu tormento
Na dureza dos males já passados.

Suspenda-se o martírio, duros fados,
Receba o peito aflito algum alento:
Mas que digo? Da sorte me contento,
Quando sejam meus males triplicados.

Um triste peito alívio não procura,
Em vão busca dos males a distância
Quando o persegue a sorte sempre dura.

Ó Sorte iníqua! Satisfaz a ânsia,
Rouba-me o bem, rouba-me a ventura,
Que nunca roubarás minha constância.


     43.

Ideias minhas, multidão de ideias,
Que algum dia da cítara fiava
Vinde, trazei-me as horas que eu passava
Ao som de menos ríspidas cadeias:

Bem que tristes, de paz as horas cheias,
Saturno no seu cofre as sepultava,
No feliz tempo em qu’inda eu ignorava
Que haviam para mim outras mais feias.

Ide colher aos ermos tenebrosos
Os ais que lá deixei menos sentidos,
Para modelo destes tão queixosos:

Talvez que esses antigos meus gemidos,
Com que eu domava os monstros furiosos,
Hoje abrandem meus fados desabridos.


     44.

Por triste que da vida o termo avisto,
Distante cada flor com que era ornada
De meus anos a fresca madrugada
Ao poder d’harmonia não resisto.

Luto co’as penas, o pesar conquisto,
E co’a face de lágrimas banhada
Vou procurar na cítera empenada
Sons com que aplaque ou vença o rigor disto.

Sei que o prazer qual frágil planta dura
Que o progresso do tempo traz mudanças
E que a alegria é sempre mal segura:

Troco assuntos ditosos, por lembranças.
Basta a meus hinos glória sem ventura,
Honra virtude, e murchas esperanças.


     45.
     Saudade

Altas serras que a vista frouxa alcança
Onde o Caos antigo inda hoje mora
Nunca o tempo co’a esponja apagadora
Lavará da minha alma tua lembrança.

Nenhuns traços alegres da Esperança!
Nenhuns sítios que afague a mão cultora!
Tudo da vida a Lua activa ignora,
Tudo na morte tácito descansa.

As palavras expiram-me na boca;
Quer desatar-me quase da existência,
Um etéreo ambiente que sufoca.

Tal da saudade a aspérrima violência
Uma tempe e ditosa em horror troca,
De tais cores a tinge a triste Ausência.


     46.
     Como se passa o dia

Vai a fresca manhã alvorecendo,
Vão nos bosques asa Aves acordando
Vai-se o Sol mansamente levantando
E o mundo à vista dele renascendo.

Veio a Noite os objetos desfazendo
E nas sombras foi tudo sepultando;
Eu desperta, o meu fado lamentando.

Neste espaço em que dorme a Natureza
Porque vigio assim tão cruelmente?
Porque me abafa o peso da tristeza?

Ah! Que as mágoas que sofre o descontente
As mais delas, são falta de firmeza
Torna a alentar-me o Sol resplandecente!


     47.
     Ao Tempo

Tempo? Que a mão benigna pões nas chagas
Que a saudade me abriu tão cruelmente,
Tu que do espinho a dor suavemente
Vais tirando, e seu férreo efeito apagas:

Em ti somente espero; Tu me afagas
E quando enxuta houveres a corrente
Do inútil pranto, que sai d’alma ardente,
A (em vão buscada) a paz talvez me tragas.

Os olhos voltarei para o passado
E sorrindo verei chegar das lidas
O pacífico termo desejado.

Bem como à tarde as aves distraídas
Esquecendo um chuveiro dissipado
Cantam co’as plumas inda humedecidas.


     48.

Já diviso no campo as lindas flores
Já Febo vem doirando os altos montes,
Já brilham prateadas claras fontes,
E brincam pelo prado mil amores:

Cobre Cíntia seus fracos resplendores
Com a purpúrea cor dos horizontes:
É tempo Amor, que os males meus descontes,
Abre os olhos de Clísio, olhos traidores!

Porque dormes, ingrato? Acaso ignoras
Que Lília que te adora te vigia,
E quer fartar de amor todas as horas?

Abre os olhos, meu bem, já rompe o dia;
Tens junto do teu peito a quem adoras,
E eu só se não amasse dormiria.


     49.
     À morte de Leandro

Pelo Deus dos Amores inspirado
E de ardentes desejos conduzido
Atravessa Leandro o mar de Abido
Buscando ver o rosto suspirado.

Já se cobre de horror o mar salgado
Vem o trovão do raio precedido
Mas pouco teme quem já foi vencido,
Por aquele feroz menino alado.

Correndo sobre as vagas espumantes
As forças que no peito amor lhe cria
Anula mar e ventos arrogantes:

Hero que atenta lá da torre ouvia
Os Ecos nos penedos retumbantes,
A voz extrema ouviu da boca fria.


     50.
     A um filho da autora que morreu poucos instantes depois de nascer

Em fim passaram estas tristes horas
Que o Destino cruel tinha prescrito
E das minhas entranhas ao Cocito
Te levam filho! As Parcas agressoras.

Lá no seio da Morte, onde hoje moras,
Não venhas lacrar-me o peito aflito
Da consternada mãe escuta o grito
E fica em paz nas trevas dormidoras.

Mas ai de mim! Querido desgraçado
Se ao menos no meu terno pensamento
Tu podes existir; cresça o cuidado

A força do materno sentimento
Te fará renascer filho adorado
Bem que eu morra de angústia e de tormento.


     51.
     A Minha Mãe

Natureza? Quais leis dificultosas
Ao brando coração meu impuseste?
A quais devo seguir, com quais quiseste
Subjugar as paixões imperiosas?

Quando escuto da Mãe vozes queixosas
Que me pedem a filha que me deste,
Arranco-a do meu peito a que a prendeste,
Sem ver desde as feridas sanguinosas.

Mas apenas cedi, mais alto bradas,
E do materno amor golpe violento
As entranhas me deixas laceradas.

Se a não largo, qual é o meu tormento?
Se lha dou, quantas horas desgraçadas!
Bárbara lei, difícil vencimento!


     52.
     A Natércia

Sonhei, pois tudo é sonho nesta idade,
Que a Fortuna do templo a porta abria,
E que Natércia alegre desprendia
As suaves cadeias da Amizade.

Solta assim sem remorsos, nem saudade
Novos objectos n’alma revolvia
Da cega Deusa os hábitos vestia
Tomava os gestos e a velocidade.

Ah Natércia, Natércia, quem dissera
Que na lista fatal dos inconstantes
Tão cedo esse seu nome s’escrevera!

Acordei, e com passos vacilantes
Correndo após a bárbara Quimera
Achei Natércia amiga como dantes.


     53.
     Em resposta a Natércia

Mos vasos da letal melancolia,
Que contém mil licores denegridos,
Os deuses do humanos condoídos
Lançam o dom feliz da Poesia.

Co’este dom que desfecha a luz do dia
S’interpretam mistérios escondidos
Reanimam-se os mais desfalecidos,
A dor s’esfuma, aplaca-se a agonia.

Tu bem vês ó Natércia que t’entendo
E que o férreo segredo em vão se cansa
Em apagar-me objectos, que estou vendo.

Teus silêncios contrários à Esperança,
Não me assustam com seu aspecto horrendo,
Que mos explica sempre a confiança.


     54.
     O salto de Leucade

Ninguém afoga Amor n’água salgada
Por mais que a Grécia, ilusa o certifique;
Bem que a sorte de Safo assim publique,
No mar acabou Safo namorada.

Artemisa infeliz, precipitada,
Quer nas águas do fogo achar despique,
E não consegue mais senão que fique,
De Salamina a glória equivocada.

Os efeitos da queda de Leucade
Não são quais nos tem dito, porqu’infiro
Que muitos saltam dentro da Cidade.

Vencem Amor as damas no retiro,
Os homens em faltando à lealdade
Este é o salto famoso lá d’Epiro.


     55.
     A.M.D.M.

Dest’arte o peito um calo honroso cria.
                           (CAMÕES)

         Glosa

Ó Céu! Ó Providência que ordenaste
A série destes meus aflitos dias,
Se vítima da força me querias
Porque a Luz da rezão não me ocultaste?

Na cadeia dos entes, não formaste
Sem sentimento tantas penhas frias?
Um coração de Rocha não podias
Dar-me a mim como a outros que criaste?

Não quisestes: e em troca da Fortuna
A rocha da verdade me alumia
Quando um sofista irado m’importuna.

Grite embora, que o Brio, que me guia
A crueldade mesma acha oportuna
Desta arte o peito em calo honroso cria.


     56.
     Feito em 1809

Crespas as águas, taciturno o Tejo
Às áureas praias suas me chamava,
E quando incerta asilo ali buscava
A majestosa Pátria ante mim vejo.

Vinha qual sempre a viu o meu Desejo,
De lealdade e d’honra se adornava
Religiosa fé, glória brilhava
Nas mais virtudes, que eram seu cortejo.

Eis-me aqui, qual me queres, me dizia
Não temas que as paixões me desfigurem
Nem que meu traje esconda aleivosia.

Ordena à multidão que todos jurem
Defender a Rezão sem cobardia
E que em amar seu Rei todos se apurem.


     57.
     Imitação do soneto de Pastorini, que começa “Génova mia, etc.”

Lusitânia querida! Se não choro
Vendo assim lacerado o teu terreno,
Não é d’ingrata filha o dó pequeno
Rebeldes julgo os ais se te deploro.

Admiro de teus damos o decoro
Bebeu Sócrates firme o seu veneno
E em qualquer parte do perigo o aceno
Encontra e cresce o teu valor que adoro.

Mais que a vitória vale um sofrer belo
E assaz te vingas de opressões fatais
Se arrasada te vês sem percebê-lo.

Povos! A independência que abraçais
Aplaude alegre o estrago, e grita ao vê-lo
Ruína sim, mas servidão jamais!


     Soneto di Pastorini

Génova mia, se com asciuto ciglio
Lacero, e guasto Il tuo bel corpo io miro
Non é poca pietà d’ingrato fliglio
Ma ribello mi sembra ogni sospiro

La maestà di tue ruine ammiro
Tofei della constanza, e Del consiglio;
Ovunque io volgo Il passo, ó l guado io giro
Incontro Il tuo valor nel tuo peroglio

Piu Val d’ogni vittoria um bel soffrire;
E contro i fieri alta venderta fai
Col vederto distrutta, e nol sentire

Anzi girar liberta mirai
E baciar lieta ogni ruína e dire:
Ruine si, ma servitù non mai.


Génova mia de Pastorini
Traduzido em inglês por L’ Hon. Mr. Bathurst

Oh my dear Country if without a tear
Mangled and thorn thy beauties I descry
Charge not thy son with patriot apathy
For reason to thy fame my sighs appear

The grandour of the ruins I revear
Trophies of wisdom & of Constancy
Wherever I bend my steps, or turn my cry
Trace thy valour in thy doom sevear

Ev’n Conquest, to Heroic sufferings yelds
And on thy foes these vengeance thou hast trieyd
To know, yet scorn to feel, thy misery

Marked where freedom trod, thy ravaged fields
She kissed each relic and exulting cryd
Ruin be mine, but never slavey


     58.
     Achando-se a autora doente, em perigo de vida

Este ser que me deu a Natureza
Vai desorganizando a enfermidade
Sinto apagar da vida a claridade
Doma as corpóreas forças a Fraqueza.

Vai crescendo em minh’alma a fortaleza
Quando cresce do mal a intensidade
As Áureas Portas me abre a eternidade
E lá cessam cuidados e tristeza.

Vou amar somente quem é sempre amável
Em oxigénias luzes abrasar-me
Nunca errar, nem temer gente implacável

Vou nos jardins celestes recrear-me
E no seio de um Deus justo, adorável
A tudo o que falta associar-me.


     59.
     Às minhas filhas, longe delas em Inglaterra, e doente

Não tem havido mal que eu não suporte
O Fado contra mim, tudo provoca
Desfalecido o peito e a voz já rouca
Em vão invoco um ser que me conforte.

Adeus, queridas filhas! Chega a morte
Oiço a trombeta que um Arcanjo emboca
Na Eternidade o tempo se me troca
E pela tumba fria, a Pátria, a Corte.

Encham de honra e piedade este intervalo
Certas de um fim que a todos se avezinha
Que já não vivo, escutem sem abalo.

O maior dom dos Céus na mão já tinha
Porém faltam-me os dias de lográ-lo
O mundo é para os mais, a cova é minha.


     60.
     A Jônio, que quer que imprima as minhas Obras

Folhas de louro, e algumas bagas pecas
Basculhei nas aléias do Parnaso;
Este lixo está junto, e por acaso
Entre eles algumas flores menos secas.

Cuidei ter Rouxinóis, achei Marrecas:
Tentada estou de pôr tudo isto raso
Porém, discreto Jónio faço caso
De quanto neste assunto me deprecas.

Arranjarei meus versos, sem que exponha
Sua inocência a Zoilos sem piedade,
Que os leiam mal, e os cubram de vergonha:

E se o que dizes valem na verdade
Livremo-los por ora da Peçonha,
E vão salvos à sã Posteridade.


     61.
     Em resposta a Jónio

Tempera noutro som essa áurea lira;
Não crê Alcipe que te cause espanto
O seu Plectro, banhado há muito em pranto,
Destoa, geme, queixa-se, delira.

Ela assusta-se quando alguém a admira
Com a luz da Rezão destrói o encanto
Pois do Fado o rigor tem sido tanto
Que se canta, conhece que suspira.

O fogo com que Délio resplandece
Só é dado a quem tem contentamento
Cercado de pesares esmorece.

A ventura é quem dá ao verso alento
Sem ela o gênio pasma, desfalece
Cala-se a Musa, encurta o pensamento.


     62.

Eu não gosto de versos, mas se acaso
Musas afáveis os seus sons me dessem
Se algum suave assunto, me escolhessem
Tentaria as varedas do Parnaso.

Batalhas não cantara em campo raso,
D’Eneias ou D’Aquiles, se vivessem
Proezas com que o Mundo esclarecessem
Dessas faria pouco ou nenhum caso.

Mas se nalgum jardim visse uma rosa
De um botão linda ornada, o gênio ardente
Logo afinara a lira sonorosa.

A frescura gentil, graça decente
É para o Estro meu mais poderosa
Que todo o ardor de Febo reluzente.


     63.
     Ao Marquês meu Neto no dia em que assentou praça no dia 12 de maio de 1819

Juntos às Aras de Numes fabulosos,
Os Mancebos d’Atenas se juntavam;
E pela Pátria e fé, ali juravam
Dar a vida, em combates sanguinosos.

Fieis aos juramentos animosos
As mais tremendas lites arrostavam
E ou de louros eternos, se c’roavam,
Ou seguiam os Manes tenebrosos.

Juraste: vê perante quem juraste!
Vê com que acções os teus te precedera
E o que impõe a carreira que abraçaste.

Os teus, e os meus que o Reino defenderam
Querem de tié proves quanto baste
Que desta Raça só Heróis nasceram.


     64.
     À Restauração do Trono

Como volteia alegre Borboleta,
Em prado florecente, assim volteia,
Ficções colhendo, a vagabunda ideia
De um valido de Febo, almo Poeta.

Mas se o pesar qual furibunda seta
O coração sensível lhe golpeia
Do Estro a chama ardente não se ateia
Não sabe revelar a dor secreta.

Tudo absorve o profundo sentimento
É curta qualquer frase; quem padece
Julga que a tudo excede o seu tormento.

Também quando a Alegria muito cresce,
Como a vemos crescer neste momento,
Fala o ânimo, a boca é que emudece. 


     65.
     Saudades a minha filha Juliana

Bem como nos jardins florece a Rosa
Cercada de botões que o Sol afaga
Que Favônio refresca, e não alaga,
Fonte abundante, ou chuva copiosa;

Vivi serena, alegre, venturosa
Junto de ti, Julina; o tempo estraga
Os bens que a Sorte dá, a luz apaga
De um belo dia, a noite pavorosa.

Promete-me a esperança que hei-de ver-te
Esta promessa em mim o alento aviva
Mas a tardança em mágoa mo converte.

Da saudade o vigor, deste me priva.
Vem; que me vejo em risco de perder-te
Torna-me ao corpo, esta alma fugetiva.


     66.
     Em agradecimento de um souvenir que S. M. Fidelíssima mandou à autora

Imagem suavíssima daquela
Da qual pende dos Lusos o Destino!
Se nos bens que nos trazes imagino,
Astro algum brilha mais que a minha Estrela.

Dádiva preciosa, que revela
Quando pode alcançar o amor mais fino!
Deu-ma o teu coração, e grande tino,
Pois me empenhei constante em merecê-la.

Foge-me a vida, foge-me a esperança
De ver-te; mas devora-me a saudade,
Que em vão tanto deseja e não alcança.

Porém se em fim me vence a enfermidade
Levarei na minha alma esta Lembrança
Fará parte do Céu na Eternidade.


     67.
     Por ocasião de partirem dois moços para a guerra
     (netos da Marquesa de Alorna)

Para mim nasce o sol sem claridade
Envolve-me em tal susto o meu cuidado,
Que nele o pensamento concentrado
Me encobre quanto é menos que saudade.

Embora a Pátria, a honra, a heroicidade
Exija o que poupou meu triste fado
Não vacilo: duas vítimas ao Estado
Oferta voluntária a Lealdade.

Mas que dor, que tormentos e agonia
Mas arranca do peito c’um suspiro,
Que desculpe a materna simpatia!

Neste aperto aflitivo se respiro
Não vivo já, pois morro cada dia,
De morrer acabando quando expiro.


     68.
     No dia 24 de julho de 1834, estando muito doente

Adeus Sol, de outro Sol imagem bela
Para mim vão teus raios apagar-se
Vai minha alma ansiosa colocar-se
Onde não há receios, nem cautela.

Em doce paz, sem susto de perdê-la
Há-de enfim ao Supremo bem ligar-se
E da maior delícia irá fartar-se,
Transmigrando feliz d’Estrela a Estrela.

Não tardes, hora! Evita que este dia
Funeste, recordando antigas penas
Costume inveterado de agonia.

Não me apresentes mais glórias terrenas,
Sem que as possa gozar; é tirania
Pois de Tântalo à sede me condenas.


     69.
     Às Musas sobre os Desposórios da Rainha

Musas, que de meus anos na verdura
Com carícias e dons me consagrastes
Dizei com que rezão me abandonastes
Quando na Pátria enfim raia a Ventura?

Não sei por que motivo a guerra dura
C’os homéricos versos adornastes!
Vós, que em fúteis canções me acompanhastes,
Me deixais ir calada à sepultura?

O compassivo Céu manda Fernando
De Cobourg e Bragança a prole unindo
A desertora paz vai restaurando.

Falsas Deusas! Embora ides fugindo
Que eu, no meu Criador só confiando
Sei que antiga promessa irá cumprindo.


     70.
     À preciosa memória d’El Rei D. João IV

Sombra Régia! Se a minha lira ruda
Quebra da morte o impedernido muro,
Lá te leve meu canto, incenso puro
Qual arde na minha alma, que não muda.

Em vão feroz maldade ardis estuda;
Atrás desse pendão nobre, seguro
Que os quarenta guiou, a vós procuro
Pois não há cá no mundo quem me acuda.

Basta-me a mim que dure o nome vosso,
Que o vosso Neto, e gente assinalada
Os loiros murche ao Galo e seu colosso.

Co’a mão afeita ao fuso, não à espada
A Pátria siro como sei, ou posso:
Feliz! Se aos mortos, o que faço, agrada.


     71.

Nunca manchei com vil lisonja o plectro,
Nunca teci encómios à privança;
Nem fiz punhal da lira, que à vingança
Consagram vates com ferino metro.

Consagrei submissão, respeito ao ceptro,
Quando a paixão dos homens foi mudança;
Nada a meus olhos vale o que hoje alcança
Quem, sem virtudes, opulência impetra.

Despojada de tudo vim ao mundo;
Emprestou-me mil bens a Natureza,
Que roubou meu Fado furibundo.

Bens fúteis a minha alma sã despreza;
Em transitivas glórias não me fundo;
Volto à terra sem nada, e sem tristeza.




     72.

Quem teu doce cantar pudera
Suave Amor em números cadentes
Quem pintara desejos mil ardentes
Quem sustos namorados descrevera

Tu santa deusa da terceira esfera
Que o doce fogo mais que ninguém sentes
Estímulos me inspira veementes
Com que explique o ardor que me apodera.

Vinde Pombinhas nítidas ‘rulando
De que a vista abrandara o tigre iroso
Quero do vosso Amor ir copiando.

E à força de entoar canto amoroso
Numa alma vivo lume vá pegando
Sofreu d’Amores bando numeroso.


     73.
     Soneto à Anistia

Trasíbulo ganhou fama imortal
Criando a lei suave d’amnistia
À Pátria deu a paz, e hoje Maria
A promulga de novo em Portugal

Um perdão, prolongando sempre o mal
Que a ignorância em sinônimo avalia
Não vale esquecimento, ou bastaria
Para apagar os danos em geral.

Mas tu propício Deus! Tu que criaste
Um ser que à lusa terra só convinha
As mais puras verdades lhe inspiraste.

A favor da Nação tudo adevinha
E se eu cantar puder, quanto a exaltaste
Julgarei que a ventura, é também minha.


     74.
     Resposta por esmola

Li teus versos, Fulano, e quando os lia
Em cardumes o peito me rasgavam
Crebros, altos suspiros, que estalavam
No ar, que muito ao longe os estendia

A Musa ineficaz esmorecia
Antes as queixas, que as mágoas te ditavam;
E enquanto lendo-as n’alma se gravavam
Caiu a noite, e levantou-se o dia.

Tu, que tens dum Vulcano a natureza,
Não sabes que a piedade tanto inspira
A uma alma que um profano amor despreza.

Quando escuta Fulano, que suspira,
Se se farta de fel, e de tristeza;
Condói-se Alcipe, chora e não delira.


     75.

Como ó campa fatal estás ufana
D’encerrar esses restos preciosos!
Ah! Mal pensas que dias gloriosos
A morte se atreveu cortar tirana.

Respeitável dos Céus a mão sob’rana
Cingiu de Marte os louros vantajosos;
Foi amigo fiel, teve invejosos
Foi Prudente, fez honra à espécie humana.

Foi leal ao seu Rei, foi virtuoso
Serviu de Lustre ao trono sublimado
De quem Herdou um sangue Generoso

Sabeis pois já que Herói tens encerrado?
É da sábia Leonor o terno esposo
É d’Oeynhausen(*) enfim o Conde Honrado. 
_______________

(*) – marido da Marquesa de Alorna, falecido em 1793.


     76.
     Sobre as circunstâncias actuais e o carácter de Portugal

Fez-se pálido o sol, gemeu a terra
Um murmúrio lúgubre girava
Por ente o povo aflito, que avistava
O espectro horrível da sanguínea guerra.

Os exemplos medonhos desencerra,
A sedição, do abismo em que os guardava,
Porém nos peitos lusos rutilava
O heroico valor, que o crime aterra.

Lei, razão os triunfos lhe prepara,
Prestígio algum, ou susto de revezes
Do seu Deus, do seu Rei, heróis separa.

Não lhe basta vencer por tantas vezes;
Alcançam das paixões vitória rara
Que somente compete a Portugueses.


     77.
     Em 1826

Salve ó dia prenhe de prodígios
Raias dos Céus, e a terra reconfirtas
Abre-nos da Virtude as áureas Portas
E aferrolha as traições lá nos Estígios,

Cessem já os malévolos prestígios
Que o bem procuram por varedas tortas
Nossas almas fiéis em Pedro(*) absortas
Nele é que encontram só da paz vestígios.

Qual Andrómeda aflita aprisionada
A um rochedo fatal, a Pátria geme
Bem que no seu Perseu esperançada.

Não tardes não, ó Pedro! O Dragão freme
Mas a força que ostenta não é nada
Se lhe opões a energia que ele treme.
_______________

(*) – trata-se de D. Pedro I, o primeiro Imperador do Brasil, em quem, depois
da morte de D. João VI, em 1826, os liberais portugueses depositaram as suas esperanças.


     78.

A muito te atreveste pobre gralha!
Assunto, plectro, tudo profanaste,
E nessas chochas rimas, que grasnaste
O teu audaz intento, esbarra e falha.

Exemplo de áureo cisne t’embaralha
Para igualar aquele que emulaste
Crês ser, pata choquenta quanto baste   
Se és Padre faze cousa que mais valha.

Reza; dá-nos doutrina que nos toque
Da nossa paciência não abuses
Levando a pobre musa de reboque.

Não faças, carecendo de mais luzes
Versos que não exaltam Rei nem Roque
Poemas que não tem cunhos nem cruzes.


     79.
     As decisões intempestivas

Virtude Portuguesa, brio antigo!
Em Banquetes e bailes transformado
Que vos importa a Pátria em tal estado?
Se nela não há prémio nem castigo.

O vergonhoso susto de perigo
Que lhe impõe um jornal desenfreado,
Faz que deixe o triunfo malogrado
E largue as posições ao enemigo.

Este logo aproveita a vossa herança
Que ilusões e receios lhe entregara
Treme a justiça cessa a confiança

E ao culto que a impiedade abandonara
Une a Nobreza, veda-lhe a esperança
E a constituição mesma desampara.


     80.
     A respeito das luminárias da noite de 15 de julho de 1831

Quando a noite quieta vai cobrindo
Este vale infeliz co’a sombra escura,
A minha tão constante desventura
Com suspiros aflitos vou carpindo.

Em borbotões as lágrimas saindo
Vão de meus olhos cheios d’amargura,
Mas filhas de vileza e de loucura
Acolá luminárias estão luzindo.

Ao poder a virtude se acrecente,
Voltem os nossos Reis, fonte ditosa
Do brio português que o peito sente.

Outrora vi a pátria valorosa
Repelir do inimigo a força ingente,
Hoje aplaude sopapos aleivosa.


     81.
     Soneto amargo

Não sei para que vivo se a ventura
Logo ao nascer, me olhou com rigor tanto
Que a flor dos anos meus regou de pranto
Murchando-lhe, sem dó toda a frescura.

Mudou depois a cena de figura
Fui delícia dos meus, doutros espanto
Gozei da nova aurora o doce encanto
Mas tudo se fechou na sepultura.

De suaves penhores de amor terno
Ó sorte! Generosa me cercaste(s)
Esqueci que este bem não era eterno.

Uns escutaram dogmas de Cerastes
Outros de Ingratidões sofrem o Inferno
Infeliz coração para que amastes?




 I.



REDONDILHAS

Quadra

De que serve, oh sorte ingrata,
Do bem passado a memória,
Se a lembrança do perdido
Torna em pena toda a glória?

Glosa

Márcia(*), lá naquela serra
Todo o bem deixei contigo;
Sòmente veio comigo
A mágoa que o peito encerra.
Meu pranto regando a terra,
A ideia lá me arrebata
Àquela pura cascata,
Junto à qual vivi contente;
Mas tal lembrança ao presente
De que serve, oh sorte ingrata?

Vivendo nesta espessura,
Sem ter do alívio esperança,
Uma tão doce lembrança
Faz mais grave a desventura.
Oh sorte inimiga e dura!
Basta que na triste história
Tenhas completa vitória;
A vida e a infelicidade
Me rouba, ou, por piedade,
Do bem passado a memória.

Mas se o bem que então logrei
Foi tanto, Márcia querida,
E’ fácil perder a vida,
Esquecê-lo não poderei.
Quanto é cruel bem o sei
Ter a perda no sentido;
Mas neste caso duvido,
Sendo um mal e outro possível,
Se é pior ser insensível,
Se a lembrança do perdido.

Ser mais triste pouco importa;
Se já perdi a esperança
De algum bem, sofra a lembrança
Dêste quem o mal suporta.
A muitos tristes conforta
O gosto da antiga história;
Porém a mim tal memória
Só me acrescenta o cuidado,
Porque já meu triste estado
Torna em pena toda a glória.
_______________

(*) – nome atribuído à irmã da Marquesa de Alorna

(Não têem mais fim minhas poesias que o divertimento de minha mãe e a utilidade de me roubar por algum modo a ociosidade nas muitas horas vagas que é forçoso ter nesta situação melancólica e solitária.
                                                              (Nota da Autora)


CANÇÃO

Ao Despotismo

1.

Pensamentos, nascei, que Apolo o manda!
Atrevidos nascei, em liberdade!
     Quando a mão execranda
Do Poder ou da fera atrocidade,
Vos queira comprimir o voo altivo,
Soltos voai, impávidos rompendo
     O véu em que a mentira
Quere simuladamente ir-se envolvendo!

Contra a luz da justiça, tremulando,
Assustados os vícios se arremeçam,
     A máscara rasgando;
Com vacilante pé, coxos, tropeçam
Ante o gesto brilhante da verdade,
E vão bater co’as formas espantosas
     Nos escolhos medonhos
Que as Fúrias acarretam, cavilosas.

Levantai-vos, clamores, do meu peito!
Não peses, mão, co’a fôrça das cadeias!
     E’ vergonhoso efeito
Do Despotismo, limitar idéias;

Os sustos pusilânimes nasceram
No sei dêste monstro assás fecundo;
     Dêle, ai de nós! Derivam
Os males que hoje inundam todo o mundo.

Como te pintará meu verso triste?
Despotismo cruel, tua face vejo!...
     Com Jove te mediste,
Altivo levantando a voz sem pejo,
Antropófago cru, lavado em sangue,
Monstro sem lei, que as leis todas despreza,
     E arrasta sem vergonha
O código da sábia Natureza.

Tu, enérgicas almas abatendo,
Em lugar da virtude generosa,
     Nelas foste acendendo
Aduladora chama melindrosa.
Do vil receio os corações dominas;
Decorado dos trajes da prudência,
     E espíritos arrastras
Ante as aras profanas da indecência.

O Fanatismo segue-te choroso,
Cinge a corda, o cilício não despreza;
     Mas punhal sanguinoso
Esconde para a vítima indefesa;
Levanta os olhos para o Céu que argüe
Com brandos sons, com vozes simuladas;
     As entranhas lacera,
E a fraude guia às mentes subjugadas.

Solta, oh Jove, os teus raios sôbre o ímpio!
Cibele antiga, traga êste tirano!
     Surge, oh severo brio!
Virtude! Surge, e vence o nosso dano!
Se uma vítima falta ao Despotismo,
Lília(*) se of’rece aos fados tenebrosos;
     Farte em mim seus furores,
E os mais homens, enfim, sejam ditosos.
_______________

(*) – outro  pseudônimo da Marquesa de Alorna, anterior a Alcipe


2.

Escutai-me, altos muros pavorosos,
Regiões do silêncio e de amargura!
     Canções de mágoa pura
Gemente solte a lira ao desamparo.
Volve a elástica luz aos Céus formosos,
     Se Febo a manda ao vale;
Mas em vão quere a sorte que eu me cale,
Forçando o mesmo Febo a ser avaro.

No peito aflito surge novo canto;
Nasce em nós a harmonia da tristeza;
     Exprime com clareza
Um triste a dor que sente, as mágoas suas;
A lira move mais lavada em pranto,
     Que de louro virente
Pela Musa enramada, alegremente
Cantando o Amor e as lindas Graças nuas.

Que momento haverá que me não desse
Assunto a canto lúgubre e sentido?
     Que gesto embravecido
De Fortuna sem tino se olharia
Que contra mim bramindo não volvesse
     As mãos estragadoras?
Que não faça colheita em curtas horas
Dos mais ténues indícios de alegria?

Vi daqui a inocente Liberdade,
Qual uma pomba cândida e mimosa,
     Vir pousar-te, gostosa,
Sôbre os mesmos grilhões que arrasto aflita;
Mas quando o peito (asilo de amizade)
     Co’as asas branda afaga.
Repara que Fortuna tudo estraga,
E volta aos leves ares onde habita.

Com vagos pensamentos e suspiros
Que um doce, ignoto fogo em mim criava,
     O lindo Amor chamava,
A quem nunca pensei fosse importuna
A reclusa inocência dos retiros;
     Mas o rapaz medroso,
Sem dó do triste peito lastimoso,
Nunca me ouviu, com medo da Fortuna.

Vibrava o ar ligeiro, terno acento,
Tecido na inflamada fantasia;
     Sòmente o ar gemia,
E aos reflexos que Délio contilava,
Só trabalhava o simples pensamento.
     Assim meus cruéis danos
Menos ríspidos fiz, menos tiranos
—  E disto o mundo estulto murmurava!...
Já tudo me fugiu, já não escuto
Mais que o surdo rumor que a mágoa excita.


      3.

Acordai, ternas aves, com meu canto!
Espôsa de Titão, suspende o pranto!
     Se ao filho querido
     No peito enternecido
Crias de pranto amargo inda um tributo,
     O rosto mal enxuto
Volve a mim, pois que faço hoje a saudade
Primeira saudação da claridade.
     Lança os olhos celestes
     Nestes campos agrestes,
Suprema Divindade, e reconhece
O asilo em que a minha alma desfalece.
     Se males não vulgares
São, Titónia celeste, os meus pesares,
     Olha de lá do Céu,
Esquecerás teu dano pelo meu.

Por mais que espalhes rosas matutinas,
     Por mais frescas boninas
Que à madrugada o lindo prado of’reça,
Não há bem com que os males meus esqueça.

Em vão, submissa, a dura sorte imploro;
     Insensível ao chôro,
     Aos ais que hoje derramo,
     O Destino, que eu chamo,
Indignado responde aos meus clamores,
E cruelmente aos lábios meus aplica
A taça adonde encerra os seus furores.
     Em vão queixoso explica
     Meu peito em seus suspiros
Os danos meus às grutas, aos retiros:
Átis, se ouve, num tronco transformado,
Insensível se mostra ao meu cuidado;
Anaxarte, que a rocha inda mais dura,
Não se comove à minha desventura;
O Tejo, que algum dia, se eu cantava,
Erguido sobre as ondas me escutava,
     Hoje nem se enternece,
E aos som dos meus gemidos adormece.
Bem pode alguma Ninfa, comovida
     De ver tão triste vida,
Contar a minha história com ternura
     No bosque ou na espessura:
Os pastores, tão duros como as penhas,
     Ao som da branda avena,
Comentam c’um sorriso a minha pena,
Mostram mais que de feras e de entranhas.

Pois que inútil meu canto ao vento entrego,
Cantiga, te dissipe o fero vento.
Oh! Permitisse o Céu, por meu sossego,
Roubar-me a causa até do pensamento!


      4.
      Aos Pássaros

Sensíveis passarinhos, até quando
Nesses brando gorgeios que formais
Haveis de copiar meus tristes ais?
Hei-de viver convosco suspirando?
     Convosco falam 
     Estes gemidos
     Que, enternecidos,

Grutas, penhascos, montes, tudo abalam.

Quanta inveja vos tenho, ternas aves,
Que explicais, nesse canto delicado,
Talvez o mesmo que eu num triste brado,
E fazeis vossas mágoas mais suaves!
     Oh! Se algum dia
     Eu, suspirando,
     Tornasse brando
O motivo do mal que me agonia!...

Nos salgueiros, nas frescas bordas de água,
No tosco seio de algum toco informe,
Asilo a vosso gosto achais conforme,
E eu choro em desamparo a minha mágoa,
     Do fado injusto
     Choro o delírio
     E o meu martírio
Grava Amor em meu peito com bem custo.

Bem que, aves fôsseis ninfas engraçadas,
E que o fogo amoroso ou terna história
De vós mesmas conserve só memória,
Nos gestos infelices transformadas,
     Cortais libertas,
     Gemendo, os ares ,
     E os meus pesares
Eu choro entre prisões, que, oh Fado, apertas!

Se a filha de Corónis sofre a pena
De ver perdido o gesto encantador,
Por clamorosos ais a mágoa, a dor
Faz ouvir a que Palas a condena.
     Ao universo,
     Voando, a explica,
     Enquanto indica
Sòmente o que eu padeço em rude verso.

Eu vejo suspender-se a natureza
Aos ais que lá no centro do retiro 
Exala Filomela; um só suspiro
Da voz não lhe interrompe a fortaleza,
     Nem por ventura
     Ressoa a gruta;
     Atento a escuta
O bosque todo envolto em noite escura.

O quieto silêncio, a obscuridade,
Que geram mil saudosos pensamentos,
Parece que das aves aos tormentos
Por estímulo servem, de piedade.
     Queixo-me em vão,
     Pois meus gemidos
     Ficam perdidos
Nesta insensível, negra solidão.

Basta, triste Canção, que a noite escura
Já manda recolher aos caros ninhos
Os suspirantes, ternos passarinhos,
E em vão lhes conto a minha desventura.
     Quando nascer
     A madrugada,
     Eu, magoada,
Tornarei o silêncio interromper.


     5.
     As Águas

        Turbate son l’onde
        Del saggio Hyppocrene,
        E Apolle diviene
        Ministro d’Amor.
                 Metast. Asil. D’Amore

Claras águas, de que ouço o murmurio,
Calado bosque, ermo, que sombrio
Abrigas em teu centro o escuro medo;
     O mais terno segrêdo
Vem Alcipe fiar-vos no seu canto.
     Doei-vos, selvas tristes,
     Das mágoas que me ouvistes,
Desde que a voz queixosa aos Céus levanto.

Não são as minhas mágoas, não, vulgares:
Inventou para mim novos pesares,
No seu furor, a sorte mais adversa.
     Águas! Quanto diversa
Junto das vossas margens ‘stive um dia
     — Um dia só contente
     Que o fado cruelmente
Alonga a dor e encurta uma alegria!

Ali na fresca areia destas prias,
Repousando-me à sombra de altas faias,
Via passar a plácida corrente;
     Versos alegremente
Ditava Amor ao brando som da lira;
     Os Génios namorados
     Me contavam cuidados,
Que escutam de Citera a quem suspira.

Nas verduras, meus olhos alongando,
Passava o tempo leda; um gesto brando
Enleava meus ternos pensamentos;
     Jàmais os sonolentos
Filhos do Érebo, males deshumanos,
     O seu negro vapor
     Espalharam ao redor
Do asilo em que passei meus tenros anos.

Quantas vezes a Musa me guiava
Ao lugar em que terno suspirava
Petrarca saudoso, que em Vancluso
     Suave fez o uso
Da cítara cadente, repetindo
     Aquela branda história
     Que lhe pôs na memória,
Com as farpas de Amor, um gesto lindo!

Aonde os pensamentos me levavam!
Par’cia-me que as Musas enlaçavam
Com fios de oiro as ramas do loureiro;
     Depois, que o Deus flècheiro,
Verdes mirtos colhendo, os ia unindo
     À formosa capela
     De que a Musa mais bela
C’roou Petrarca — Laura — repetindo.

Sonhos vãos que forjava a fantasia!...
Prazeres que benigno Amor fingia!...
As Dríades me ouviram mil canções,
     Que aos ternos corações
Excitaram mil gratos sentimentos.
     Hoje, nos troncos duros,
     Dos meus fados escuros
Escrevo os tão diversos movimentos!

A minha antiga Musa se desvia,
Só me inspira a cruel melancolia;
Outro Apolo não tenho que o meu dano.
     Às vezes de ano a ano
Uma triste cantiga solitária
     No centro do retiro,
     Seguida de um suspiro,
Arranca do meu peito a sorte vária.

Oh Nai’des, que no fundo desta fonte
Ouvis o mal que Amor manda que eu conte,
Se acaso minhas lágrimas saudosas
     Distinguirdes, piedosas,
Ah! Condoei-vos, sim, do dano meu!
     Se o mal que eu choro tanto
     Paga outro terno pranto,
Dai-me a sorte feliz do claro Alfeu!

Canção, vai, que a levar-te não me atrevo;
Segue longe do meu outro destino;
Enquanto nos pesares que imagino
A minha acerba dor eu, triste, cevo.


ELEGIA

Amáveis solidões, bosques sagrados,
Que nas noites tranquilas livremente
Prestai um doce abrigo aos desgraçados;

Dos meus olhos a límpida corrente
Deixai-me desatar; suspiros, brados,
Expliquem sem receio o que a alma sente.

Tu, Cíntia, cuja luz fraca e serena
Parece que da Cária reflectira,
Não culpes o que indica a minha pena.

Se em minha alma inflamada Amor delira,
Desculpas deste mal, que um gesto ordena,
As dera Endimião, se não dormira.

Males tão novos, males tão riranos
Vão consumindo a minha triste vida,
A doce primavera dos meus anos;

Que até tenho a memória já perdida
Daqueles suavíssimos enganos,
De que a lembrança me era tão querida.

Aqueles prado s vejo que algum dia,
Mesmo a-pesar-da pálida tristeza,
Doiravam mil indícios de alegria;

Tão agrestes, tão cheios de aspereza,
Que só inculcam morte; nem já sinto,
De alheia, responder minha firmeza...

Um não sei quê de falso lhe pressinto
Naquela que fez meus contentamentos,
Que em chamar-lhe o meu bem não sei se minto.

Conseqüências fatais de uma saüdade!
Que me tem a tal ponto reduzido,
Que nem sei esperar felicidade!

Vou vivendo por modo que duvido
Alguns instantes se serei já morta:
Tal anda com meus males meu sentido.

São isto extravagâncias da ventura,
Que chegam a obrigar quem, como eu, passa
A não saber se está na sepultura.

Mas sou tão costumada co’a desgraça,
Que duvido, se acaso o bem tivera,
Até que o mesmo bem me satisfaça.

Porque Fortuna vária é tão severa,
Que, se me vir ao mal habituada,
Então me dará bens que eu não quisera.

Falsos bens, falso amor e falsa glória,
Tiranos que iludis quanto imagino,
Ou vinde, ou me fugi já da memória!

Mas se ordena que eu morra o meu destino,
Dure depois da morte a terna história
Do que eu sofro por um gesto divino.

Se à Ninfa, que de amores se perdeu
Pelo Moço gentil que a desprezava,
Depois da morte a voz se concedeu,

Eu suspiro como ela suspirava,
Eu choro, e só procuro, justo Céu,
Testemunhe meu pranto o que eu chorava.

Depois de terminados os meus dias,
Neste vale se escutem meus gemidos,
Intérpretes das minhas agonias.

Os rios de meus olhos submergidos
Não sejam; respeitai, selvas sombrias,
De mim meus ais, meus prantos divididos.

Basta já, males meus! Para matar-me,
Mais nada se precisa que as lembranças
Do quanto vós sabeis atormentar-me.

Mas na perda de minhas esperanças,
Se da Parca depressa encontro o corte,
Na morte contra vós tenho as vinganças,
Pois não podeis vencer-me além da morte.


EPÍSTOLAS

     1.
     A uma freira em Chelas

Quando em silêncio adormecem
Todos os seres mortais,
Ligeiros à tua cela
Voam saudosos meus ais.

Dize, leste os versos de ontem,
Onde insculpiu a ternura,
Comovida ao contemplar-te,
Indícios de mágoa pura?

Agora que tudo dorme,
Agora que só se escuta
De noite o surdo rumor,
Reflexo de alguma gruta;

Quando tôda a natureza,
Envolvida em sombra densa.
Dá liberdade aos suspiros
Que nascem da mágoa intensa;

Corre o vago pensamento,
E no pequeno recinto
De uma cela, aí te encontro,
Para explicar-te o que sinto.

Eu te vejo, oh Céus! Que vista!
Aprisionando entre flores
Os corações delicados
De mil cativos amores.

Das perfeitas mãos te nasce
Ora murta, ora alecrim,
Ora imitando teu rosto
Cândido e lindo jasmim.

Que idéias ternas te inspiram,
Quando o gôsto da leitura
Diminue brandamente
O cargo da desventura!...

Nos discretos caracteres,
Vão teus olhos magoados
Ora lendo o seu confôrto,
Ora o decreto dos Fados.

Já te lanças brandamente
No seio da paciência;
Já te recreia admirar
O aspecto da Providência.

Eu te sigo, suspirando,
E teço então sobre a lira
Estas cantigas saudosas,
Que o contemplar-te me inspira.

Se meus versos te consolam,
Sempre a branda simpatia
Conduzirá no silêncio
A Musa que teme o dia.


    2. A Filinto (*)
    A respeito de uma Ode que lhe mandaram fazer, e fêz ao Marquês de Pombal

Quando será, Filinto, que este canto,
Que me inspira benigno o Deus do dia,
Não equivoque a mágoa com meu pranto,
Seja notado só pela alegria?

Eu não sei, porque a sorte denegrida
Os futuros envolve em noite espessa,
Vai-me a tristeza dando cabo à vida,
Quere a sorte teimosa que eu padeça.

Mente o velho Saturno, se promete
Nas estações diversas dar-me gostos;
A Jano variar-se não compete,
Se volta para mim os quatro rostos.

A esperança falaz quando esvoaça,
As verdes roupas ostentando, airosa,
Icárias penas tem, cai por desgraça,
E perece na queda destitosa.

Nem o canto das liras alternadas
Que ama Délio, tão pouco o som cadente
De alegre côro de aves namoradas,
Amansam esta mágoa permanente.

Das Camenas em vão orno os altares,
Em vão me banho na Castália pura;
Nos olhos se me pintam os pesares,
Nos beiços geme a voz da desventura.

Investigando a minha triste história,
Tu mesmo, oh Santo Febo, tu te espantas,
Recomendando às Musas a memória
Quando lustroso cais ou te levantas.

Não te esqueça, Filinto, o acerbo caso...
Lateja-me no peito um fogo intenso,
Se esperdiças as joias do Parnaso,
Dando ao tirano o teu sublime incenso.

Bem sei que as Musas, quando vão contigo
Em cativeiro, aflitas, algemadas,
É por salvar-te só de extremo p’rigo
Que sofrem ver-se assim tão degradadas.

Porém tu, que és por elas escolhido
Para em verso divino honrar verdades,
Receia que o futuro espavorido
Te acuse de infiel às divindades.

A fortuna usurpada é que hoje toma
Direitos que à inocência o Céu concede:
A fraude, a crua fraude afoita doma
Almas a quem justiça a razão pede.

Assim, qual nova Euménide, a impostura,
Cruelmente de um fero açoite armada,
Desta terra infeliz toda a ventura
Fêz voar, contra os Céus arremeçada.

A meus olhos se mostra escassamente
Se com eles segui-la ao menos quero;
Bem como volejava em torno à mente
Um vago e lindo sonho ao cego Homero.

Os prazeres em bando, fugitivos,
Temem que os siga a mágoa ponteaguda,
Pois da virtude a graça, os atractivos,
Em lutuosa dor a fôrça muda.

Contudo a Jove, que almas só conhece,
Que enche o vasto Universo e nos domina,
Apela Alcipe, e nunca desfalece;
A Jove ùnicamente a face inclina.

Não são novas as sortes desastradas,
Verei cair sem pasmo o mundo inteiro;
Há longo tempo as terras assoladas
Maldiçoam a espada do guerreiro;

Há longo tempo o fanatismo astuto
Assassínios recíprocos prepara;
E sem dó traga o coração corrupto
A verdade que o Céu lhe confiara.

Lançando os olhos pelo vasto mundo,
Coberto de catástrofes e danos,
Das próprias penas perco o horror profundo,
E reparto meus ais entre os humanos.

Se um Sócrates que a morte despedaça,
Vejo acabar, sem que a virtude valha,
Ao ler que esgota a venenosa taça,
O mortal gelo sobre mim se espalha.

Tremo de raiva quando um vil tirano
Rasga a veia em que pulsa o sangue nobre
De um Sêneca infeliz, ou de um Lucano,
Que injusta e prematura morte encobre.

Então chagas abertas  meu peito
Se exacerbam c’os casos atrasados.
Quantas vezes de Astreia o são direito
Argúe a meu favor iníquos fados?

Mas se um Vate sublime, revolvendo
Da escura antiguidade os casos vários,
Em Sócrates Anitos convertendo,
Chama a Sejanos, Sólons, Belisários;

Que fruto tira o justo quando grita?
A cadeia dos erros dilatada,
Fabricada por homens, necessita
Ser por fôrças de um Deus despedaçada.
_______________

(*) – poeta Filinto Elísio, exilado na França desde 1778


 II. 
   

CANTIGAS

     1.

Razão, por piedade, esconde
O que eu dentro de alma sinto;
Se amor se mostra em meus lábios
Faze crer que sempre minto.

Não quero que hoje a verdade
Se oponha às leis da razão;
Triunfe a modéstia austera,
Gema embora o coração.

Não acenda um só suspiro
Chama que devo apagar;
Siga-se à dor o silêncio:
Vencer é saber calar.

Quantos males evitara
Êsse incauto Prometeu,
Se na férula escondido
Focasse o fogo do Céu!...


     2.

Porque se ama, ou se não gosta,
Inda está mal definido;
O acaso, o fado, a estrela
Forjam armas ao Cupido.

Se com desdéns recompensa
Zelina meu vivo ardor,
Não tenho de queixar-me
Não depende dela amor.

Por ela morro; e não pago
De Alcina os ais com os meus,
Ninguém a razão me indague,
Procure o enigma nos Céus.


    3.
    Dúvida

Logo que Armínio (*) aparece
Ergo os olhos com temor,
Quero falar-lhe, não posso.
Será isto acaso amor?...

Quando fala, não percebo
Que haja um só de voz melhor,
Mais graça, mais elegância.
Será isto acaso amor?...

Se entre aquelas que eu estimo
Fala alguma a seu favor,
Desconfio, tenho raiva.
Será isto acaso amor?...

Se ele se vai, não encontroi
Em nada chiste ou sabor;
Nem céu nem terra me agrada.
Será isto acaso amor?...

Se ostenta co’as outras belas
Ar polido e sedutor,
Forcejo por lhe ter ódio.
Será isto acaso amor?...


     4.
     Cantiga Anacreôntica

Dentre as canas buliçosas
Leve Zéfiro respira,
Movem-se as fôlhas lustrosas,
Amor palpita e suspira.

Neste doces movimentos
Vão-se as sombras desfazendo,
Vão-se espreguiçando os Ventos,
Lucífer esmorecendo.

Vai-se a manhã levantando,
Acordam em ela as cores,
Vão com ela despertando
Pardas rochas, lindas flores.

Ante os raios refulgentes
Cessa o tímido segredo,
Abrilhantam-se as correntes,
Nascem coros no arvoredo.

Sai do seio do descanso
Vigorada a fantasia;
As idéias são mais claras
Na hora em que nasce o dia.

Depois de um sono quieto
Tudo acorda com vigor;
Porque razão quando dorme
Não desperta assim o Amor?


     5.
     Ciúmes

Cruel Amor, tu que sabes
Rasgar com flechas meu peito,
Tira a venda dos teus olhos,
Põe-na sobre os meus com jeito.

Deixa-me ver a figura
De Armínio contìnuamente,
Mas cega-me logo, apenas
Armínio for delinquente.

Quando pintado em seu rosto
Triunfa o doce prazer,
Quando me aperta em seus braços,
Brando Amor, deixa-me ver.

Mas se à vista de outro objceto
Acaso o deleite esfria,
De que me serve ter olhos?...
Apaga-me a luz do dia!

Não é de maiores luzes
Que a minha alma necessita;
Não quero saber por quê
Quando vê Sílvia se agita.

De que serve o ver pintada
No seu rosto a inquietação,
Se chega o Correio ou parte?
Aperta-me a venda então!

Sem esta cautela, Amor,
Nulos os prazeres são;
Creio pouco nos sentidos
Se me foge o coração.


     6.

Acordai, sons esquecidos!
Estro mudo, replicai-me!
Vinde, números perdidos!
Harmonia, consolai-me!

Da morte as asas escuras
Vêm de sonhos carregadas:
Formam tristes conjecturas
As idéias assustadas.

Ai de mim a melodia
Evita uma alma agitada;
O terror da fantasia
Faz-me a voz desentoada.

Eu mesma não sei que temo!
Um desconhecido efeito
Me anuncia, quando gemo,
Que encerro a morte no peito.

O Tejo me viu com vida,
Sem ela o Danúbio e o Reno.
Fere, oh Morte desabrida!
O teu triunfo é pequeno.

Mas tu, objecto que adoro,
Incapaz de esquecimento,
As minhas cinzas recolhe
Em um simples monumento.

Em prêmio do amor mais puro,
Êste epitáfio convém
Gravar sobre o mármore duro:
Terna espôsa, filha e mai.


     7.
     Pressentimento

Contigo, lira suave,
Dissipo negros cuidados,
Contigo encanto e fastio,
Contigo zombo dos fados.

Dom celeste, amável fogo,
Que Délio acende na mente,
Toca-me estas longas horas
Num só instante contente.

Nasçam das cadentes cordas
Sons que copiem meus ais;
Faça Amor compadecido
Que os paguem outros iguais.

Mas que escuto? Oh Céu medonho!
Com feio agouro me bradas...
E a mão incerta na lira
As cordas deixa quebradas.


     8.
     Contraposição

Nesta estação deleitosa,
Em que os chuveiros baixando
Chamam a verdura aos prados,
Vão as flores acordando.

Quando os botões se desdobram,
Saudando o dia nascente,
E que a terra amolecida
O poder dos raios sente;

Flores, sol, botões mimosos,
Vós perdeis a graça, a cor,
Se a estação que vos renova
Não apaga a minha dor.


     9.
     Sonho

Perdoa, Amor, se não quero
Aceitar novo grilhão;
Quando quebraste o primeiro,
Quebraste-me o coração.

Olha, Amor, tem dó de mim!
Repara nos teus estragos,
E desvia por piedade
Teus sedutores afagos!

Tu de dia não me assustas;
Os meus sentidos atentos
Opõem aos teus artifícios
Mil pesares, mil tormentos.

Mas, cruel, porque me assaltas,
De mil sonhos rodeado?
Porque acometes no sono
Meu coração descuidado?...

Eu, quando acaso adormeço, 
Adormeço de cansada,
E o crepúsculo do dia
Me acorda sobressaltada.

Argúo então a  minha alma,
Repreendo a natureza
De ter cedido ao descanso
Tempo que devo à tristeza.

Que te importa um ser tão triste?...
Cobre de jasmins e rosas
Outras amantes felizes!
Deixa gemer as saudosas!


     10.

Sòzinha no bosque
Com meus pensamentos,
Calei as saudades,
Fiz trégua a tormentos.

Olhei para a lua,
Que as sombras rasgava,
Nas trémulas águas
Seus raios soltava.

Naquela torrente
Que vai despedida
Encontro assustada
A imagem da vida.

Do peito em que as dores
Já iam cessar,
Revôa a tristeza,
E torno a penar.


     11.
     As saudades do meu jardim

Saudades! Porque sois lindas?
Porque prosperais aqui?
Porque neste sítio triste
Flora meiga vos sorri?

Dêsse tempo em que falavam
As flores, se recordou,
E a Saudade enternecida
Dêste modo replicou:

— “Se aqui com pompa floresço,
E’ porque o meu alimento
São pesares, mágoas, dores,
E nutre-me o sentimento.

Se uma aura feliz soprasse,
E Alcipe se consolara,
Eu perdera a cor, morrera,
E toda me desfolhara.”


     12.
     A um pirilampo

Encantador pririlampo,
Adôrno da noite em Maio,
Vem luzir neste meu canto,
Dá-me desses teus um raio!

Tu das estações incertas
Nada temes, nada provas;
Dá-te vida a Primavera
E o bafo das flores novas.

Não morres, mas adormeces
Enquanto os ventos irados
Açoitam as altas faias,
Dessecam os verdes prados.

Ah! se, como tu, pudesse
Dormir, quando as tempestades
Dos desastres alvoroçam
No meu peito mil saudades!...

Não queria viver mais
Que o tempo que tu existes.
De que servem tantos dias,
Quando são todos tão tristes?


     13.
     A um mocho

Triste pássaro, que tens?...
Êsse tom dos teus gemidos
Não é tom que desconheçam
Os corações afligidos.

Tu calas-te enquanto Febo
Dispensa com fausto o dia,
E só confias das sombras
A tua melancolia.

Também eu, como tu, gemo,
E fujo da claridade,
Que importa pouco aos humanos
A minha cruel saudade.

Mas quando a severa Hecate
As sombras negras evoca,
Todo o silêncio do dia
Em suspiros se me troca.

Solto então o freio ao pranto,
Ao desafogo abandono
Essas horas que os ditosos
Entregam a doce sono.

Nem eu nem tu procuramos
A piedade dos humanos.
Uma compaixão estéril
Entra na lista dos danos.


     14.
     Ao clima da Inglaterra

Bárbaro clima,
Que escolhe a sorte
Para que a morte
Reine sem dó!

A terra perde
A vida, a cor,
Perde o vigor,
E gela só.

Saraiva espessa
Torpor espalha,
Tudo amortalha
A neve só.

Expulsa a fome
Do brando ninho
O passarinho
E acha-se só.

Se ao ninho torna,
O gelo o fecha,
E em vão se queixa
O pardal só.

Sem grão, sem ninho,
De frio morre;
Se a alguém recorre,
Ninguém tem dó.


     15.
     Saudade

A uma flor chamam Saudade,
Que é primor da natureza;
Mas a que nasce em meu peito
E’ produção da tristeza.

Enquanto a saraiva, os Notos
Dêstes gelados países
Açoutam as plantas, cresce
Lança profundas raízes;

Mas se um dia, transplantada,
Outro terreno buscar,
Alívio terá meu peito,
E a Saudade há-de murchar.


     16.

Como está sereno o Céu!
Como sobe mansamente
A lua resplandecente,
E esclarece este jardim!

Os ventos adormeceram;
Das frescas águas do rio
Interrompe o murmurio
De longe o som de um clarim.

Acordam minhas idéias,
Que abrangem a Natureza,
E esta nocturna beleza
Vem meu estro incendiar.

Mas se à lira lanço a mão,
Apagadas esperanças
Me apontam cruéis lembranças,
— E choro em vez de cantar.


     17.
     Sonho

Sonhos meus, suaves sonhos,
Sois melhores que a verdade;
Quando sonho sou ditosa,
Sem o ser na realidade.

Amor, tu vens nos meus sonhos
Acalmar-me o coração:
Mas, cruel! Quanto prometes
Não passa de uma ilusão!

Sonhei, tirano, esta noite,
Sonhei que tu me chamavas,
E que sobre a relva branda
T mesmo me acalentavas.

Disseste-me: “Dorme, Alcipe,
Depões todos teus cuidados;
Amor sobre ti vigia,
Mal podes temer os fados.”

Dormi: neste dobre sono
Me achei num palácio de ouro;
Entregaram-me uma chave
Para que abrisse um tesouro.

— “Chave mágica, sublime,
Que me vais tu descobrir?
Se é menos do que desejo,
Será melhor não abrir...”

— “Abre, Alcipe” — qual trovão
Brada o Deus que me vigia.
Acordei sobressaltada,
E abriu-se, mas foi o dia.


SEXTINA

(quando me penhoraram injustamente todos os meus bens; 
                                          (Nota da Autora)


A Fortuna

Fortuna, que me persegues!
Pequeno triunfo tens:
Eu desejo só vontades,
Tu disputa-me vinténs.
Basta-me o que me deixares,
Quando tudo me levares.

Basta-me esta alma que tenho,
Constante como os penedos;
Restam-me as águas das fontes ,
E a sombra dos arvoredos;
Ponho-me ao fresco no Estio,
E aquento-me, andando ao frio.

Basta-me o Sol, que não podes
Apagar, e à noite a Lua.
Se me tirares a casa,
Orei dormir para a rua,
Sôpa, não me dá cuidado,
Tem muitas plantas o prado.

Se o teu rigor se estendesse
A tirar-me o meu tinteiro,
Escreveria nos troncos,
Com um prego este letreiro:
“Vim ao mundo sem camisa,
Ninguém morrendo a precisa.”


ODES

     1.
     Ao túmulo de minha Filha

Feliz quem pode com ligeiros passos
Calar da morte a larva sonolenta,
Entregando à escura Eternidade
     As horas da tristeza!

Sombras da Noite, lúgubres ciprestes,
Que o sol, medroso, da sua luz não toca,
Vós guardai um tesouro, que rodeiam
     Mil gemidos maternos! 

Tuas cinzas, oh filha, com que eu cubro
De morte e horror as horas mais ditosas,
C’o sopro dos meus ais revolvo sempre,
    Cobrem-me a frente aflita!


     2.
     A meu filho

(imitada da ode do livro III de Horácio:
Augustam, amici, pauperiem pati, etc
Ano de 1813)

Convém que aprendas nas mavórcias lides
O mancebo a sofrer dura pobreza;
Que co’a lança enristada rompa os Francos,
     Pasme os bretões vaidosos.

Que no seio do risco os dias passe,
Que na rasa campanha passe as noites;
Que ao fero aspecto seu tremam de susto
     As espôsas e as noivas.
— “Ai de nós! (suspirando, aflitas digam)
Não queira o Céu encontrem os consortes
Lião tal, que entre mortes ira impele
     A devorar quem topa”.

Pela pátria morrer é nobre, é belo!
Inútil é fugir; persegue a morte
O tímido que vil as costas volta;
     Não dá quartel aos fracos. 

Eia, filho! A virtude não aceita
Repulsas que lhe envia a torpe inveja;
Não dependem do arbítrio vão da plebe
     Honras que intacta alcança.

Pelos ares vedados abre estrada
Aos Heróis imortais, aos Céus os leva;
Longe do térreo lodo e vulgo insano,
     Rápido vôo toma.

Prémio certo também alcança aquêle
Que, os mistérios divinos respeitando,
No coração os guarda, e ávida inteira
     A Deus e ao bem consagra.

Não quisera viver com quem profana
Religioso rito; aventurar-me
No mesmo lenho, sobre as ondas bravas,
     Com infiéis, com ímpios.

O desprezo das leis os Céus irrita,
Quem sabe se inocentes e culpados
Confundiria o Céu, quando o castigo
     Infalível descesse?

Bem que tardia e coxa seja a pena,
Que pareça dormir ou descuidar-se,
Atinge enfim quem erra; não escapa
     O ímpio ao que merece.


     3.
A morte de meu irmão o Marquês de Alorna, D. Pedro de Almeida (imitada da ode 21. Do livro de Horácio:
Quis Desiderio sit pudor, etc.
     Ano de 1813)

Que limite porei à dor, ao luto
Com que tão caro objecto chorar devo?
Ordena o canto, lúgubre Melpôneme,
     Filha do Deus dos Versos!

Tu, que teu Pai dotou de voz canora,
Unida à lira harmônica, suspira!
Perpétuo sono oprime o heroico Alorna,
     Triunfa dele a morte!

Súplica branda não revoca o Fado,
Quando uma vez, c’o a vara inexorável
De Mercúrio, ao rebanho tenebroso
     Agrega qualquer alma.

Honra, justiça, irmãs incorruptíveis
Da boa fé, da nítida verdade,
Onde achareis alguém igual de Alorna?...
     A terra não tem tanto.

Muitas lágrimas esta morte custa!
Nenhumas tão amargas como as minhas.
Em vão devota os deuses importuno;
     Nem têm créditos as preces.

Os Deuses por um tempo nos emprestam
Sôbre a terra o que é digno só do Olimpo;
Nas eternas moradas se recolhe,
     Desampara os humanos.

Se nas selvas com cítara suave,
Eu, qual trácico Orfeu, cantar soubera,
Nem assim voltaria o sangue, a vida
     À sombra vã que foge.

Destino fero... Mas a paciência
Aligeira os pesares, os desastres
Que não pode vencer fôrça nem arte,
     Que a razão não corrige.


     4.
     A Filinto
Ano de 1813

Non é ver que sai La morte 
Il peggior do tute i Mali
Metastásio

Fui, como tu, Filinto, arremeçada,
Pelas ímprobas mãos da Sorte adversa,
Contra os escolhos que num mar de angústias
     Acumula a desgraça.

Cerrou, longe de mim, a meiga Daíne
As portas da existência; a luz serena
De seus olhos celestes apagou-se;
     Pereceram as Graças.

Estranha terra cobre o Luso Turno,
Que esperdiçaram deslembrados Numes,
E a Pátria, que em vaneios despedaça
     Santos, fidos Penates.

A morte sem cessar, co’a fouce acerba,
Exornou-me sem dó; fiquei qual tronco
Que os ventos furioso desfolharam,
     Que tisnaram coriscos.

Foram-me inúteis délficos tesouros,
Que na infância comigo repartiste;
Escasso lume apenas me arde na alma,
     Que este incenso te envia.

São, Filinto, relíquias do teu estro
Que me aquecem da lira as dóceis cordas;
São tuas odes mágicas que acordam
A sonolenta Musa.

És tu quem me arrebatas, quem me levas
A encarar nas Olímpicas moradas
C’o Pai da heróica tuba e excelsos Vates,
     Que emulas ou desbancas.

Contigo vejo erguer do vítreo trono
O agastado Neptuno, e me envergonho
Que inertes no estaleiro os lenhos durmam,
     Sem atentar na glória.

Que Dabul ou Cochim, que tanto sangue
Aos Almeidas custou, farte a cobiça
Do fofo avaro, auri-sedento bruto
     Que alheia fama apaga.

Mas surge, oh Noite! Plácida refresca,
Com teu sombrio e sossegado aspecto,
A cálida tristeza que me lavra.
     O ansiado peito!

Ao Vate ilustre que em teu seio acolhes
Legou Anacreonte a rósea solfa,
Com que Acidália mesma carinhosa
     Acalenta Cupido.

Versos acesos no amoroso fogo,
Versos que ateiam férvido heroísmo,
Versos que põem a lira a par da tuba,
     À fama o recomendam.

Ditosos Coridon, Elpino, Olindo!
Já sobre vós não pode nada a morte!
Triunfantes ireis, calcando as eras,
     Sôbre as asas do vate.

Mas Alcipe, a quem pôs nas mãos o plectro!...
Duas vezes à morte submetida,
Cessará de viver... É pouco... é nada...
     Mas se esquece a Filinto!...


     5.
     Às musas adormecidas

Musas, que há tempos, mágoas prolongadas
Calaram sem piedade! Ouvi meus brados!
Surdi das Helicônias grutas, vinde
     Acolher-me de novo!

Qual navegante que a borrasca arroja
Por incógnitos mares, e a quem foge
A terra que procura, baixos, penhas,
     É quanto aflito encontra;

Tal fui horas amargas consumindo.
Caliginosos ares me cercaram,
Naufraguei sem amparo em sítios hórridos,
     Toquei de Polo os gelos.

Nevou sobre o meu plectro o frio Arcturo,
Perdi do Estro as luzes, perdi as vozes,
Febo apagou-se. Oh Musas! Deste abismo
     Resgatai vossa alma!...

Mas qual fantasma ingente ao norte avisto?
Alcantilada serra os Céus invade!
Favónios brandos, aportai-me à praia,
     Salvai comigo a lira!

Cessai, ventos cruéis! Mostrai-me a terra!
Bem-fazejas Deidades da harmonia,
Serenai estes ares revoltosos,
     Prestai-me imagens doces!

Coluna argêntea de águas cristalinas
Impetuosa desce de alto serro;
Quebra no encontro de um rochedo, e forma
     Espaçosa cortina.

A superfície crespa vai partindo
Seus cristais pelas várias penedias,
E do vapor aquático que espalha
     Enche o largo ambiente.

Ali do Sol os raios refractados
Ornam de Íris as roupas circundantes,
E de cores prismáticas tingindo
     O nevoeiro, alegram.

De arbustos lindos c’roam-se os rochedos;
À dextra, ao longe, rochas estaladas,
De musgo, fetos, hervas e de flores
     Pomposas se revestem.

Por entre arbustos e árvores copadas,
O rio que dimana da cascata
Vai perder-se no mar; à beira de água
     Chama a Vate ao descanso.

Oh Natureza, imensa Natureza!
Como aqui te apresentes deleitável!
A mente, que te abrange e te contempla,
     Extática se eleva!...

Quási que a terra cinge o Árctico Polo,
E muito além dos Trópicos se alonga;
Águas imensas, gelos gigantescos
     O Antárctico defendem.

Que multifões de espécies e de seres
À humana indagação prestam auxílio!
Com o engenho co'as artes, co'a ciência
     Descortina o Universo!


Lira ociosa, rompe os teus concentos!
Canta a Navegação do mar, dos ares,
A Química, a Botânica, mil artes
     Que doiram a existência!

Acima da matéria te remonta,
Sobe à Causa de tudo, acende na alma
Grato Vesúvio de um amor sem termo,
     E o Criador adora!


QUADRAS

Que fiz a minha irmã

Se da sorte a mão ousada
De teus braços me arrancou,
Não pode roubar a imagem
Que a saudade em mim gravou.

Se eu e tu fôssemos duas,
Pudera a Parca sem dó
Separar-nos; mas não somos
Eu e tu mais que uma só.

Se respiro, inda respiras;
Não tem a Parca poder
De confundir-se c’os mortos,
Enquanto Alcipe viver.


CANTIGAS


     1.
     Cantiga Patriótica, na guerra peninsular

Que intentas, Tirano?
Vencer Portugueses?
Almas generosas
Não temem reveses!

No campo da glória,
Vencendo ou vencidos,
Quais rochas constantes
Nos Vês destemidos.

Se férreas cadeias
Nos prendem os braços,
Mossas almas livres
Desprezam teus laços.

A terra ensopada
No sangue mais puro,
Ao Céu justiceiro
Te acusa, perjuro!

Se tardam seus raios,
Se é lenta a vingança,
Já vem no horizonte
A nuvem que os lança.


     2.
     (Em 16 de setembro de 1836)

Apenas desponta a Aurora
Despertam meus pensamentos;
Ressalta o mundo das trevas,
E anula pressentimentos.

A meus olhos dão recreio
Um monte, um vale, uma penha;
A cascata que entre as rochas
Com ruído se despenha.

Relva que o chão alcatifa,
Troncos que aos Céus se levantam,
Aves que, os ares cortando,
Com seus gorgeios me encantam.

Ah! se o resto dos humanos
Pudesse esconder paixões,
Inda houveram subsistência
As suaves sensações.

Mas quais ventos furiosos
Que precedem tempestade,
Em partidos se dividem
Os membros da sociedade.

Da razão cessa o luzeiro,
Desfigura-se a beleza,
O terror seu lugar toma,
Enluta-se a Natureza.

Criador deste Universo!
Gela no peito a ternura
Ou me acolhe nos teus lares,
Ou dissipa a desventura.


     3.

Quem diz que amor é um crime
Calunia a natureza,
Faz da causa agonizante
Criminosa a singeleza.

Que veho, Céus! Que não seja
De uma atracção resultado?
Atracção e amor é o mesmo;
Logo, amor não é pecado.

Se respiro, a atmosfera,
C’um fluído combinado ,
É quem me sustenta a vida
Dentro do peito agitado.

Se vejo mares, se fontes,
Rio, cristalino lago,
Dois gazes se unem, formando
Águas com que a sede apago.

Uma lei de afinidade
Se acha nos corpos terrenos;
Ácidos, metais, álcalis,
Tudo se une mais ou menos.

De que sou feita? — De terra;
Nela me hei-de converter:
Se amor arder em meu peito
É da essência do meu ser.

Sem que te ofenda, Razão,
Quero defender Amor;
Se contigo não concorda
Não é virtude, é furor.


APÓLOGOS 


     1.
     O Pirilampo e o Sapo

Lustroso um astro volante
Rompeu das humildes relvas:
Com seu voo rutilante
Alegrava à noite as selvas.

Mas de vizinho terreno
Saiu de uma cova um Sapo
E despediu-lhe um sopapo
Que o ensopou em veneno.

Ao morrer exclama o triste:
— Que tens tu de que me acuses?
Que crime em meu seio existe?
Respondeu-lhe: — Porque luzes?


     2.
     O Pintassilgo e o Rouxinol

Um pintassilgo imprudente
Desviou-se de seu ninho,
E nem um só grão de arpista
Encontrou pelo caminho.

Pela fome conduzido,
Entrou num bosque sombrio
Onde retinia ao longe
De um Rouxinol o assobio.

Ao doce cantor das selvas
Voou afoito e lhe disse,
Se tinha grão de sobejo
Que com ele repartisse.

— “Tenho, (respondeu polido,
O músico das florestas)
Tenho grão e sei cantigas;
Terás dele; escuta estas.”

Começou logo a cantar;
Cantou, te que amanheceu,
E entretanto o Pintassilgo
Foi definhando — e morreu.


     3.
     O Cuco e o Rouxinol

Disse um Cuco, ponderado,
A um Rouxinol, certo dia: 
— “O meu canto é regulado,
Tem compasso e melodia.

São estas regras do canto
Dignas de grande atenção.
Ouve, Rouxinol, talvez
Que te aproveite a lição.”

Espaneja-se o cantor,
E em duas notas iguais
Vomitou do triste papo
— Cucu, cucu — nada mais.

A Filomela, sorrindo,
Respondeu numa volata,
E em torrentes de harmonia
Sufocou a voz ingrata.

Quando um quadrúpede triste,
Pelas orelhas famosos,
Começa a cantar tão alto
Que atroa o bosque frondoso.

O Rouxinol, coitadinho
Nem mais pôde abrir o bico.
Eu também num caso destes
Nem me pico, nem despico.


     4.
     O Lião e a Raposa

— “Meu Senhor! (disse a Raposa,
Falando um dia ao Lião)
Eu não sou mexeriqueira,
Mas calar-me é sem-razão.

Sabe que mais? Anda um Burro
Aqui por toda a cidade
A dizer mil insolências
Contra Vossa Majestade.

Êle diz que não percebe
Como lhe acham talentos,
Em que consiste a grandeza
Dêsses seus merecimentos.

Diz que o seu valor é Fôrça,
E que é pouca habilidade
Quando vence fàcilmente
Ostentar heroicidade.”

Calou-se um pouco o Lião,
E depois, sorrindo, disse:
— “Que importa o que diz um asno?
Enfadar-se é parvoíce.”


EPIGRAMAS

     1.
     A um Prègador insípido

Êste pregador famoso
Põe-nos em contradição;
— Vigiai — diz a Escritura,
E — durma — diz o sermão.


     2.
     A um soi-disant médecin qui m’accusait d’être savante

Tu m’accuses, Docteur. Le crime est beau!
J’ai Du savoir, CE mal vaut bien um aute;
Blâmez, criez, jê garde mon défaut,
Et fais sennent que CE n’est pás le vôtre.








3 comentários:

  1. Não conhecia nada sobre a Marquesa de Alorna, aí está a importância do EXPRESSÃO MULHER. Pelo que li, poemas que revelam uma mulher sofrida, muito sofrida, mas não se deixou cegar pelo sofrimento e seu olhar forte protestou a falta de justiça que vale para os dias de hoje, inclusive! Inteligente, corajosa, profunda e grande exemplo de patriota!

    79.
    "As decisões intempestivas

    Virtude Portuguesa, brio antigo!
    Em Banquetes e bailes transformado
    Que vos importa a Pátria em tal estado?
    Se nela não há prémio nem castigo.

    O vergonhoso susto de perigo
    Que lhe impõe um jornal desenfreado,
    Faz que deixe o triunfo malogrado
    E largue as posições ao enemigo.

    Este logo aproveita a vossa herança
    Que ilusões e receios lhe entregara
    Treme a justiça cessa a confiança

    E ao culto que a impiedade abandonara
    Une a Nobreza, veda-lhe a esperança
    E a constituição mesma desampara."

    Ótima seleção do EXPRESSÃO MULHER!

    Abraços,
    Verinha Consuelo

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  2. Conheci alguns versos dessa maravilhosa poetisa quando estive em Portugal. Por uma dádiva, um amigo português de Coimbra contou-me sua história e confesso, marcou-me com emoções. Agora, o EM, que não deixa passar nada precioso, glorifica merecidamente a grande Marquesa de Alorna. Espero que outros leitores façam suas apreciações sobre esta especial mulher.
    Abraços,
    Fizze Hernandez

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  3. COMENTÁRIO ORIGINALMENTE PUBLICADO EM 09-12-2013

    É maravilhoso saber que na fértil terra de Portugal, que nos deu poetas tão grandiosos, houve uma mulher tão singular e apaixonante como a Marquesa de Alorna Abraços do Brasil. em * MARQUESA DE ALORNA (Portugal)

    Jehssyca Fiúza
    em 09/12/13

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